Quando o governo de Hugo Chávez, na Venezuela, decidiu que não renovaria a concessão pública da RCTV, emissora de maior audiência no país, o assunto virou tema de destaque na imprensa brasileira. Não pude deixar de pensar o que aconteceria se algum governo fizesse o mesmo com a TV Globo aqui no Brasil. Isso foi em maio de 2007. Mesmo mês em que o I Fórum de Comunicação de TVs Públicas desenhou a proposta básica do que seria a futura Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Seis anos depois, acompanho – atônita – o silêncio que gira em torno da consulta pública da Anatel dando novo uso à frequência dos 700 MHz UHF. Por trás do palavreado hermético da radiodifusão, uma decisão política travestida de técnica: destinar os canais 60 a 69, hoje exclusivos das emissoras públicas, à telefonia privada para implantar a internet 4G. “Eu me sinto como o ribeirinho na audiência sobre a grande hidrelétrica. Temos que desocupar a terra para que o progresso avance”, teria desabafado o presidente da EBC, Nelson Breve, ao site Convergência Digital, um dos raros a noticiar o flagelo.
Mas o que surpreende não é que a medida fique fora do noticiário dos hipertrofiados sistemas privados de comunicação. Lutar por emissoras públicas não está na agenda dos latifundiários da mídia. Na verdade, o que é desconcertante é a inexpressividade do tema na própria EBC. Na Agência Brasil uma matéria avisa sobre a audiência pública na Anatel, informa que as TVs terão que desocupar o espectro para abrir caminho para a internet móvel, mas não diz que são as TVs públicas que serão atingidas. E na TV Brasil, que pode desaparecer de cidades como São Paulo, o fato não virou nem “nota pelada” – aquela notícia lida no estúdio por não ter importância suficiente para se transformar em reportagem – de seu jornalismo.
Mais atores
Não era de se esperar da EBC o proselitismo de empresas como o Clarín, na Argentina, a RCTV na Venezuela, ou a Globo, no Brasil. Mas ao deixar de informar a decisão da Anatel, a EBC tirou a chance de a sociedade participar de uma discussão que é fundamental para a organização de poderes em um país marcado pela concentração da mídia. Agora, a estrutura sonhada, discutida e desenhada naquele ano de 2007 está ameaçada e, mesmo sob agressão, não consegue exercer o seu papel: entre sangrar a própria carne ou distanciar-se da agenda do governo, a EBC opta pela primeira.
Existe exemplo mais claro para mostrar que falta autonomia para esse sistema de comunicação? Evidente que autonomia se conquista com orçamento próprio, mas muito mais importante que isso é o interesse em construir uma política de Estado: um sistema de comunicação independente de poderes econômicos e políticos. Trata-se de um interesse muito distinto daquele que jogou no colo das empresas de telecomunicações um presente de R$ 6 bilhões em renúncia fiscal a título de "incentivo" para o novo Plano Nacional de Banda Larga ou o pacote que isentou as empresas de jornalismo da cota patronal do INSS – e que vai significar outros R$ 1,2 bilhão que deixa de ser arrecadado aos cofres públicos.
Faça as contas. Só em benefícios fiscais, o investimento público no setor privado das comunicações será mais de 15 vezes maior que orçamento da EBC em 2013. Isso, sem levar em consideração que mais de 80% da verba publicitária do Palácio do Planalto concentra-se em cinco emissoras. Todas privadas. O nome disso é prioridade e está claro que ela não está focada em um projeto de comunicação comprometida com a formação crítica e com a cidadania.
A independência nos conteúdos e o compromisso com a comunicação pública são apontados como valores que norteiam a ação da empresa. Mas a verdade é que essas bússolas parecem que ainda não estão ao alcance da tripulação que segue nesse barco. São valores que ainda não se tornaram prática. Transformar as ideias em cotidiano exige disposição e coragem para enfrentar resistências. Localizar as estruturas que vêm se consolidando junto à EBC e que estão mais próximas desse norte é importante para o resgate do projeto original. O Conselho Curador da EBC, que tem pontuado a discussão sobre a autonomia, tem se mostrado como uma dessas instâncias. Mas parece fundamental e urgente encontrar mais atores dispostos a quebrar o silêncio.
P.S.Para quem quiser se fazer ouvir, a Consulta Pública nº 12 (Proposta de Regulamento Sobre Condições de Uso de Radiofrequências, na Faixa de 698 MHz a 806 MHz) segue aberta a participações no site www.anatel.gov.br, até o dia 5 de maio.
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Eliane Gonçalves é jornalista e integra a equipe da EBC