Um projeto de lei que pretende regulamentar o artigo 221 da Constituição foi aprovado recentemente por uma comissão especial no Congresso Nacional. O texto trata da regionalização da programação cultural, artística e jornalística das emissoras de TV e rádio. Poderia ser um motivo de comemoração, pois há 25 anos espera-se que as indicações contidas em nossa Carta Magna possam virar realidade e modificar o modelo que faz com que o que se vê na mídia não passe, com frequência, da pasteurização dos nossos costumes, sotaques e opiniões, nos quais mal nos reconhecemos.
Quando o sistema nacional de comunicação foi se consolidando, nas décadas de 1960 e 70, acompanhando e azeitando o processo de integração do mercado nacional, os programas de televisão locais foram sendo substituídos pela produção centralizada no Rio de Janeiro e São Paulo. A autonomia e criatividade das diversas regiões brasileiras foram sendo suplantadas pelas chamadas “redes” nacionais, inauguradas com alarde pela Rede Globo ao lançar o seu Jornal Nacional, que marca a entrada no novo ciclo de concentração monopolística. A integração nacional promovida pela ditadura – pois o Estado construiu nessa época toda a infraestrutura necessária à consolidação das redes- centralizou, assim, os mecanismos de produção cultural e ideológica.
A centralização excessiva traz um problema sério para a democracia, haja vista que a liberdade de expressão “nacional” foi construída, no plano da comunicação, por meio da supressão da diversidade regional e do esvaziamento dos “parques de produção cultural” espalhados pelo país. Em outras palavras, as empresas de comunicação, interessadas fundamentalmente no lucro, enxugaram seus custos, entregaram-se à lógica das redes nacionais e, com isso, desfizeram-se dos instrumentos necessários para a consolidação de indústrias culturais locais e regionais. Nesse contexto, praticamente se impossibilitou qualquer possibilidade de produção independente, criando um sistema de vassalagem entre “cabeças-de-rede” e “afiliadas”.
Produção independente
É isso que a sociedade quer mudar. Não obstante, o texto do relator Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado, “a toque de caixa”, no dia 11 de julho, pela Comissão Mista de Consolidação das Leis, não enfrenta esse cenário. Ele desconsidera discussões que se prolongam há décadas, bem como o projeto de lei da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), sobre o mesmo tema, que completa 22 anos (!) de tramitação, em 2013. Aparentemente, o regente da banda atual é o mesmo que impediu que a regulamentação desse ponto da Constituição avançasse, conforme alertam organizações que atuam no campo das comunicações.
O projeto aprovado estabelece um tempo obrigatório de veiculação de produção regional de pouco mais de 10 horas (616 minutos) semanais em cidades que possuam entre 1 e 5 milhões de habitantes. Ou seja, apenas cerca de 6% da programação deve ser produzida em âmbito regional. Além disso, a redação aprovada não prevê o horário de exibição da programação local, permitindo que as cotas sejam cumpridas na madrugada, quando a audiência é bastante baixa e não há muito interesse dos anunciantes que financiam a TV “aberta”.
A incorporação das transmissões, em cadeia nacional, de pronunciamentos da presidência, de propaganda eleitoral obrigatória e de campanhas de interesse nacional são descontados nas horas reservadas ao cumprimento da cota regional. Abre-se, também, a utilização do Fundo Nacional da Cultura, presente na Lei Procultura, para o financiamento de produção por parte de empresas que já concentram propriedade no setor. No projeto de Jandira Feghali – aprovado na Câmara em 2013, mas encostado no Senado –, a cota praticamente dobrava, estando previsto um mínimo de 22 horas semanais para cidades com mais de 1,5 milhão de habitantes e 17 horas para aquelas com mais de 500 mil, sendo obrigatória a transmissão no período entre as 5h da manhã e a meia-noite. Há, ainda, outras distorções.
Outra vítima é a produção independente, isto é, aquela que não possui vínculos com o oligopólio. O projeto não garante reservas para essa produção, quando teria, conforme o texto de 1991, 40% de espaço garantido nas emissões televisivas. A redação da Comissão Mista vai de encontro às mudanças registradas desde o estabelecimento da nova lei da TV por assinatura (12.485/11), que modificou o cenário da produção independente no país e que, portanto, deveria servir de inspiração para a regulamentação.
Democracia efetiva
Podemos nos fazer de simplórios e dizer que é “intrigante” que a aprovação deste projeto surja exatamente quando a sociedade está mobilizada para a implementação de um projeto de lei de iniciativa popular que regulamenta artigos constitucionais relacionados à comunicação eletrônica. Mas esses setores não querem apenas novas leis, querem regras que levem à democratização dos meios de comunicação, de modo que todas as regiões do país possam ter a capacidade de produzir e expressar a própria imagem.
Para avançamos na efetivação da democracia, precisamos ser mais incisivos na busca pela descentralização e garantia da diversidade, valorizando a pluralidade e riqueza que possui nosso país. E a democracia real somente se constrói com a participação dos interessados e da sociedade, de forma geral. Não nasce de pequenas comissões que ignoram os longos e amplos debates lastreados nas demandas diversas de uma sociedade rica em singularidades.
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Bruno Marinoni, do Observatório do Direito à Comunicação