Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“O governo não quer comprar briga com a mídia”

Na esteira dos debates realizados durante a Conferência Nacional da Comunicação, em 2009, e de um seminário internacional promovido pela Secretaria da Comunicação da Presidência da República em 2010, criou força a ideia de se estabelecer um marco regulatório para as comunicações no Brasil. Tratada pela mídia como tentativa de controle da informação, a iniciativa ainda não conseguiu prosperar, embora esteja prevista na Constituição de 1988 e normas do gênero sejam comuns em inúmeros países da Europa e nos Estados Unidos.

Quem aponta é o jornalista Altamiro Borges, que vem participando ativamente desse debate. Presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, ele é autor do livro A ditadura da mídia, no qual aborda o tema da concentração e do descompromisso com o interesse público.

“Comunicação não pode ficar só no setor privado”

Ciranda– Como está a discussão sobre o marco regulatório das comunicações no Brasil?

Altamiro Borges– Essa discussão está atrasada no Brasil. Em 2010, a Secretaria da Comunicação da Presidência, encabeçada na época por Franklin Martins, fez um seminário internacional e trouxe ao Brasil representantes de órgãos de comunicação dos Estados Unidos, da Itália, da Espanha, do Reino Unido. Esse pessoal estranhou o fato de não haver regulação no Brasil, porque isso existe em todo o mundo. Nos Estados Unidos, a FCC (Federal Communications Commission) já cassou mais de 100 outorgas de rádio e televisão. A União Europeia tem uma comissão só para comunicação, que avalia, por exemplo, qual a propagando que pode ser veiculada para crianças. Aqui, não tem nada, é a farra do boi.

Isso embora o tema esteja na Constituição de 1988, não?

A.B.– O capítulo sobre comunicação é bom, mas virou letra morta. Há balizas fundamentais, como o fato de proibir monopólios e a propriedade cruzada. Uma mesma empresa não pode ter TV, rádio, jornal, revista, internet, teatro, cinema. Mas isso nunca foi regulamentado. Ao contrário, o monopólio cresceu. Quando a Constituição foi promulgada, em 1989, havia 12 famílias que controlavam as comunicações; hoje são sete. Além disso, deve haver complementariedade do sistema. No caso da radiodifusão, a comunicação não pode ficar só no setor privado. É a experiência do mundo inteiro, que tem redes privadas fortes, mas públicas também. O Reino Unido tem a BBC, em Portugal há duas TVs públicas fortíssimas, na Espanha idem. No Brasil, as TVs educativas são muito frágeis porque não houve investimento. Só muito recentemente começou com a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). A Constituição estabelece ainda que deve haver produção regional. Isso porque o cidadão do Acre ou do Amapá não tem de falar com os esses do Rio de Janeiro, embora seja muito bonito.

“Lei de mídia argentina é extremamente avançada”

Como funciona o mercado da comunicação e que poder tem?

A.B.– A comunicação permaneceu um feudo, não chegou nem ao capitalismo. São famílias, verdadeiros senhores feudais, que controlam tudo. E não há nenhum mecanismo de participação da sociedade. Esse poder midiático, que hoje inclui informação, entretenimento e cultura, é extremamente perigoso e se guia por razões econômicas e políticas. Já é conhecido o poder de manipulação, que se trata de realçar ou omitir informação. Outro aspecto é que a mídia interfere tanto que gera valores e pode deformar comportamentos. Ao estimular um consumismo exacerbado, já que vive de publicidade, estimula o individualismo doentio. Isso do ponto de vista de organizações sociais, como os sindicatos, é uma tragédia porque enfraquece a ação coletiva. Embora a Constituição seja precisa quanto à presunção de inocência do cidadão, a mídia hoje investiga, julga, condena e fuzila. Depois, se estiver errado, dá uma notinha. Isso é a negação do jornalismo e acontece de forma seletiva, ou seja, quando interessa. Corrupção no setor público envolve dinheiro do povo. Portanto, deve ser apurada e punida, mas é preciso apurar de fato. E há também os corruptores, que nunca aparecem nas manchetes, talvez porque sejam anunciantes.

Regras para esse setor são comuns nos países desenvolvidos. Como está o debate na América Latina?

A.B.– Há países nos quais houve radicalização do processo político. O golpe de 2002 na Venezuela foi feito dentro das redações, que antes paparicavam Hugo Chávez. Depois disso, instituiu-se a regulação e políticas públicas mais avançadas. Chávez fez inúmeras rádios comunitárias, a publicidade pública passou a ser destinada também aos veículos pequenos. Se uma TV abusa da concessão, fecha. Na Argentina, os dois principais grupos de comunicação, El Clarín e La Nación tinham uma relação de compadrio com Kirchner. No mandato da Cristina, jogaram tudo para controlar o governo. Mais valente que Néstor, ela resolveu enfrentar. Acabou, por exemplo, com o monopólio da transmissão dos jogos de futebol, hoje feita pela TV estatal. Essa radicalização produziu a lei de mídia da Argentina, extremamente avançada. Agora, o setor privado só pode deter um terço da radiodifusão, enquanto um terço é estatal e outro das organizações públicas.

“Os grupos de radiodifusão sempre foram entreguistas”

Enquanto isso, no Brasil houve recuo da decisão de regular, embora a discussão sobre o assunto tenha se ampliado.

A.B.– Aqui, a luta se radicaliza em períodos eleitorais, mas depois aparentemente se suaviza. O governo não quer comprar briga com a mídia, porque é um grande poder. Mas tem coisas muito importantes acontecendo. O movimento sindical, por exemplo, tem percebido que não adianta reclamar do tratamento que recebe da mídia, é preciso lutar pela democratização. E as entidades vêm fortalecendo a sua comunicação, percebendo que isso não é gasto, é investimento na luta de ideias. Isso permite dar alguns passos. Por exemplo, ter conselhos de comunicação nos Estados, que é uma forma de a sociedade participar. Outro fator é que a mídia é muito forte, mas também está vulnerável em função de perda de credibilidade e da mudança tecnológica trazida pela internet. A Folha tirava um milhão de exemplares na década de 80; hoje, são 289 mil. O JB acabou, o Estadão está morrendo. E mesmo na televisão começa a haver uma migração, na juventude, para a internet. Esse é um fator que pode ajudar a ter regulação. Os radiodifusores tradicionais estão sofrendo a concorrência de um capitalismo extremamente ousado e agressivo por parte das empresas de telecomunicações que querem produzir conteúdo. O faturamento da radiofusão é de R$ 14 bilhões; o das teles é de R$ 160 bilhões.

Com isso o marco regulatório precisará alcançar também as teles.

A.B.– Certamente, porque é preciso um marco regulatório até para defesa de soberania. Se essa jamanta econômica entra, vamos ficar obrigados a assistir Bob Esponja de manhã, à tarde e à noite, o que é pior que a novela com sotaque do Rio de Janeiro. O triste nesses grupos de radiodifusão é que eles sempre foram entreguistas, defenderam a privatização imaginando que iriam adquirir poderosas empresas de telefonia, mas aí vieram as estrangeiras e eles dançaram. Poderiam agora denunciar a ameaça à produção cultural brasileira, mas não o fazem.

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[Rita Freire, do Observatório do Direito à Comunicação]