Ao dedicar atenta leitura sobre os dados da pesquisa “Perfil do Jornalista Brasileiro – Características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico em 2012”, lançada no início de maio, resultado de um trabalho de fôlego dos pesquisadores e jornalistas Jacques Mick e Samuel Lima, foi como se materializasse um grande álbum com fotografias inquisidoras e provocativas a respeito da profunda transformação que afeta a profissão e que, talvez, seja a maior já vista desde Gutenberg.
Os dados da minuciosa e maior pesquisa já realizada no Brasil reúnem respostas de 2.731 profissionais que trabalham na mídia, fora dela – em atividades como assessoria de imprensa – e na docência, em todas as regiões do país, e que embasarão, sem dúvida, um sem-número de outras pesquisas sobre a identidade profissional do jornalista brasileiro.
A fotografia que abre este álbum mostra que o jornalismo brasileiro é feito majoritariamente por mulheres, jovens, brancas, solteiras, que recebem salários mais baixos que os homens e também ocupam posições hierárquicas ainda no início da cadeia. Em suma, a invasão das mulheres na profissão aconteceu, mas elas ainda não galgaram os postos de comando, o que suscita um estudo de gênero e seu impacto no modo de se fazer jornalismo quando o fenômeno começar a se concretizar pelas próximas duas décadas, pelo menos.
A discussão que se pode construir a partir deste prisma é palpitante. Entretanto, uma outra fotografia parece saltar à primeira página revelando numericamente a precarização e exploração do trabalho do jornalista brasileiro.
Feridas éticas
De acordo com os dados, quase metade dos profissionais que responderam a pesquisa trabalha mais de oito horas por dia e somente 11,6% têm jornada de até 5 horas. Pouco mais de 60% dos profissionais no Brasil ganham até cinco salários mínimos e 56,9% têm um emprego ou fonte de renda, enquanto, 29,3% disseram ter mais de um emprego.
Dos profissionais respondentes que trabalham só em mídia, apenas 59% têm carteira assinada, o restante trabalha como freelancer e PJ. Aliás, na mídia, o número de freelancers é duas vezes maior que fora dela. Além disso, 76% dos profissionais afirmam que têm toda ou a maior parte de sua produção divulgada também pela internet e 8,4% disseram ter metade também publicada na web. Não só: quase 10% afirmaram acumular funções como as de captação de imagem – foto ou vídeo. O retrato ainda mostra que 12,4% dos profissionais trabalham em redações com apenas um contratado e 22,6% em locais com um a três colegas. Entre cinco a vinte jornalistas nas redações estão 28,5% dos respondentes. Não é difícil imaginar, então, o consequente acúmulo de funções.
Em uma leitura resumida, esses jovens profissionais trabalham mais de oito horas por dia, ganham até cinco salários mínimos, pouco mais da metade tem carteira assinada e ainda acumulam funções por conta das novas mídias e enxugamento das redações, além de “doarem” grande parte do seu trabalho para que seja publicado na internet.
Este é o retrato da precarização e exploração da profissão no Brasil. O tsunami “internet” veio não apenas afetar o modelo de negócio dos veículos de mídia, mas também – e por conta disso – provocar uma profunda transformação nas funções jornalísticas e na identidade dos seus profissionais, deixando expostas feridas éticas e fazendo virar pó valores-base como a boa apuração, a reportagem in loco, a pesquisa, variedade e confiabilidade de fontes e, portanto, a precisão.
Cenário complexo
A instantaneidade que hoje se vivencia, com deadlines contínuos – “dar primeiro, checar depois” –, com as multitarefas que chegam até ao monitoramento da interatividade dos seus leitores, faz com que esses profissionais não tenham mais tempo de sair da redação, de manter o rigor na apuração, de checar suas fontes. Tornaram-se “empacotadores de notícia” (Bastos, 2012).
É de se entender com este cenário o que aconteceu nos bastidores do erro de grande parte da imprensa nacional e regionalizada, que publicou – e, portanto, legitimou – uma nota veiculada em um falso perfil da Boate Kiss no Facebook, durante cobertura da tragédia de Santa Maria (RS) em que morreram 242 jovens. A nota que alegava que “todos os funcionários eram devidamente treinados para situações de contingência” foi reproduzida pela grande imprensa, sem checagem. Momentos depois, os advogados da casa noturna vieram a público desmentir a autoria do texto e retiraram do ar o perfil verdadeiro da boate.
Da mesma tragédia, outro erro. Um falso perfil do ator Bruno Gissoni afirmava estar ele de luto por ter perdido um amigo na tragédia. O post também foi usado por veículos de imprensa sem a devida apuração. Bruno precisou desmentir a informação alegando que a notícia usada pela imprensa não era verdadeira e fora divulgada por um falso perfil.
O jornalismo e o jornalista estão com uma equação matemática complexa para resolver em busca de sua nova identidade. As empresas cada vez mais enxutas valorizam competências técnicas da operação multimídia em detrimento do conhecimento clássico da profissão (texto, apuração, feeling para notícia). Os salários achatados ainda cabem no bolso dos jovens recém-chegados ao mercado ainda sem formação sólida de uma consciência ética do jornalismo, o que expulsa boa parcela dos jornalistas experientes das redações e até mesmo da profissão. Somado a esse cenário, a internet, as novas mídias e suas especificidades de produção colocam em xeque os valores-base citados acima e provocam uma queda generalizada de qualidade do produto jornalístico.
Já temos o retrato do profissional brasileiro com a pesquisa de Mick e Lima. Resta agora preencher a sua carteira de identidade profissional que está se formando em um cenário complexo e de profundas mutações. O jornalismo nunca mais será o mesmo.
Referências
BASTOS, Helder. A diluição do jornalismo no ciberjornalismo. Estudos em Jornalismo e Mídia. Florianópolis, vol. 9, n.1, 2012, p. 284-298
MICK, J.; LIMA, S. Perfil do Jornalista Brasileiro – Características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico. Florianópolis: Insular, 2013
SODRÉ, M.; PAIVA, R. . Informação e Boato na rede. In Jornalismo Contemporâneo: figurações, impasses e perspectivas. Salvador, Brasília, 2011, p. 21-49
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Melissa Bergonsi é mestranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS