Esta nota propõe uma recontextualização do debate sobre a neutralidade da rede. Propõe que se substitua o objetivo de neutralizar qualquer agente do ambiente informacional – no caso, os provedores de conexão à internet – por um objetivo de assegurar que todo e qualquer agente aja de forma razoável. A nota não defende práticas irrazoáveis de provedores de conexão à internet. A nota defende, ao contrário, um princípio geral de razoabilidade aplicável a todo e qualquer agente do ambiente informacional. O objetivo de neutralizar, anular a liberdade de provedores de conexão é, em si, inconstitucional. Ele implica uma inversão, uma anulação do princípio liberal contido na Constituição da República – a ideia de que todo agente pode fazer tudo aquilo que a lei não veda. Para os provedores de conexão, a ideia de neutralidade da rede significaria que, por princípio, os provedores somente poderiam fazer aquilo que a lei expressamente lhes permitisse. Esta nota não debate especificamente a questão da constitucionalidade, mas demonstra a inconsistência – na teoria e na prática – da ideia de neutralidade. Em lugar dela, a nota argumenta que as patologias que o debate sobre a neutralidade da rede busca, com razão, remediar melhor remediadas seriam por um princípio de razoabilidade na internet, no coração do qual deve estar uma presunção de que os valores fundamentais da internet – por exemplo, o assim-chamado End-to-End Principle – devem ser respeitados e de que qualquer prática que deles divirja deve ser rigorosamente fundamentada.
Estou ciente de que contrario o pensamento comum sobre o assunto da neutralidade da rede – a proposição de que os provedores de conexão à internet não devem poder discriminar pacotes de dados de acordo com a origem, conteúdo ou destino dos mesmos. Porque contrario o pensamento comum, e porque nos debates nesta área há uma forte (e talvez inevitável) carga ideológica, é importante que se conheça o pano de fundo de meus pensamentos.
Uma coexistência de liberdades
Sou um defensor da vasta maioria dos dispositivos do Marco Civil da internet no Brasil (o Projeto de Lei no. 2126 de 2011), que protege valores fundamentais para o ecossistema da Internet e será, mesmo, uma lei sem precedentes no mundo. Embora eu viva e lecione em Hong Kong, participo, com orgulho e, porque não dizer, apreço, dos debates públicos sobre o Marco Civil. O tema da neutralidade (politica, tecnológica, da rede) me é particularmente afeto, pois a ele tenho dedicado anos de meus estudos – inclusive meu doutorado.
Sou um defensor da liberdade do conhecimento, uso Ubuntu, trabalhei e atuei pelo Software Livre, acho que o Estado tem a obrigação constitucional de adotar software livre, escrevi e publique sobre isto, no Brasil e fora. Tenho saudades do Ministério do Gilberto Gil. Vejo como óbvio que o Acesso ao Conhecimento é um Direito Humano e que o direito à propriedade intelectual deve ser relativizado e adaptado aos novos tempos – e que em algum momento deva mesmo deixar de existir, quando encontrarmos caminhos regulatórios alternativos para unir a justa remuneração do autor à ampla circulação das ideias.
Mas acho, também (e isto é igualmente óbvio), que há limites às coisas. No software livre, por exemplo, não acho que o Estado possa impor seu uso ao mercado – pode e deve promover, mas não impor. No Direito Autoral, não acho que se deva utilizar o discurso da liberdade do conhecimento para legitimar coisas como o Google escanear todos os livros do mundo sem permissão, para fazer o Google Books. Em um caso como no outro o que acontece é que alguém está tendo sua liberdade neutralizada para garantir a liberdade ilimitada, radical, de outrem. O que penso é que devemos promover uma coexistência razoável de liberdades. É difícil encontrar esse ponto de equilíbrio no ambiente informacional – será o grande desafio do nosso século. Mas devemos buscá-lo.
Neutralidade política
Meu pensamento sobre a neutralidade da rede vem nesse mesmo contexto. De forma muito clara vejo a assim-chamada neutralidade da rede (que, aliás, nunca existiu) como uma tentativa de neutralizar o provedor de serviços de conexão. É uma tentativa das camadas superiores da Internet, das aplicações e do conteúdo (do Google, do Skype, da Netflix & co.) de anular, neutralizar os agentes da camada da rede (dos roteadores, dos protocolos, dos provedores de conexão). Assim, Google, Skype, Netflix & co. podem reinar absolutos sobre o provedor de conexão. Então dizem que o provedor de conexão não pode raciocinar sobre a natureza do conteúdo que roteia – deve simplesmente roteá-lo. Se tiver dificuldades, o jeito padrão de resolver o problema é comprar mais cabos, agregar mais capacidade de banda. Foi este, precisamente, um dos argumentos do Google perante a Federal Communications Commission, nos EUA. Não colou. Escrevi sobre isto em artigo recente, publicado no livro “Google and the Law“.
Aqui é importante dar um passo para trás e questionar, antes do que é neutralidade da rede, o que a própria ideia de neutralidade significa, em geral, na teoria política. Podemos entender a ideia de neutralidade da rede como um desdobramento, ou mesmo uma manifestação, do conceito de neutralidade política. É verdade que os agentes de poder em um e outro caso são distintos – a neutralidade política se refere ao Estado; a neutralidade da rede, ao provedor de conexão. Em termos de escopo e metodologia, porém, ambas as ideias estão intimamente afiliadas. Três passos simples nos permitem entender este ponto e sua relevância para nossa discussão.
1) Na teoria política, a ideia de neutralidade é uma ideia de restrição valorativa. O que isto quer dizer? Quer dizer que o Estado neutro é o Estado que não pode decidir sobre determinados grupos de valores. Claro, nunca se pode ser completamente neutro. O conceito de neutralidade se refere à neutralidade em relação a certos valores sobre os quais se entende que o Estado não deve decidir. Não deve decidir porque, dizem os proponentes da neutralidade, decidir sobre esses valores violaria a liberdade das pessoas. Para John Rawls, um famoso neutralista, por exemplo, o Estado deve decidir tão somente sobre questões mais individuais, a que damos o nome de direitos – por exemplo, garantia de liberdade, segurança, alocação justa de recursos – e não deve decidir sobre valores mais coletivos, a que damos o nome de bens – por exemplo, a amizade, a promoção das artes e do conhecimento. O Estado, em outras palavras, não pode intervir sobre as concepções do bem que os indivíduos porventura tenham – por exemplo, sobre amizade, sobre conhecimento.
A autonomia para fazer o bem
2) Autores liberais contemporâneos, como Joseph Raz, são contrários à ideia da neutralidade do Estado. Eles entendem que a razão demanda que o Estado deve decidir na medida necessária para assegurar a liberdade, a autonomia de todo e cada agente. Isso implicará em que não haja restrição temática das decisões do Estado; que não haja, como queria Rawls, uma prioridade dos direitos sobre os bens – por exemplo, da liberdade sobre a promoção do conhecimento. Ronald Dworkin vê o assunto da mesma forma – aliás, mudou de opiniãona idade mais madura para vê-lo assim. Ele fala em que o Estado deve buscar um equilíbrio reflexivo entre todos esses valores em decidindo a coisa certa a se fazer. Não deve priorizar o direito sobre o bem – por exemplo, a segurança sobre a amizade. John Finnis, como Dworkin, acha que quaisquer prioridades entre valores seriam arbitrárias (Raz, também, diz que os valores são incomensuráveis, não se podem medir, a priori, uns em relação aos outros; não há prioridade categórica entre um ou outro valor). Para John Finnis, o que devemos buscar é um princípio de razoabilidade nas escolhas dos valores a perseguir. Mas todos os valores devem ser considerados.
3) Quando pensamos na internet fica claro que não dá de fato para se basear nas ficções arbitrárias do Rawls. O Estado tem de decidir sobre um amplo espectro de questões, sobretudo porque essas questões estão claramente implicadas na arquitetura da rede. Por exemplo, não dá para deixar de pensar na promoção do conhecimento ou mesmo na questão da amizade quando falamos em regular a arquitetura da Internet – pensemos no Facebook, por exemplo, e em como as expectativas de privacidade que podemos ter em função da arquitetura do Facebook vão favorecer ou desfavorecer o estreitamento da expressão de nossos vínculos afetivos. Ou pensemos em como mecanismos de busca contém escolhas invisíveis que determinam como o conhecimento circula. Deve o Estado simplesmente ignorar essas questões? Para os neutralistas, deveria. Para os autores liberais contemporâneos, não. Estes entendem que o Estado não deve ter preconceito sobre uma ou outra área, mas sim buscar um equilíbrio reflexivo, razoável, entre elas. Para Joseph Raz, devemos fazê-lo sempre pensando na promoção da autonomia que, segundo Raz, é autonomia para fazer o bem; ou seja, uma autonomia socialmente situada.
Não existem critérios puramente técnicos
E então voltamos à questão da neutralidade da rede. Como na neutralidade política, a neutralidade da rede demanda que certas áreas, certos valores não sejam tangidos pelo provedor de conexão. Implica igual prejuízo valorativo arbitrário, e mesmo muito mais estrito, que no caso da neutralidade política. Deve-se excluir do provedor de conexão qualquer decisão sobre qualquer espectro mais amplo de valores. Mas não há consenso sobre que áreas excluir das decisões dos provedores. Para o Comitê Gestor da internet no Brasil (CGI.br), por exemplo, o provedor só pode fazer escolhas de natureza técnica ou ética (critérios de natureza moral ou política estão excluídos). Para o Marco Civil, só pode fazer escolhas de natureza técnica. Está no artigo 9º do PL 2126. Mas como, no caso do CGI.br, por exemplo, distinguir o moral do ético? No caso do Marco Civil, não pode o ético. Mas a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça dá o exemplo de priorização de banda para a realização de telemedicina (p.ex. para transmissão de vídeo de cirurgias cardíacas) como compatível com a neutralidade da rede. Pode o provedor fazê-lo mesmo se for reduzir a largura de banda de outros serviços? Essa é uma questão puramente técnica ou é também uma questão ética e moral – de priorizar a vida sobre, por exemplo, o ócio?
O Marco Civil diz que o provedor só pode adotar critérios técnicos. Mas a RFC 2026 da IETF adota a “justiça” como um princípio da internet. Justiça é critério técnico? O projeto StopBadWare.org definiu que o Green Dam Escort Youth, software de censura que se buscou adotar na China, é badware. Os critérios da classificação foram flagrantemente políticos– baseados em censura e liberdade de expressão. BadWare é critério puramente técnico? O Google bloqueia badware com base nos julgamentos do projeto StopBadWare. Pode o provedor de conexão igualmente filtrar badware tal qual definido pelo projeto? Quando o provedor aplica (e, portanto, necessariamente, interpreta) uma ordem judicial, o critério é puramente técnico? Ou é jurídico, moral, cultural, também? Quando o provedor aplica (e, portanto, necessariamente, interpreta) a lei – o Marco Civil, por exemplo – o critério é técnico? Pode o provedor colaborar na prevenção de cyber-bullying, mesmo que existam discussões sobre a tipificação jurídica do cyber-bullying? É técnico? E sexting, é técnico? Pode o provedor fazer juízos econômicos sobre a alocação de largura de banda? Econômico é puramente técnico?
Em outras palavras, se o provedor aplica a lei, a interpreta, nela baseia seus contratos, faz também juízos éticos, morais, econômicos, sociais em decidindo como organizar a arquitetura de seus serviços com bases em tais juízos. Decide sobre o que é badware, decide sobre como implementar uma decisão judicial, sobre como interpretar um contrato, sobre qual a forma mais eficiente de operar economicamente. Decide sobre qual a forma mais justa de interpretar as normas da IETF (de acordo com a RFC 2026) e nisto tudo baseia a arquitetura de seus serviços. Ou seja, não existem critérios puramente técnicos, como quer o artigo 9o do Marco Civil, assim como não existem critérios puramente jurídicos.
O provedor e a aplicação da lei
Nesse sentido, a FCC recentemente ignorou pedido do Google de que a ideia de justiça fosse afastada como um dos critérios passíveis de adoção pelo provedor de conexão na administração de redes. Tem razão a FCC. O Google queria neutralizar os provedores de serviço de conexão. A FCC não permitiu tal forma de arbitrariedade valorativa – a mesma que, vimos, caracteriza o conceito de neutralidade política. Não excluiu uma, outra ou qualquer área valorativa do âmbito de decisão dos provedores de conexão. Não decidiu que os provedores não podem discriminar com base em uma ou outra ou qualquer dessas áreas. Decidiu que o que não pode acontecer é discriminação irrazoável. Em vez de neutralidade, a FCC adotou um princípio de Administração Razoável da Rede.
É claro que um grau desproporcional de escrutínio sobre a vida privada, por exemplo, pode levar a formas irrazoáveis de discriminação. Mas a discriminação também pode acontecer precisamente para proteger a vida privada – por exemplo, ao se filtrar Spam, que não é somente um conceito tecnológico, mas altamente normativo também. Spam é indesejável, assim como outras pragas virtuais serão – ética, normativamente – indesejáveis. O futuro das pragas virtuais, aliás, está apenas começando.
Há também discussões mais amplas que podem e devem ser promovidas. Por exemplo, pode o provedor implementar mecanismos na camada da rede, a pedido do próprio usuário, para filtragem de pornografia? Essa é uma discussão em curso no Reino Unido. É meramente técnico? Ou é ético, mas a pedido do usuário e, aí, pode? A questão não é, então, sobre razoabilidade em vez de sobre qual a natureza valorativa do conteúdo (ética, técnica etc.) ? Outra questão é sobre a implementação de filtros para promover a aplicação da lei. Digamos que há um vídeo que viola, de forma gravíssima, a vida privada de alguém. Pode o provedor colaborar de qualquer forma na filtragem de tal vídeo? Todo mundo discorda na área propriedade intelectual (da Lei HADOPI, do “Digital Economy Act” etc.) – eu inclusive.
Mas na área dos direitos da personalidade eu defendo a importância de formas extra-judiciais de tutela (ver minhas sugestões ao art. 15 do Marco Civil no e-democracia). Nos EUA, a FCC não excluiu a possibilidade de o provedor colaborar na aplicação da lei. Até que ponto o provedor deve colaborar é uma outra questão. Mas, novamente, é uma questão de razoabilidade, envolvendo critérios técnicos, éticos, jurídicos, morais, sobre os quais o provedor jamais será neutro – ainda que, em respeito ao que é razoável, ao bem comum, à liberdade do usuário, tenha um dever de medir criteriosamente o escopo de sua intervenção.
Liberdade sem razoabilidade, liberdade não é
Mais importante, porém: o end-to-end principle foi uma característica original da internet, uma característica que, em imensa medida, permanece e que se espera tenha longa, longa vida. Ele foi contudo concebido por seus proponentes – Saltzer, Reed e Clark– como uma regra geral e, portanto, uma regra que comporta exceções, uma regra não absoluta. Como regra geral, o end-to-end principle deve ser um critério a ser obrigatoriamente considerado pelos provedores de conexão e pelos órgãos reguladores em decidindo sobre a questão da razoabilidade. Uma forte presunção deve operar em seu favor – uma presunção de que end-to-end é, em regra, razoável e compatível com os valores que originalmente inspiraram a criação da internet: o comunalismo, o universalismo, o desinteresse, e o ceticismo organizado. Isto é, o CUDOS Mertoniano, de que o Dan Burk fala, com muita propriedade, no artigo “Cyberlaw and the Norms of Science“. Mas, novamente, como aplicar esse princípio – e os valores a ele subjacentes – no universo pluri-contextual da internet é algo que não pode escapar ao juízo de nenhum agente que exerça com liberdade e, portanto, razoabilidade suas atividades no mundo contemporâneo.
Sobretudo, deve-se ver que os valores que inspiraram a criação da internet não se aplicam somente aos provedores de conexão à internet. Todo e qualquer agente, que opere em qualquer camada da internet, deve ser um guardião desses valores. Um dever de razoabilidade, que dê corpo e aplicação a esses valores, deve ser extensível a todo e qualquer agente do ambiente informacional. Este debate não é apenas sobre os provedores de conexão à Internet. Ele se diz com a liberdade e com a razoabilidade de todos nós. A internet não comporta a liberdade infinita de nenhum de seus agentes. A infinitude da liberdade de um é a nulidade, neutralidade da liberdade do outro. Devemos encontrar formas razoáveis de livre coexistência, e não de aniquilação valorativa. Liberdade, sem escolhas (justas) de valores, sem razoabilidade, liberdade não é.
***
[Marcelo Thompson é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong]