Quando recebeu a função de ser o relator do Marco Civil da Internet, em abril, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) estava otimista. Hoje o sentimento mudou: virou “orgulho e sensação de missão cumprida”. De fato, ele conseguiu transformar um projeto que inicialmente parecia vago – “definir direitos dos usuários de internet” – em um projeto de lei enxuto e conciliatório. Mas isso não foi o suficiente.
Para entender o princípio do Marco Civil da Internet, é preciso retroceder às primeiras leis que queriam controlar e monitorar a web. Com medo de que as propostas restringissem a liberdade dos usuários, o Ministério da Justiça e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro propuseram, em 2009, uma espécie “Constituição” online. O texto passou por uma consulta pública inovadora em WordPress, sofreu várias modificações, foi para a Casa Civil e só em 2012 chegou à Câmara. Nas mãos dos deputados, o projeto ainda correu por audiências, consultas e, enfim, foi formatado na versão que Molon apresentou na primeira semana de julho.
A primeira votação, marcada para a terça-feira passada (17/7), não ocorreu. Foram necessárias alterações no texto. A segunda votação, marcada para o dia seguinte, também foi cancelada. Não houve quórum – não houve apoio suficiente para aprovar o projeto. “Eu considero lamentável. É ruim para o Brasil atrasar essa votação. Os usuários brasileiros estão desprotegidos”, defende o deputado.
Liberdade de expressão sem censura
O Marco Civil é o primeiro projeto a definir os princípios básicos da internet por aqui. Por exemplo: o Facebook pode ser culpado por um post agressivo de um usuário? Em que condições o YouTube pode remover um vídeo? Quem define as regras para uso dos nossos dados pessoais online? Empresas podem proibir aplicativos ou determinados usos da web? Todas essas questões, até hoje, só encontram resposta na jurisprudência – e nem sempre as decisões são feitas por pessoas que compreendem a natureza da rede.
O Comitê Gestor da Internet (CGI), entidade que coordena o funcionamento da rede no país, foi o primeiro a propor um resguardo para a rede, em seu decálogo, publicado em 2009. “A meu ver, a ideia era gerar uma estrutura que resguardasse a abertura e a liberdade da rede. Uma espécie de ‘regulação’ contra regulações”, define Demi Getschko, diretor do CGI e um dos pioneiros da internet no país. O decálogo foi a base para o Marco Civil. Mas nem os princípios são unânimes. Já são três anos de discussões em todos os meios possíveis – blogs, audiências públicas, portal e-Democracia, reuniões – e algumas questões continuam sem consenso.
A primeira delas é a responsabilização dos provedores e das empresas de internet sobre o conteúdo postado pelos usuários. O Marco Civil prevê isenção: empresas não podem ser responsabilizadas civilmente pelo que as pessoas postam, como não são obrigadas a remover conteúdo sem ordem judicial. Elas podem ter políticas próprias e agir de acordo com elas, mas não têm a obrigação de fiscalizar usuários. O provedor só é culpado se, após ordem judicial, não remover o conteúdo. A ideia foi preservar a liberdade de expressão e evitar a censura. Mas isso causa incômodo.
A briga com as teles
O professor de direito Marcelo Thompson, por exemplo, diz que isso tira dos provedores a responsabilidade por controlar conteúdo ofensivo aos direitos humanos – homofobia e pedofilia, por exemplo. O advogado Renato Opice Blum diz que a necessidade de ordem judicial para remover um conteúdo ofensivo pode sobrecarregar o judiciário. “Hoje no meu escritório sai uma notificação de remoção de conteúdo por dia. A diferença é que, com o Marco, trocaria uma notificação por um processo”, diz.
Nem mesmo no governo federal, que aprovou no texto em 2011 e o encaminhou a Câmara, há consenso sobre o texto. O ponto de conflito é a neutralidade de rede, o princípio que define que os provedores não podem privilegiar usuários ou conteúdos específicos, e nem regular a maneira como as pessoas usam a rede. A primeira versão do texto de Molon estabelecia a neutralidade e suas exceções seriam em caso de emergência ou questões técnicas. A neutralidade seguiria os princípios do CGI – e esse ponto preocupou o governo. A Casa Civil e a Secretaria de Relações Institucionais mostraram a Molon a preocupação de que o Marco estivesse vinculando a regulamentação a um órgão que não tem poder regulamentador. Foi esse encontro que provocou o primeiro adiamento da votação de terça para quarta-feira e uma das alterações no texto: Molon preservou o conceito de neutralidade, mas disse que sua regulamentação ficaria a cargo da Presidência.
Não resolveu. A briga agora é com as teles. “O conceito de neutro é muito difuso”, diz Eduardo Levy, diretor do Sinditelebrasil, que representa a indústria de telecomunicações no país. “Era preciso que ficassem mais explícitos os critérios pelos quais empresas podem gerenciar as redes”, diz. Ele também critica o poder dado ao CGI. “O CGI é um comitê, suas decisões nem sempre são consenso. Muitas vezes levam em consideração apenas a noção, aquilo que acham que seja.”
Caminho longo e sinuoso
Quem regularia a neutralidade? “Se não for a Anatel, quem vai ser?”, pergunta Levy. “O CGI não tem poder nem capacidade. Uma agência como a Anatel tem estrutura, corpo técnico. Gostando ou não, ela pode ir mais por um lado do que por outro, mas ela tem a autoridade”. A agência diz que “aguarda aprovação para avaliar a necessidade de qualquer regulamentação”.
Hoje a neutralidade é definida pela Lei Geral das Telecomunicações, que proíbe a discriminação de qualquer tipo de conexão e de usuários “quanto às condições de acesso e fruição do serviço”. A lei também diz que a internet não pode ser confundida com telecomunicações – é um serviço de valor adicionado. Segundo Getschko, há uma intenção de incorporar a rede ao domínio das telecomunicações. “O fato das teles atuarem também como provedores gera busca adicional por parte delas para isso”, diz.
Molon diz que, na forma como está, o texto do Marco Civil não permitiria que a Anatel regulamentasse o tema. “Endurecemos nesse ponto”, afirma. Segundo Levy, as teles não chegaram a analisar a última versão do texto por falta de tempo. “O adiamento foi prudente”, diz, reconhecendo a atuação de Molon: “Ele sempre ouviu as partes interessadas”.
O Marco Civil ganhou, nas previsões mais otimistas, um mês para ser discutido até ser votado em agosto. Mas, em ano de eleições, é impossível prever o comportamento dos parlamentares. O caminho ainda é longo e sinuoso. A espera continua.
***
[Tatiana de Mello Dias, do Estado de S.Paulo]