Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Bodas de prata sem festa

Decorridos 25 anos de promulgação da Constituição de 1988, e apesar da batalha travada ao logo do processo Constituinte de 1987-88 em torno das questões relacionadas ao setor de comunicações, a maioria das normas e princípios, tanto incisos do artigo 5º (capítulo 1, do Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) quanto artigos do capítulo V, “Da Comunicação Social” (do Título VIII, “Da Ordem Social”), não logrou ser regulamentada.

Nesse quarto de século, paradoxalmente, prevaleceram interesses tanto no Executivo como no Legislativo, que impediram que se desse consequência prática a muito do que foi consagrado na Carta Magna. As poucas normas regulamentadas estão incompletas ou sendo questionadas no Supremo Tribunal Federal. Alguns exemplos:

1. A vinculação entre faixa etária e faixa horária prevista no artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990), na qual se baseia a Portaria 1.220/2007 do Ministério da Justiça, que instituiu a Classificação Indicativa de obras audiovisuais destinadas à televisão e congêneres, fundamentada no inciso I do § 3º do artigo 220, está sendo questionada por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 2404) patrocinada pelos empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau;

2. A Lei 9.294/1996 regulamentou o § 4º do artigo 220, todavia o PL 2.733/2008 que a altera para incluir as bebidas alcóolicas (proposto e subscrito pelos, à época, ministros Jorge Armando Felix, Tarso Genro, José Gomes Temporão e Fernando Haddad) não foi aprovado no Congresso Nacional.

Omissão do Congresso

A gravidade da situação levou à apresentação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 9) ao Supremo Tribunal Federal (STF), subscrita pelos advogados Fábio Konder Comparato e Georgio Alessandro Tomelim em nome da Fitert (Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão) e da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), em outubro de 2010.

Arquivada, ela foi reapresentada com o mesmo conteúdo (ADO nº 10), agora pelo PSOL, e pede que o STF declare:

“a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em legislar sobre as matérias constantes dos artigos:

(i) 5º, inciso V (é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem);

(ii) 220, § 3º, II (estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente);

(iii) 220, § 5º (os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio);

(iiii) 221 (princípios relativos à produção e programação das emissoras de rádio e televisão); e

(iiiii) 222, § 3º (observar os princípios do artigo 221);

todos da Constituição Federal, dando ciência dessa decisão àquele órgão do Poder Legislativo, a fim de que seja providenciada, em regime de urgência, na forma do disposto nos arts. 152 e seguintes da Câmara dos Deputados e nos arts. 336 e seguintes do Senado Federal, a devida legislação sobre o assunto”.

Da mesma forma, uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 246), subscrita pelos advogados Bráulio Santos Rabelo de Araújo e Fernando Garcia Carvalho do Amaral, foi também protocolada em nome do PSOL, em dezembro de 2011, arguindo a violação dos incisos I e II do artigo 54, isto é, a proibição de controle de concessões do serviço público de radiodifusão por parte de deputados e senadores, origem do chamado “coronelismo eletrônico”.

Ambas as ações aguardam julgamento no STF.

O caso dos conselhos de comunicação

Um exemplo emblemático do que vem acontecendo em relação às normas constitucionais de comunicações é o (des)cumprimento do artigo 224 da Constituição.

Ponto principal de disputa na Constituinte de 1987-88, a criação de uma agência reguladora nos moldes da Federal Communications Commission (FCC) americana se transformou, na undécima hora, em órgão auxiliar que deveria apenas ser ouvido quando o Congresso Nacional julgasse necessário. Essa alteração deu origem ao Conselho de Comunicação Social (CCS, artigo 224). Todavia, o CCS sempre enfrentou enorme resistência de boa parte dos parlamentares.

A Lei que regulamentou a criação do CCS (Lei 8339/1991) foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1991, mas ele só logrou ser instalado em 2002 como parte de um polêmico acordo para aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que, naquele momento, constituía interesse prioritário para os oligopólios do setor. A Emenda Constitucional nº 36 (Artigo 222), aprovada em maio de 2002, permitiu a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão por pessoas jurídicas e a participação de capital estrangeiro em até 30% do seu capital.

Mesmo sendo apenas um órgão auxiliar, o CCS instalado demonstrou ser um espaço relativamente plural de debate de questões importantes do setor – concentração da propriedade, outorga e renovação de concessões, regionalização da programação, TV digital, radiodifusão comunitária etc. Vencidos os mandatos de seus primeiros integrantes, houve um atraso na confirmação dos membros para o novo período de dois anos, o que ocorreu apenas em fevereiro de 2005. Ao final de 2006, no entanto, totalmente esvaziado, o CCS fez sua última reunião. Ficou desativado por cerca de seis anos.

Em julho de 2012 foi reinstalado de forma autoritária e sob protesto da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom) e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Sua composição não traduz a intenção dos constituintes de 1987-88 de um órgão plural com representação diversa. Há um claro predomínio de interesses empresariais.

Ademais, nos nove estados (e no Distrito Federal) onde as Constituições e a Lei Orgânica preveem a criação dos conselhos estaduais de comunicação – semelhantes ao CCS –, apenas na Bahia ele foi de fato instalado (em 2012) e, mesmo assim, seu funcionamento tem sido objeto de inúmeras controvérsias.

Sem festa

Vinte e cinco anos depois da promulgação da Constituição de 1988, banida definitivamente a censura estatal, a maioria das demais normas que possibilitariam avanços democratizantes para o setor de comunicações continua sem ser regulamentada. Vale dizer, as normas constitucionais não são cumpridas.

Bodas de prata sem festa.

 

Leia também

A Constituição cidadã e a comunicação sem cidadania – Celso Schröder

 

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Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Conselhos de Comunicação Social – A interdição de um instrumento da democracia participativa (FNDC, 2013), entre outros livros