Se você nunca ouviu falar em neutralidade de rede, é bom prestar atenção ao assunto. O tema envolve um debate sobre quem controla o tráfego na web, e tem como pano de fundo uma disputa comercial entre operadoras de telecomunicações e grandes grupos de internet, que ameaça explodir nos próximos meses. Isso tudo pode parecer distante do dia a dia das pessoas comuns, mas dessa discussão depende a maneira como todos nós vamos acessar a internet no futuro – e quanto vamos pagar para fazer isso.
O problema básico é a explosão do tráfego de dados nas redes de comunicação – principalmente fotos e vídeos –, que passaram a sobrecarregar a infraestrutura existente, causando lentidão no acesso à internet. É um problema que só tende a se agravar. A previsão da Cisco, fabricante americana de equipamentos para redes, é que em 2016 circularão mensalmente 1,3 zetabyte de dados por meio de redes fixas e móveis em todo o mundo, quatro vezes mais que os 369 exabytes atuais. No Brasil, o caso é ainda mais grave: a expectativa é de um aumento de oito vezes, para 3,5 exabytes mensais em 2016. Para comparação, 1 exabyte equivale a 250 milhões de DVDs. Já 1 zetabyte tem 1.000 exabytes, que comportam 250 bilhões de DVDs.
Para dar conta desse movimento, a previsão da União Internacional de Telecomunicações (UIT) é que serão necessários investimentos em rede da ordem de US$ 800 bilhões nos próximos cinco anos, sem os quais a internet pode parar.
Discussão complexa
As operadoras de telecomunicações dizem que essa conta deve ser repartida com as empresas de internet, como Google, Yahoo e Facebook. O argumento é que boa parte do tráfego é gerado por serviços como o YouTube, do Google, e o Skype, da Microsoft, e que seria justo que essas companhias respondessem por parte do aumento da infraestrutura.
“Ou revemos esse modelo, ou os investimentos [em rede] serão travados”, disse ao Valoro executivo de uma operadora brasileira, que prefere não se identificar. “Nenhuma operadora no mundo imaginou que haveria tamanha explosão no consumo de dados”.
Para muitos, o argumento não se justifica. No 9º Congresso Brasileiro de Jornais, realizado no início da semana, em São Paulo, Carol Conway, diretora de assuntos regulatórios do grupo Folha, disse que as empresas de telecomunicação detêm mais de 66% das receitas dos serviços de banda larga, com margens operacionais em torno de 30%, o suficiente para investir mais na infraestrutura.
A questão do investimento é apenas parte da história. Desde os anos 90, quando a internet ganhou escala global, prevalece a premissa de que todos os dados devem receber o mesmo tratamento em termos de tráfego – não importa a natureza deles, ou se o usuário paga mais ou menos à tele para obter o serviço. Esse é o princípio da neutralidade.
As teles querem mudar as regras. Um usuário que passa a noite fazendo o download de filmes e músicas, segundo as empresas, deveria pagar mais que aquele que só usa a rede para acessar e-mail. As operadoras defendem um modelo pelo qual poderiam cobrar por pacotes diferentes, dependendo do que o usuário acessa, e privilegiando um ou outro acordo com seu perfil de uso, o que já acontece na prática, mas não consideram quebra de neutralidade.
“É errado os Correios terem o serviço de Sedex, que é mais caro, para quem quer que sua carta chegue antes? Mas nem por isso a carta simples, mais barata, vai deixar de chegar”, comparou Eduardo Levy, diretor do Sinditelebrasil, que reúne as operadoras de telecomunicações.
Para os opositores, essa redefinição marcaria o fim da neutralidade da rede e transferiria para as teles o poder de definir o que é prioritário.
No Congresso de Jornais, David Hyman, advogado-chefe da locadora virtual americana Netflix, disse que as operadoras não podem ser contrárias à expansão de serviços on-line gratuitos ou mais baratos. “São esses serviços que vão aumentar a procura pelo usuário por mais banda larga e, portanto, darão mais receitas a elas”, afirmou.
Carol, da Folha, disse que a internet é de todos os que colocam conteúdo na rede – e não de quem constrói a infraestrutura. Deixar que as teles tenham esse poder, comparou, é o mesmo que permitir que a fábrica de papel defina o que será escrito nas páginas produzidas com essa matéria-prima.
A discussão é longa. As operadoras não querem “comandar a internet”, disse ao ValorAndré Borges, diretor de regulamentação e estratégias da Oi. “O que pedimos é uma gestão de nossa infraestrutura, pela qual o usuário que precisa de mais velocidade pague mais por ela.”
Qualidade da conexão
Um fator decisivo no debate está marcado 19 de setembro, quando está prevista a votação, pelo Congresso Nacional, da redação final do Marco Civil da Internet. O documento, que teve sua votação adiada duas vezes, foi elaborado em 2011 pela Casa Civil, com os Ministérios das Comunicações e da Justiça. Até agora, só a Holanda e o Chile têm legislações semelhantes.
A Holanda proíbe qualquer tipo de gestão de rede por parte dos provedores de infraestrutura. Todo e qualquer questionamento sobre a quebra de neutralidade deverá ser decidido via Judiciário. O Chile aprovou uma solução híbrida, que permite algum gerenciamento, de caráter técnico, pelas operadoras.
O Ministério das Comunicações informou que ainda estuda as questões sobre a divisão de custos entre teles e empresas de internet e a possibilidade de operadoras cobrarem preços diferentes pelo uso da rede.
A previsão é que, como ocorre no Chile, seja permitido algum tipo de controle pelas teles, mas restrito a critérios técnicos. Barrar um spam (publicidade não desejada) é um modo legítimo de gerir a rede, disse ao Valoro deputado Alessandro Molon (PT/RJ), relator do projeto do Marco Civil. “O que não pode é privilegiar conteúdos de parceiros de um mesmo grupo econômico em detrimento de outra empresa. E sabemos que isso acontece”, afirmou.
A mesma posição é adotada pelo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. “Um usuário de Skype [serviço de telefonia via internet] não pode ter uma conexão lenta, mas um e-mail pode levar alguns minutos para chegar, sem prejudicar o consumidor”, disse o ministro.
Procurados pelo Valor, representantes do Google e do Facebook no Brasil não se pronunciaram.
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Expectativa para reunião em Dubai
A posição brasileira sobre os temas mais polêmicos da neutralidade de rede é aguardada com ansiedade pelos setores envolvidos na disputa. A expectativa é que o Brasil poderá ter uma influência importante na Conferência Mundial sobre Telecomunicações Internacionais, marcada para dezembro, em Dubai.
O evento tem como meta esboçar um novo tratado de internet. O mais recente foi feito em 1988, na Austrália, quando o setor de telecomunicações era quase exclusivamente de telefonia fixa.
No mês passado, o secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações (UIT), Hamadoun Touré, disse, em entrevista ao Valor, que o modelo de negócios atual tem de ser revisto para garantir a ampliação da infraestrutura que, segundo a UIT, vai requerer US$ 800 bilhões globais em cinco anos, sob o risco de graves panes.
Segundo Touré, esse debate é exigido pela evolução do setor, marcado pela chegada da internet às redes de celulares e o surgimento de novos e poderosos fornecedores de serviços como Google, Facebook, YouTube e eBay, entre outros, que são grandes utilizadores da infraestrutura e não pagam pelo tráfego que geram nas redes.
No Brasil, uma reunião ocorrida no dia 16, a portas fechadas, entre representantes das teles mundiais e do governo, não chegou a conclusão alguma sobre quem bancará a conta. O encontro foi realizado em Brasília.
Segundo Maximiliano Martinhão, secretário de telecomunicações do Ministério das Comunicações, o governo espera a aprovação do Marco Civil da Internet para definir o posicionamento que o país assumirá em Dubai. “O que for definido no Marco Civil, servirá de direcionamento para a conferência”, disse.
No mês passado, o governo francês anunciou a criação de uma comissão que vai estudar a tributação das grandes empresas de internet. A previsão é de que, até o fim de setembro, haja alguma proposta concreta. (JC)
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Qualidade ainda é falha
A discussão em torno da neutralidade de rede, no Brasil, tem de, necessariamente, passar por um prévio debate em torno da qualidade dos serviços não só de banda larga, mas de telecomunicações em geral. “Não está havendo a prestação de um serviço com o mínimo de qualidade”, disse o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) João Rezende.
No último mês, a agência proibiu novas vendas de linhas de celulares de três operadoras de telefonia por falta de qualidade no serviço. Mesmo aquelas que não sofreram a sanção tiveram de entregar um plano de metas com detalhes de como irão melhorar e expandir suas redes fixas e móveis. Serão investidos R$ 2,3 bilhões nesses planos, ainda neste ano, segundo divulgaram as operadoras à época.
No caso da banda larga, já na próxima semana a Anatel vai instalar 12 mil medidores de velocidade, para aferir se as teles estão entregando a velocidade mínima exigida pelo órgão regulador, após consulta pública, no ano passado. Até então, por contrato, as empresas eram obrigadas a oferecer apenas 10% da velocidade contratada pelo usuário.
Com esses aparelhos, a partir de outubro, a Anatel vai verificar se a velocidade entregue, em média, tem sido de 60% do que consta no contrato e, no mínimo, de 20%. Após dois anos, essa média tem de ser de 80%.
Um executivo de uma operadora, que preferiu não se identificar, admite que a expansão da demanda por banda larga foi subestimada, porque as redes foram preparadas basicamente para o tráfego de voz, de telefonia fixa ou celular. “Nenhuma operadora, no mundo, imaginou que haveria tamanha explosão de consumo de dados”, disse a fonte.
Apesar disso, segundo o presidente do Sinditelebrasil – que representa as teles –, Eduardo Levy, a medida que visa garantir velocidades mínimas de banda larga é um indicativo de que as empresas estão preparadas para isso. “Garantimos um padrão mínimo de qualidade, que é melhor que em qualquer país do mundo. Mas queremos ter o direito de cobrar mais pelo uso maior”, disse.
Juntas, as teles têm investido, segundo dados da consultoria Teleco, cerca de R$ 20 bilhões anuais em infraestrutura. “O problema é que, com uma carga tributária acima de 40%, fica difícil investir cada vez mais e ainda construir redes para um tráfego que beira o infinito”, afirmou um executivo de operadora. (JC)
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Fiscalização é ponto polêmico no Marco Civil
Não bastassem os pontos polêmicos ao redor da neutralidade da rede, outra questão difícil aguarda por uma definição no Brasil: quem, afinal, vai fiscalizar a administração da internet, depois de aprovado o Marco Civil? Na maioria dos países, essa incumbência é das agências que controlam o setor. No Brasil, o texto final dessa espécie de Constituição da internet atribui ao Comitê Gestor de Internet (CGI) a tarefa de recomendar o que deve ser feito pelas teles.
O CGI foi criado em 1995 por meio de uma portaria. O colegiado é formado por 21 representantes de diversos segmentos, incluindo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) até operadoras, provedores de serviços, terceiro setor e governo federal.
A prerrogativa do comitê é recomendar à sociedade, por exemplo, o que fazer no caso do surgimento de um novo vírus, ou como proteger grandes servidores de empresas de ataques virtuais. No caso do Marco Civil, o comitê vai recomendar à Casa Civil o que julgar relevante e a presidência da República, por meio de decreto, dará o veredito.
A escolha do CGI provocou desconforto na Anatel e no próprio ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. “Tenho certeza de que a [presidente] Dilma [Rousseff] não aceitará esse tipo de ingerência”, afirmou o ministro ao Valor.
A posição da Anatel ainda é cautelosa. “Qualquer assunto sobre redes de telecomunicação é com a Anatel, mas aguardaremos a posição do Ministério das Comunicações”, disse João Rezende, presidente da agência.
O Ministério tem recebido diariamente representantes das teles com estudos sobre neutralidade. “O que já sabemos é que não concordamos com esse poder dado ao CGI. Mas ainda estamos estudando se é viável alguma mudança no modelo atual, com a possibilidade de repartição de receitas entre teles e outros grupos de internet”, disse Paulo Bernardo.
Segundo o Valorapurou, há um trabalho bastante forte nos bastidores para o fortalecimento do CGI, de modo a diminuir o poder das teles. Representantes de grandes empresas de internet e jornalísticas estariam dispostas a defender a existência de conteúdos totalmente livres e outros que sejam cobrados pelo acesso, mas que, de forma alguma haja qualquer divisão com quem é dono da infraestrutura.
Para um representante de uma tele, que prefere não se identificar, o Brasil está indo na contramão do mundo. “No CGI, cada integrante vai lutar pelo grupo que representa, e não pela liberdade da internet como um todo, que é o discurso usado. É um absurdo cogitar isso”, afirmou o executivo.
Para o relator do Marco Civil, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), é justamente pelo fato de o CGI reunir representantes de diversos grupos que as decisões serão menos parciais. “O consenso de um grupo preparado para tratar a questão é que vai prevalecer, caso haja algum problema de neutralidade”, afirmou.
Segundo Demi Getschko, diretor-presidente do CGI, o comitê não vai interferir na maneira como as teles administram suas redes, nem no trabalho da Anatel. “A rede física, de cabos, sempre será de responsabilidade das operadoras e da agência. O que o comitê vai recomendar é sobre o que passa em cima dessa rede, que é o conteúdo, e isso a Anatel não regula”, disse. Segundo ele, o CGI fará recomendações estritamente técnicas, feitas após amplo debate interno, e o governo federal poderá ou não segui-las.
Mas para o professor Arthur Barrionuevo, da Fundação Getúlio Vargas e ex-integrante do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a discussão vai além. Para ele, a redação do Marco Civil tal como está diz que o CGI recomenda e a presidente [Dilma Rousseff], por decreto, decide.
Para ele, isso indicaria um retrocesso sobre o papel do Estado, e delegaria uma decisão a quem não tem conhecimento técnico para isso. “Se uma estrada está engarrafada por conta de um feriado, a concessionária gere essa estrada, colocando à disposição outras pistas, administrando pedágios. Não precisa consultar a presidência para solucionar um problema que é de sua responsabilidade”, comparou. (JC)