Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Artigo de blogueira do Estadão ataca Greta Thunberg com preconceito contra autistas aspies

Greta Thunberg. (Foto: Wikimedia)

Um artigo repleto de preconceito está causando revolta e indignação na comunidade brasileira de autistas e seus familiares. Intitulado As trancinhas teleguiadas do “produto” Greta Thunberg, o texto escrito por Sheila Leirner, publicado em seu blog da seção Cultura do portal do jornal Estadão na manhã do último dia 30 de agosto, dirige ataques pessoais à adolescente ambientalista sueca Greta Thunberg, de 16 anos, e à sua família, usando como mote principal a Síndrome de Asperger da garota, uma condição branda do espectro autista.

O teor preconceituoso do artigo
Contra Thunberg, a blogueira articulista usa termos e afirmações bastante preconceituosos e desrespeitosos, de teor fortemente capacitista, incluindo menções jocosas a características físicas da adolescente, como:

– “trancinhas teleguiadas”, tanto no título quanto no corpo do texto, em referência ao fato de Greta gostar de usar tranças no cabelo e à acusação de ela ser “manipulada” e “guiada” por movimentos sociais e grupos políticos;
– “rosto [que] não revela nenhuma empatia”, em alusão à expressão facial que Greta tem dificuldade de modular e flexibilizar justamente por ela ser autista;
– “vítima vergonhosa e covardemente manipulada”;
– “garotinha de olhos duros”, numa outra referência à dificuldade dos autistas de modular sua expressão facial;
– a afirmação de que Greta “sempre [a] irritou além da conta”;
– a insinuação de que a condição autista faria dela uma jovem “manipulável” pelos pais e pela “extrema-esquerda anticapitalista”;
– e a última frase do texto: “a sua greve climática parece ser uma maneira bem esperta de cabular as aulas!”.

Não bastasse isso, Leirner promove, no terceiro parágrafo do texto, todo um discurso preconceituoso e discriminatório sobre crianças e adolescentes aspies. O trecho já começa assim: “Greta Thunberg é manipulável a tal ponto que os próprios pais tornaram pública a sua perturbação neurológica [sic] – o que, na minha opinião, é de uma grande irresponsabilidade, para não dizer imoralidade. Mas essa opinião não é só minha. Hoje, vários médicos franceses acreditam que revelar o estado neuropsiquiátrico de menores à mídia deveria ser considerado um delito.”

Essa menção aos “vários médicos franceses” nos remete ao fato de que, na França, existe ainda hoje todo um regime de violação sistemática de direitos humanos contra pessoas autistas de todas as idades e posições do espectro, situação denunciada inclusive em relatório da ONU, sustentado pelo chamado modelo médico do autismo, ou paradigma da patologia, que naquele país tem influência dominante da psicanálise pós-freudiana e, assim, é ainda mais cruel contra essa minoria política do que o modelo médico, que já é cruel e capacitista por natureza.

É comum, naquele país, autistas serem submetidos a internação compulsória em manicômios e hospitais psiquiátricos, separados à força de suas famílias, terem seu acesso à educação escolar negado, não serem corretamente diagnosticados e terem sua condição associada ainda nos dias de hoje à já refutada teoria da “mãe-geladeira”, entre diversas outras violações.

A constatação, por parte dos movimentos de direitos autistas franceses e de outros países, é que a França está cinquenta anos atrasada, em comparação com muitos outros países, no que concerne à forma como a sociedade, a maioria da comunidade médica e o próprio Estado tratam os autistas.

Voltando ao texto, a blogueira prossegue com seu discurso capacitista, afirmando que “crianças Asperger [sic] são às vezes geniais, mas sempre frágeis”, “precisam de serenidade, cuidados especiais e não podem ser expostas, mesmo se assim quiserem” e que “um menor com uma perturbação [sic] do espectro autista, tanto quanto outros menores, ‘não tem que querer’ [grifo meu], os adultos são ainda mais responsáveis por ele”.

Insinua assim, ao longo do parágrafo, que crianças e adolescentes aspies seriam pessoas incapazes, desprovidas de inteligência e pensamento crítico autônomo, meras marionetes de seus pais e dos adultos neurotípicos e frágeis demais para desfrutar de diversas liberdades individuais previstas na Constituição – e, por isso, deveriam ter sua condição escondida do mundo e ser tratados com paternalismo, discriminação e segregação, ao ponto de terem até mesmo parte de seus direitos fundamentais negados.

Edições anteriores desse texto pegavam ainda mais pesado, chamando Greta Thunberg de “menor doente” e a síndrome de Asperger de “doença” ou “psicopatia”.

O restante do texto não se ocupa tanto em atacar diretamente a garota, mas traz todo um discurso de intolerância e ódio ideológico contra o Fridays for Future, movimento ambientalista juvenil internacional que ela tem inspirado, influenciado e indiretamente liderado.

Com um linguajar bastante virulento, alude ao movimento como “ecocatastrofismo”, “agenda liberticida em nome dos ‘bons sentimentos'”, “idiotas úteis da ditadura verde” e como uma juventude “instrumentalizada” pela “extrema-esquerda”. E parafraseia um discurso etarista do médico francês Laurent Alexandre, segundo o qual “os jovens que fazem greve escolar são manipulados”.

A reação da comunidade autista
Logo que autistas e familiares defensores da neurodiversidade tomaram conhecimento do artigo, ele começou a ser denunciado no Twitter, em diversos grupos de autistas aspies no Facebook, em mensagens enviadas a várias páginas sociais de autistas pela neurodiversidade e mães de autistas, em postagens e compartilhamentos de páginas sociais do Facebook e do Instagram.

Relata-se que o texto foi denunciado ao Ministério Público Federal, ao Reclame Aqui, ao Fórum dos Leitores do Estadão e ao e-mail oficial do portal de notícias, uma vez que feriu diversas diretrizes do Código de Conduta e Ética do Grupo Estado, entre eles o “respeito ao público externo, credibilidade, reputação e imagem”, a defesa editorial dos “direitos e as liberdades individuais, o pluralismo democrático e a identidade sócio-cultural do Brasil e de São Paulo” e a recusa “a veicular teses que neguem a liberdade, atentem contra a dignidade da pessoa humana ou agridam os princípios da ética informativa definidos” no código.

Com esse esforço, o conhecimento sobre o artigo capacitista, psicofóbico e etarista de Leirner e a indignação pública por causa do texto estão se espalhando numa reação em cadeia entre a comunidade autista brasileira.

Vários autistas militantes e mães de autistas se posicionaram em repúdio, como Robson Fernando de Souza, do blog Consciência Autista, Andréa Werner, do site Lagarta Vira Pupa, Victor Mendonça e Selma Sueli Silva, do canal e site Mundo Asperger, Ciel Souza, da página Vida no Espectro, Calinca Alcantara, do blog Rivotrip, Adriana Torres, do blog Comunicando Direito, Thaís, do canal e blog Mamãe Tagarela, as páginas Autistando, Asperger e Autismo no Brasil, a equipe do podcast Introvertendo, entre muitas outras pessoas e grupos, além de páginas de esquerda, como Anarcomiguxos e Meu Professor de História. Cada vez mais pessoas, tanto em postagens quanto em comentários, estão exigindo que a autora seja legal e profissionalmente responsabilizada e obrigada se retratar, e que o Estadão dê um posicionamento oficial sobre o texto e conceda direito de resposta aos autistas.

Sob pressão das redes sociais, a blogueira fez no texto pequenas edições, tentando diminuir a forma pejorativa e odiosa pela qual se referiu à síndrome de Asperger. Sem sucesso, porque o artigo continua promovendo preconceito e apologia à discriminação e despertando cada vez mais revolta da comunidade brasileira de autistas e familiares.

Leis que protegem pessoas autistas, em especial as crianças e adolescentes
A síndrome de Asperger, por ser uma condição inclusa no espectro autista e seus critérios diagnósticos previstos no antigo DSM-4 e no hoje vigente DSM-5 (agora como Condição/Transtorno do Espectro Autista de nível leve), se encaixa no Artigo 1º, § 1º, da
Lei Federal da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (nº 12.764/2012) e é considerada uma deficiência segundo o parágrafo 2º do mesmo artigo da mesma lei.

Portanto, os aspies, especialmente crianças e adolescentes, têm seus direitos assegurados por leis como a Lei da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (nº 12.764/2012), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015) e, no caso das crianças e adolescentes aspies, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

É preciso ressaltar que essas três leis asseguram a todos os autistas os direitos contra os quais o texto da blogueira se coloca. Entre eles estão a liberdade de expressão, o livre desenvolvimento da personalidade, a inclusão social irrestrita, respeitando-se as necessidades específicas intrínsecas à condição, a igualdade de oportunidades, a participação política democrática e ativa e a proteção contra toda forma de discriminação.

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Robson Fernando de Souza é escritor, autista aspie defensor da neurodiversidade.