É natural que a cada avanço tecnológico haja adaptação de leis para preservar valores fundamentais da sociedade diante de novas realidades criadas por este mesmo avanço. Não é diferente na grande revolução em curso a partir do desenvolvimento da microeletrônica, base do universo digital, que não para de se expandir. A diferença em relação às revoluções industriais anteriores é que esta rompe paradigmas sem cessar. Se as vantagens trazidas pela gigantesca rede de PCs, smartphones, tablets e o que mais vier a ser criado, permitida pela internet, são inquestionáveis, o poder invasivo de todo este sistema requer cuidados extremos de legisladores, Justiça, organismos de defesa de prerrogativas civis etc.
O debate que se trava há tempos, e não apenas no Brasil, sobre os direitos de propriedade do criador sobre sua obra, neste novo mundo, passa por um momento especial no país, devido ao projeto de lei do Marco Civil da Internet, em tramitação no Congresso. O projeto poderia muito bem passar ao largo da questão, mas o relator, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), ao tratar da postagem de qualquer conteúdo de terceiros na rede – texto, som, imagem – resolveu mudar a jurisprudência em vigor para os casos de reclamação por parte do autor.
Hoje, é aceito que o escritor, músico, cineasta, artista plástico e quem mais for que se sinta lesado ao ter o produto do seu trabalho transportado para a rede notifiquem extrajudicialmente o responsável pela veiculação não autorizada. A partir deste momento, o site, o blogueiro, o YouTube, Google, quem seja, notificado formalmente, mas à margem da Justiça, poderá ser processado, aí, sim, judicialmente, se mantiver o conteúdo no ar.
Mesmo que esta não seja a intenção do relator, o novo mecanismo favorece a pirataria, em prejuízo dos autores. Grandes organizações editoriais e de comunicação podem mobilizar batalhões de advogados para despachar incontáveis notificações judiciais diariamente. Mas não o criador autônomo de conteúdos. Em encontro ocorrido segunda na Academia Brasileira de Letras para se discutir o tema, Paulo Rosa, presidente da Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), deu um balanço das notificações extrajudiciais encaminhadas apenas no ano passado devido à divulgação ilegal na internet: 50 mil de livros, 18 mil de músicas e 15 mil de filmes. Calcule-se o custo destas reclamações por via judicial. E o atravancamento da Justiça, já angustiante, aumentaria ainda mais.
É claro que a grande maioria dos autores estará impedida, por razões financeiras, de reclamar o direito sobre sua obra, para alegria dos piratas – sejam grandes empresas globais de agregação de conteúdos ou sites de aventureiros. É risível, ainda, o argumento a favor da flexibilização dos direitos autorais baseado na “liberdade de expressão”. Equivale a se propor a inimputabilidade dos ladrões de automóveis em nome do direito constitucional de ir e vir.