Em novembro a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) completará meio século de existência. Nesse período ela aglutinou os grupos mais poderosos da radiodifusão brasileira, tornando-se um forte polo de defesa dos grandes interesses do setor.
Sua origem, como informa o site da entidade, liga-se diretamente à “luta contra os vetos do presidente João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações [CBT, Lei 4.117/62], em 1962”. Era o momento em que os empresários de radiodifusão começavam a “despertar” para iniciar “o trabalho de esclarecimento da sociedade por meio de seus congressistas”. Em destaque, João Calmon, o primeiro presidente da Abert, que lideraria um grupo de trabalho para discutir os vetos. “O grupo conseguiu reunir em um encontro histórico no Hotel Nacional, em Brasília, representantes de 213 empresas”, informa o site. Os empresários e “seus congressistas” não somente foram bem-sucedidos em neutralizar a ação de Goulart, como, a partir dessa intensa mobilização, fundariam a Abert.
Em junho último, durante o 26º congresso da entidade, realizado na capital federal, seu presidente, Emanuel Carneiro, lembrou essa história, mas não apresentou explicações sobre as circunstâncias históricas em que o CBT foi elaborado e votado e, sobretudo, sobre o que versavam os 52 vetos do presidente da República, afinal derrubados pelo Congresso Nacional.
“Deferimento automático”
O ano de 1962 foi especial. Em outubro seriam realizadas eleições para o Congresso, assembleias estaduais, câmaras municipais e parte dos Executivos estaduais e municipais. A conjuntura política era extremamente volátil: Tancredo Neves renunciara como primeiro-ministro (junho), sendo substituído por Brochado da Rocha, que só ficaria no cargo por três meses, quando Hermes Lima assumiu seu lugar. Goulart lutava para aprovar no Congresso a realização de um plebiscito para que o País decidisse entre os regimes presidencialista, defendido por ele, e parlamentarista, o qual fora obrigado a aceitar após a renúncia do presidente Jânio Quadros no ano anterior. Goulart, vice-presidente da República, era apresentado pela grande mídia da época como alguém que conduziria o País ao comunismo. Diante da ameaça de que sua posse fosse impedida por um golpe que envolvia os chefes militares, aceitou o parlamentarismo.
Inexistiam políticas públicas específicas para as telecomunicações e para a radiodifusão. A maioria das operadoras de telecomunicações era estrangeira e não havia quadros nacionais de dirigentes e/ou técnicos. Essa situação preocupava em particular aos militares que identificavam o setor como estratégico ao interesse nacional e, claro, à “segurança nacional”. Essa preocupação conduziu a uma importante aliança de interesses entre setores militares e empresários de radiodifusão, que viria a se consolidar no tempo e seria característica de boa parte do período autoritário (1964–1985).
Em entrevista publicada em 2007, o historiador Oswaldo Munteal afirmou: “Durante a década de 1960, constituiu-se uma coligação ligada à radiodifusão comercial, cujo objetivo era pressionar o governo e garantir seus interesses econômicos (…). A presença de empresários desse setor no Congresso Nacional permitiu um aumento significativo no poder de pressão do grupo em questão, o qual, legislando em causa própria, tornou-se capaz de anular a maioria das restrições a seus próprios interesses políticos e econômicos. (…) Qualquer decisão governamental que prejudicasse o empresariado da radiodifusão seria repudiada pelo Legislativo. Os vetos de Jango [como também era conhecido o presidente Goulart] ao Código Brasileiro de Telecomunicações, portanto, representaram sua tentativa em minar a força desse setor empresarial, cuja representação política deu-lhe acesso a irrestritos privilégios, além de grande influência na opinião pública, por intermédio dos meios de comunicação”.
Mais importante: encontrava-se em marcha a grande articulação civil-militar que executaria o golpe de 1964 e a deposição de Goulart. Calmon, vice-presidente dos Diários Associados – o maior conglomerado de mídia do País à época –, eleito deputado em 1962, no pleno exercício da presidência da Abert, se constituiu, logo depois, em idealizador e principal articulador da “Rede da Democracia”, que reunia centenas de emissoras de rádio e jornais num combate cotidiano ao governo Goulart, preparando a opinião pública para o golpe.
Quais foram os vetos e as justificativas do presidente Goulart para eles? Um rápido exame dos vetos a dois parágrafos do artigo 33 do CBT pode fornecer algumas pistas. O artigo trata da exploração “por concessão, autorização ou permissão” dos “serviços de telecomunicações não executados diretamente pela União”. Seu parágrafo 3º afirma: “Os prazos de concessão e autorização serão de 10 (dez) anos para o serviço de radiodifusão sonora e de 15 (quinze) anos para o de televisão, podendo ser renovados por períodos sucessivos e iguais, se os concessionários houverem cumprido todas as obrigações legais e contratuais, mantido a mesma idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público”.
A justificativa apresentada por Goulart diz: “O prazo deve obedecer ao interesse público, atendendo a razões de conveniência e de oportunidade, e não fixado a priori pela lei. Seria restringir em demasia a faculdade concedida ao Poder Público para atender a superiores razões de ordem pública e de interesse nacional o alongamento do prazo da concessão ou autorização, devendo ficar ao prudente arbítrio do poder concedente a fixação do prazo de que cogita o inciso vetado”.
Já o parágrafo 4º afirma: “Havendo a concessionária requerido, em tempo hábil, a prorrogação da respectiva concessão ter-se-á a mesma como deferida se o órgão competente não decidir dentro de 120 (cento e vinte) dias”. A alegação presidencial ao veto é: “Não se justifica que, competindo à União o ato de fiscalizar, de gerir, explorar ou conceder autorização, ou permissão ou concessão etc., o seu silêncio, muitas vezes provocado pela necessidade de acurado exame do assunto, constitua motivação para deferimento automático”. E prossegue: “Os problemas técnicos surgidos, as exigências necessárias à verificação do procedimento das concessionárias etc. podem, muitas vezes, ultrapassar o prazo de 120 dias, sem qualquer culpa da autoridade concedente”.
Marco regulatório
De forma geral, a partir de uma leitura atenta e não jurídica dessas e de outras partes vetadas e das justificativas aos vetos, constata-se que, por detrás deles, há uma disputa de poder entre concessionários de um serviço público e o poder concedente; vale dizer, entre os radiodifusores e o Poder Executivo. Os vencedores queriam – e conquistaram – prazos dilatados para as concessões (dez e 15 anos); renovação automática delas; ausência de penalidade (mesmo após julgamento pelo Poder Judiciário) em casos de divulgação de notícias falsas; e assimetria de tratamento em relação a outros concessionários de serviços públicos – alteração da lei de mandado de segurança; reafirmação de normas que já se encontram em outros diplomas legais, inclusive na própria Constituição. A derrubada dos vetos definiu o eixo regulador da radiodifusão brasileira, o qual, apesar de todas as alterações, sobretudo as do Decreto nº 236/76 e da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/97), foi em boa parte incorporado pela Constituição de 1988 e continua em vigor.
Criada na luta contra os vetos de Goulart e com eles identificada, a Abert constitui o grande e vitorioso ator na definição de regras para o setor. O País, no entanto, mudou; não estamos no conturbado 1962. No mundo contemporâneo, o setor de comunicações passou – e ainda passa – por profundas mudanças tecnológicas que afetam radicalmente desde as diferentes formas da sociabilidade humana até os modelos de negócio.
Teria mudado a Abert? A entidade e seus associados se recusaram a participar da 1ª Conferência Nacional de Comunicação e têm tratado o tema da regulação não como uma necessidade, mas como uma ameaça à liberdade da imprensa. Não há, todavia, outro caminho senão a construção democrática de um novo marco regulatório para as comunicações que tenha como horizonte o interesse público e a consolidação do direito à comunicação.
***
[Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012/2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros]