A maioria dos jornalistas profissionais pode não acreditar, mas as plataformas digitais cumprem hoje o mesmo papel que a impressora de Johannes Gutenberg exerceu no século XV, quando mudou radicalmente a forma pela qual as informações passaram a circular em comunidades sociais. Os jornais impressos e as redes sociais na internet, cada um a seu tempo, ampliaram a disseminação de notícias permitindo uma extraordinária aceleração na produção de conhecimentos e, consequentemente, no progresso da humanidade.
Mas a evolução geralmente cobra um preço na transição de um modelo para outro. A era analógica na imprensa criou impérios industriais, famílias milionárias e uma enorme influência política, mas tudo isto entrou em declínio com as novas tecnologias digitais de informação e comunicação, responsáveis pelo surgimento de novos e revolucionários sistemas de comunicação e produção de informações.
Inevitavelmente surgiram conflitos de interesses entre os que se sentiram ameaçados pela emergência de novas tecnologias, capazes de gerar o mesmo tipo de acumulação de riquezas que a usufruída pelos barões da imprensa. A atual guerra verbal, financeira e política entre conglomerados jornalísticos e as plataformas digitais é uma manifestação contemporânea dos traumas associados a todas as grandes inovações tecnológicas ocorridas ao longo da história humana. A invenção de Gutenberg, por exemplo, provocou graves conflitos políticos e religiosos entre protestantes e católicos, durante o século XVI.
Diante da predominância dos interesses econômicos e políticos, o atual bate-boca entre empresários do jornalismo e donos de plataformas digitais perde as características de uma guerra entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. O que realmente está em jogo é a resistência ou não às mudanças provocadas por transformações tecnológicas que resultam do avanço inevitável do conhecimento humano. E quando isto acontece geralmente as inovações geram desdobramentos positivos e negativos do ponto de vista social.
Um mar de problemas
A imprensa já foi associada a adjetivos pejorativos como amarela (nos Estados Unidos) e marrom (aqui no Brasil) para qualificar publicações responsáveis por práticas noticiosas condenáveis como sensacionalismo, as notícias falsas e o discurso do ódio, muito comuns no início e em meados do século XX. Ironicamente, estes mesmos qualificativos são usados hoje por conglomerados jornalísticos contra as plataformas digitais que abrigam redes sociais envolvidas com práticas criminosas como extremismo de direita, homofobia, xenofobia e racismo.
Na verdade, estamos tratando de dois tipos diferentes de plataformas de comunicação: a plataforma analógica que serve de base para os processos de produção da imprensa convencional, e a digital materializada em rede sociais de todos os tipos, desde as grandes como Facebook, Twitter, TikTok e YouTube até as pequenas como Medium, Kwai, Mastodom e as ultraconservadoras Gab e Gettr. É um conflito cuja solução precisa levar em conta o contexto socioeconômico e técnico-científico em que ele ocorre, sob pena de acabarmos lamentando prejuízos que poderiam ter sido evitados.
As plataformas digitais precisam ser reguladas legalmente porque esta é uma condição aceita por todos os membros de uma comunidade nacional. Elas não podem ser exceção, da mesma forma que a imprensa precisa aceitar que a as novas tecnologias mudaram o contexto informativo em vigor na era analógica. É inviável regular as plataformas digitais e redes sociais usando leis e valores analógicos, da mesma forma que a crise da imprensa tende a se agravar na medida em que ela ignorar o fato de que as normas criadas para os impressos são inaplicáveis no espaço cibernético. As regras do direito autoral analógico não funcionam no mundo digital.
A Inteligência Artificial, para complicar ainda mais
A era digital tornou o público protagonista direto na produção de informações através das redes sociais. As pessoas não são mais meras consumidoras de notícias na internet. Elas também passaram a publicar textos, áudios e vídeos, o que, em teoria, as coloca também entre aqueles que deveriam ser remunerados pelas plataformas. Além disso, como todos os conteúdos publicados na internet têm o formato de códigos binários, não é fácil identificar quando alguém copiou algo, o que dificulta enormemente a tarefa de fixar um valor pelo que foi reproduzido.,
E como se não bastasse a complexidade da decisão sobre regulamentar as redes sociais e plataformas digitais, temos agora um problema ainda mais complicado: a inteligência artificial (IA), responsável por terremotos corporativos no mundo digital e preocupações que beiram o pânico na indústria de comunicação social analógica. Um texto anônimo de um engenheiro da empresa Google vazado para a imprensa, insinua que as big techs terão que trabalhar no regime de código aberto (compartilhando descobertas) se quiserem sobreviver na corrida por inovações usando inteligência artificial.
Isto simplesmente torna obsoletos os atuais esforços para regulamentar atividades na internet e no mundo digital. A tecnologia está avançando de forma mais rápida do que a capacidade dos seres humanos de aprovar leis e regulamentos. Isto gera um descompasso que gera por sua vez uma enorme incerteza, especialmente entre os tomadores de decisões políticas e corporativas. E vamos ter que nos acostumar com isto porque a outra possibilidade seria congelar a evolução cientifica e tecnológica, o que é impensável.
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Carlos Castilho é é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.