– Gostaria de expressar minha alegria por estar aqui discutindo um tema tão relevante como o das rádios comunitárias. Eu mesmo já tive uma – disse o deputado.
– O senhor teve uma? – perguntou Jerry de Oliveira.
– Sim.
– Então, não era comunitária! (riso geral)
Este diálogo foi presenciado por mim e tantos outros durante uma audiência pública para discutir a digitalização do rádio, realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Expressa um pouco da coragem, responsabilidade, clareza e irreverência de Jerry de Oliveira, militante paulista do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias (MNRC), que hoje, assim como diversos lutadores sociais que se organizam para resistir ou enfrentar a reprodução das desigualdades, é alvo de um processo criminal.
Jerry é acusado de resistência, ameaça, calúnia e injúria contra agentes da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) ao interceder a favor das rádios comunitárias em uma ação de fiscalização da agência. Após receber aviso de que haveria um processo de “fechamento” de uma emissora, Jerry flagrou agentes da Anatel e policiais militares na casa de uma das coordenadoras da emissora sem mandado judicial ou autorização dos residentes para entrar. A moradora estava de camisola, havia sido acordada e surpreendida pela Anatel. Diretor da sessão paulista da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), Jerry teria bloqueado a saída dos agentes da fiscalização e da polícia, informando que não poderiam levar o equipamento da rádio sem os documentos legais necessários e sem o devido lacre que os protegeria de adulteração e danos.
No mesmo dia, os agentes da Anatel cumpriram mandado de busca e apreensão em outra rádio comunitária. Ali, o procedimento se deu dentro da “regularidade” e eles foram recebidos por um dos diretores da emissora, acompanhado do advogado. A equipe da rádio acredita, no entanto, que a tensão inerente a esses processos induziu a um aborto da esposa do dirigente da emissora, grávida à época. Jerry procurou então o responsável pelas operações da Anatel na região e a recepção, feita por outros funcionários da agência, foi em clima de troca de provocações. Em decorrência desses dois episódios, Jerry foi acusado pelo Ministério Público. O promotor que trabalha no caso, Fernando Filgueiras, pede a condenação e pena máxima para o militante, o que poderia resultar em 5 anos e 2 meses de regime fechado.
A Artigo 19, organização internacional de defesa da liberdade de expressão, se manifestou no processo, afirmando que as acusações “tratam-se de medidas desproporcionais e antidemocráticas, que dão ensejo à autocensura”.
Direito violado
A atuação do Estado brasileiro contra as emissoras comunitárias vem sendo denunciada há um longo tempo pelo movimento que luta pela democratização da mídia no país. Aqui, a prática da radiodifusão comunitária sem autorização do Ministério das Comunicações é considerada crime, passível de privação de liberdade. A Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, afirma no entanto que a responsabilização por esta prática deveria ser feita, no máximo, no âmbito civil ou administrativo.
Em março deste ano, a Artigo 19 e a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc) denunciaram o problema à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), considerando-o uma violação da liberdade de expressão e do direito humano à comunicação no Brasil. Casos de invasão de emissoras (ou mesmo casas) e de apreensão de equipamentos por agentes da Anatel, acompanhados de policiais, sem ordem judicial, são denunciados de forma constante. Cerca de 11 mil rádios comunitárias foram fechadas nos últimos oito anos no Brasil.
A realidade é que a política definida pelos governos e legisladores brasileiros para a radiodifusão comunitária tem sido marcada pela repressão. Em vez de fomentar o desenvolvimento do setor, garantindo a liberdade de expressão e a efetivação do direito à comunicação dessas comunidades, o Estado brasileiro opta por sufocar essas vozes. A própria legislação e os entraves burocráticos empurram para a ilegalidade os comunicadores populares, depois rotulados de “foras-da-lei” pelas rádios comerciais, que combatem ferozmente a “concorrência” daqueles que querem fazer da comunicação mais do que um mercado a ser explorado.
O processo contra Jerry de Oliveira não resultará no fim da luta e mobilização das rádios comunitárias no Brasil, unidas para defender seu companheiro. Mas sem dúvida é uma tentativa de calar um dos setores mais combativos das organizações populares de nosso país. Sua possível condenação não será apenas mais uma prova de que as comunicações no Brasil continuam sob controle do poder político e econômico das grandes emissoras. Mas também a comprovação que o Estado brasileiro, através dos seus mais diferentes braços, viola o direito à liberdade de expressão de seus cidadãos e cidadãs.
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Norma do Canal da Cidadania completa nove meses sem nenhuma habilitação
Bruno Marinoni # reproduzido do Observatório do Direito à Comunicação, 30/8/2013
O Ministério das Comunicações anunciou que, até o começo do mês de agosto, 100 prefeituras já haviam solicitado autorização para explorar o Canal da Cidadania. Dentre elas, administrações de cidades de porte médio, como Santos (SP), Uberlândia (MG), Anápolis (GO) e Ilhéus (BA), embora a maioria dos pedidos venha de pequenas localidades. Há, inclusive, solicitações como a de Maranguape (CE), localizada na zona metropolitana de Fortaleza, ainda que não se tenha nenhum caso de capital que tenha manifestado interesse. Mas, do que se trata esse tal canal e como se pode participar dele?
Um canal público com “sabor” de quatro canais
O Canal da Cidadania foi pensado, com a criação do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), para ser um canal público explorado pelo Estado em âmbito federal, estadual e municipal, e por entidades das comunidades locais.
Utilizando o recurso da “multiprogramação”, possibilitada pela digitalização da TV aberta, serão transmitidos quatro “faixas de conteúdo”: a primeira sob responsabilidade das prefeituras, a segunda a ser gerida pelos estados e as outras duas, por associações comunitárias, responsáveis por programação local.
No modelo tradicional, anterior à digitalização e com o qual brasileiros e brasileiras estão acostumados, cada canal de TV aberta possui apenas uma “faixa de conteúdo”. Ou seja, transmite-se o conteúdo de apenas uma emissora (geralmente comercial), que é também a responsável pela programação.
O Canal da Cidadania ainda não se encontra em funcionamento, mas o Ministério das Comunicações está recebendo pedidos de autorização de prefeituras para explorá-lo.
Para participar
Cada prefeitura ou fundação e autarquia a ela vinculadas podem solicitar uma autorização para explorar o Canal da Cidadania. Tais outorgas têm prazo indeterminado de duração, podendo ser revogadas de acordo com o que consta na legislação que se refere às sanções. O poder municipal tem a preferência até junho de 2014, quando os estados passam também a poder fazer a solicitação para explorar o serviço em municípios que ainda não tenha sido iniciado o processo de outorga. Até agora, o Ministério das Comunicações informou que existem apenas 100 pedidos.
Para fazer a solicitação da outorga, basta que o órgão apresente o pedido junto com a documentação prevista na norma ao Ministério das Comunicações. Dentre os documentos, deve constar um “projeto técnico para a instalação do sistema irradiante, conforme norma técnica específica para a TV Digital”. No caso dos municípios em que algum órgão da administração pública direta ou indireta já detiver outorga (sejam eles municipais ou estaduais), basta que seja solicitada a “anuência” do Minicom para se utilizar o recurso da multiprogramação e assim transmitir as quatro faixas de conteúdo previstas para o Canal da Cidadania.
Aquele que for autorizado a explorar o Canal da Cidadania deverá instituir um “Conselho Local” com o objetivo de “zelar pelo cumprimento das finalidades da programação” previstas na norma e “manifestar-se sobre os programas veiculados”. O conselho deve ser composto por diversos segmentos do poder público e da comunidade local.
O Ministério das Comunicações abrirá anualmente chamadas públicas (“avisos de habilitação”) com prazo de inscrição de 60 dias para habilitação de duas entidades da sociedade civil (três no Distrito Federal) interessadas em explorar uma das faixas de conteúdo reservadas às associações comunitárias. Tais interessados devem estar atentos à publicação dos avisos na página da internet do ministério e enviar a documentação requerida.
As associações interessadas precisam prever, em seu estatuto social, a finalidade de programar faixa do Canal da Cidadania, ter sede no município, não ser subordinada a nenhuma outra entidade, não ter fins lucrativos, não estar vinculada a governos, assegurar o ingresso gratuito como associado de todo e qualquer cidadão domiciliado no município ou entidade sem fins lucrativos, assegurar a seus associados o direito a todos cargos de direção, a voz e a voto nas deliberações sobre a vida social da entidade, prever o limite máximo de quatro anos de mandato para a diretoria (sendo admitida uma recondução) e permitir a exibição, em sua faixa de programação, de programas de responsabilidade de pessoas físicas não associadas à entidade.
Primeiras emissões
O Canal da Cidadania não funciona ainda de fato em nenhuma cidade do país. De acordo com informações do Ministério das Comunicações, “assim como nos casos dos outros serviços de radiodifusão, uma nova emissora somente poderá transmitir a sua programação depois de terminadas as etapas previstas na regulamentação, que incluem a conclusão do processo de outorga, sua apreciação pelo Congresso Nacional e a emissão de uso de radiofrequência pela Anatel.
O Ministério das Comunicações considera que o lançamento dos avisos de habilitação para explorar as faixas de conteúdo são dependentes do término no processo de outorga. Perguntado pelo Observatório do Direito à Comunicação sobre a possibilidade de se iniciar as emissões ainda neste ano, o órgão responde que “o Ministério das Comunicações não pode fixar um prazo, tendo em vista que a conclusão do processo depende de entidades externas”. Embora se tenha tentado acelerar o processo permitindo que emissoras vinculadas a governos apenas implementassem o serviço de multiprogramação apenas pedindo a anuência do ministério, nenhuma solicitação formal desse tipo foi feita ainda.
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Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em sociologia pela UFPE