Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marco Civil da Internet está em tramitação no Congresso

Enquanto o Brasil se apressa para tentar aprovar uma legislação que regule o uso da internet, após denúncias de interceptação de dados no país pelo governo dos EUA, especialistas divergem sobre a capacidade da Constituição e do Código de Defesa do Consumidor nacionais de proteger a privacidade dos usuários de redes sociais e de serviços de e-mail e busca. Para um grupo de especialistas e professores de Direito, não há dúvidas de que é crime, pelas leis brasileiras, a eventual entrega de informações de cidadãos a um governo estrangeiro sem autorização legal local. Segundo eles, nem mesmo a anuência com os termos de adesão de redes como Facebook e Twitter ou de serviços como o Gmail, do Google, – que pressupõem armazenagem e processamento de informação nos EUA – tornaria legal a transmissão de dados ao governo americano.

Pablo Cerdeira, subsecretário de Defesa do Consumidor da Prefeitura do Rio de Janeiro, cita o artigo 5º, inciso 12, da Constituição (leia ao lado), para dizer que cidadãos brasileiros só podem ter sigilo de dados quebrado por ordem "judicial" em caso de investigação criminal. Para ele, o termo de adesão do Facebook, por exemplo, que prevê a transmissão de dados sob "intimação civil", por si só viola a lei brasileira. "O artigo 51 do Código do Direito do Consumidor diz que são nulas as cláusulas que limitem direitos fundamentais, e o direito ao sigilo é um direito fundamental. No meu entendimento, a cláusula é abusiva e, portanto, nula", diz ele, que prepara estudo sobre regras de adesão a redes sociais no Brasil para rastrear pontos problemáticos.

O ex-procurador-geral do estado de São Paulo José Geraldo Filomeno, um dos autores do anteprojeto que resultou no Código de Defesa do Consumidor, também defende que a Constituição ampara os usuários em seu sigilo. "O inciso 10 [art. 5º] fala que são invioláveis a intimidade e a vida privada. A vítima pode, sim, se valer do Código Civil."

Ronaldo Lemos, colunista da Folha e fundador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio, concorda que assinalar o "li e aceito" proposto pelas empresas não invalida eventuais reclamações sobre violação da privacidade. "Se houver qualquer violação na lei brasileira, não vão ser os termos de uso que escusarão as redes sociais de responder." Para o professor emérito da Universidade Mackenzie Ives Gandra, o cidadão é responsável pelo contrato que assina ao aderir a qualquer rede. "Se abro mão de um direito individual disponível, de uma informação que pode ser disponibilizada em qualquer parte do mundo, eu estou autorizando [seu uso]", diz.

No protocolo de adesão ao Facebook, por exemplo, o usuário concorda em ter os "dados pessoais transferidos para e processados nos EUA". "Quando o contrato não distinguir para quem não se pode mandar, o princípio é o princípio genérico: é possível mandar para o governo ou particulares", avalia Gandra. O entendimento final, contudo, sempre será do juiz.

Lei local ou dos EUA?

Sobre a suposta espionagem americana, Lemos afirma que "a questão ultrapassa o campo jurídico e vai para o de política internacional" e mostra as complexidades para os Estados nacionais legislarem sobre a rede. No Brasil, o tema envolve não só leis, mas a infraestrutura de comunicações, como centros armazenadores de dados e condições de gerenciar o tráfego de informações.

A presidente Dilma Rousseff conversou anteontem com a ministra Gleisi Hoffmann (da Casa Civil) sobre alterações no projeto de Marco Civil da Internet, que tramita no Congresso, para que a lei declare nulas de pleno direito cláusulas de uso de sites que não estejam de acordo com a legislação brasileira. A subordinação de sites estrangeiros às leis brasileiras é controversa e já chegou aos tribunais. Em decisão de junho, o Superior Tribunal de Justiça determinou que a Google Brasil Internet Ltda. tem obrigação de quebrar o sigilo de um usuário investigado pela Justiça brasileira. Cabe recurso e o tema pode chegar ao STF.

A representação da gigante no Brasil argumentou que o contrato de um usuário brasileiro é com a matriz americana e que seus dados ficam armazenados nos EUA. O parecer do Google sugeriu que a Justiça brasileira pedisse acesso aos dados, por via diplomática, à Justiça dos EUA.

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Flávia Marreiro e Isabel Fleck, da Folha de S.Paulo