O conhecido descaso das autoridades pela guarda da memória histórica do Brasil reafirmou-se dias atrás, quando um temporal que atingiu a cidade do Rio de Janeiro danificou parte dos documentos do Arquivo Nacional, responsável por preservar e divulgar os registros públicos. Era de esperar que esses papéis estivessem a salvo de qualquer intempérie, por mais forte que fosse. Mas a precariedade demonstrada pelo Arquivo Nacional desafia essa lógica, e não se trata, infelizmente, de um caso isolado.
A direção do Arquivo negou que qualquer documento tenha sido destruído e afirmou que toma regularmente todas as providências necessárias para preservar seu acervo. Na falta de melhor explicação, colocou a culpa em São Pedro, ao dizer que o volume de chuva naquele dia foi “atípico”. No entanto, salvo no caso de uma catástrofe, é lícito esperar que um prédio resista a uma forte chuva, ainda mais um prédio destinado à preservação de documentos históricos. Já os funcionários da instituição contaram uma versão bem diferente da de seus chefes. Na sua versão, a água da chuva escorria do teto como uma cachoeira, conforme descrição publicada pelo jornal O Globo, algo que não ocorreria se as medidas para abrigar corretamente o acervo tivessem realmente sido tomadas.
As infiltrações no teto são comuns desde o ano passado, segundo os funcionários, mas isso não parece sensibilizar as autoridades, embora a resolução do Conselho Nacional de Arquivos com recomendações para a construção desses prédios diga o óbvio, isto é, que “a impermeabilização de áreas de cobertura é muito importante, pois evitam-se problemas de vazamento que poderiam comprometer a segurança do acervo”. Mais óbvio ainda quando se trata de uma instituição que guarda documentos do Brasil dos séculos 16 ao 21, cujo valor é inestimável.
A direção do Arquivo diz ter enviado um pedido ao Ministério da Justiça, ao qual a instituição é vinculada, para obter R$ 1,6 milhão para obras emergenciais. Não há notícia, por ora, de que esse pedido já tenha sido atendido, mas ressurge, aqui, o velho hábito da administração pública brasileira de viver de paliativos e remendos, até o próximo desastre – que também custará outro milhão de reais em obras provisórias. Parte do material atingido no Arquivo, por exemplo, estava em um andar oficialmente reformado em 2004.
Os funcionários do Arquivo dizem que há muito tempo o prédio da instituição, uma bela construção do século 19 no centro do Rio, apresenta problemas estruturais importantes. As inundações são frequentes em época de chuvas fortes e, como no caso mais recente, não só os documentos correm riscos, mas também os funcionários e os equipamentos – o teto de um refeitório desabou e computadores ficaram molhados.
Os servidores da instituição contam que entre os documentos atingidos estão os originais do Tribunal de Segurança Nacional do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), papéis do Serviço de Informação do Ministério da Justiça com registros do regime militar e documentos sobre negócios da época do reinado de d. João VI (1816-1826), além de registros do Marquês de Barbacena (1772-1842). Documentos raros sobre a Lei Áurea por sorte estão em uma área do Arquivo que não sofre inundações e se salvaram.
Os problemas do Arquivo são semelhantes aos de outra instituição com sede no Rio, a Biblioteca Nacional, que no ano passado sofreu inundação em razão do vazamento de um duto de ar-condicionado, atingindo jornais e obras antigas e expondo o estado lamentável de suas instalações. Como de hábito, houve promessas de reformas e investimentos, além das tentativas de minimizar a extensão do desastre, que não foi o primeiro do gênero no local.
Dada a inegável importância do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional, é urgente tornar prioritária – de fato, e não apenas em discursos – a manutenção adequada desses espaços, impedindo que a História se desmanche na próxima inundação.