Participei recentemente de uma reunião com jeito de seminário, convocada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação para discutir o texto-plataforma de um “Marco Regulatório das Comunicações no Brasil”. Participaram do evento cerca de 200 delegados de diversas entidades mais ou menos ligadas às razões do FNDC.
Apesar da importância civilizacional das questões em debate, a impressão com que saí de lá foi esta: sob a rotulagem de lutas por liberdade de expressão, o evento teve tom e fisionomia de confusa aglomeração de vozes partidárias, mais interessadas em manter agitado o caldeirão da panfletagem militante do que em discutir com seriedade e visão ética a questão do direito à informação e da liberdade de expressão. Aliás, na essência dos respectivos significados, esses são conceitos mais redundantes do que complementares – já que o direito à informação inclui o direito à liberdade de dizer.
Claro que nem tudo foi panfletagem operacional inserida em disfarçadas rusgas por nacos de poder. De algumas falas (as mais lúcidas e sinceras, pronunciadas pelos parlamentares federais Ivan Valente, do PSOL, e Luiza Erundina, do PSB) ouvi bons argumentos em favor da liberdade de expressão como valor essencial de democracia. Porém, nas falas que deram tom preponderante à reunião o que se expressava eram movimentos táticos, por vezes raivosos, para a demarcação de espaços mais ou menos partidários, nos tabuleiros dos embates ideológicos.
Ora, qualquer discussão séria que se queira fazer sobre direito à informação (o que inclui a liberdade de expressão) terá que ter na Constituição em vigor o ponto de partida e o ponto de chegada.
“É vedada toda e qualquer censura”
A Constituição pode não ser, e não é, um Marco Regulatório de normas porque existe no espaço dos princípios e dos valores, como idealização da nação que queremos ser. Olhando-a na sua dimensão de compromisso civilizacional, podemos dizer que temos uma Carta Magna moderna, ousada, humanista, inserida numa fronteira ética e cultural das mais avançadas do mundo. Inclusive no que se refere aos preceitos estabelecidos para a Comunicação Social. Propor um Marco Regulatório da Comunicação com base em discussões e preocupações que colocam em segundo plano as razões constitucionais (ainda que usadas como pretexto retórico) é assumir deliberadamente o risco de empurrar o Brasil para trás. Porque se renuncia ao desafio e à oportunidade de oferecer ao país normas regulatórias vinculadas a valores e princípios, que das normas, e nelas, deveriam ser o âmago.
A relação de causa-consequência entre o princípio e a norma é vital para os avanços da civilização. Por esse entendimento (permitam-me o exemplo), é o princípio do direito à vida que dá sentido e essência à lei penal condenatória dos assassinos. Sem a relação de causalidade entre o princípio e a norma, em vez de democracia, construiremos ditadura – e quem, com ou sem tortura, sofreu as arbitrariedades do regime militar sabe do que estou falando. Exatamente porque essa relação de causalidade entre princípios e normas passou bem ao largo das discussões a que assisti, o documento de vinte pontos aprovado como “Plataforma para um novo Marco Regulatório das Comunicações no Brasil” resultou num texto do começo ao fim marcado pelo tom autoritário, meramente disciplinador.
Embora atenuado pela moldura de boas razões, provavelmente também de intenções não tão boas, o tom e o nexo autoritário do texto dão ao documento a funcionalidade de janela aberta a tentações censórias. O que, ademais, pode condenar à inutilidade todos os esforços desenvolvidos até agora pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
Isso, por uma razão tão simples quanto esta: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” – para que possa ser livre “a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
É o que diz a Constituição, pela qual zelam as instituições da República. Entre elas os tribunais superiores.
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[Carlos Chaparro é doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na ECA]