Realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, a pesquisa “Representações das mulheres nas propagandas na TV” revela a existência de um conflito entre o que os espectadores veem e o que gostariam de ver nas publicidades exibidas na televisão. Para 56% dos entrevistados, homens e mulheres, as propagandas na TV não mostram as brasileiras reais. Para a pesquisa, foram realizadas 1.501 entrevistas com homens e mulheres maiores de 18 anos, em 100 municípios de todas as regiões do país, entre os dias 10 e 18 de maio deste ano.
Na avaliação do diretor do Instituto Data Popular, Renato Meirelles, o distanciamento entre a representação da mulher feita nos comerciais e a realidade prejudica os anunciantes, que perdem o principal mercado de consumo. “A mulher quer uma comunicação que a inspire a melhorar um pouco mais de vida, mas não a deixar de ser quem ela é. E quando as empresas vendem um aspiracional que está longe de ser desejado e possível para essa mulher, ou ela se frustra ou simplesmente conclui que esse produto não é para ela e cria uma barreira em relação a ele”, considera. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
As mulheres são responsáveis por 85% das decisões sobre o consumo doméstico e representam uma massa de renda de R$ 1,1 trilhão. Por que, na sua avaliação, a opinião dessa parcela tão significativa do mercado é de certa forma ignorada pela publicidade na TV e pelos anunciantes em geral?
Renato Meirelles – Quando falamos de uma mulher que movimenta R$ 1,1 trilhão por ano e determina 85% do consumo da família não estamos falando de um nicho consumidor, mas do principal mercado consumidor brasileiro. E se a propaganda não fala com essa mulher, está dando um tiro no pé. Hoje o mercado publicitário não sabe como falar com um mercado de R$ 1,1 trilhão.
O Data Popular sempre estudou muito a classe C e descobrimos que, nos últimos anos, quem mudou o Brasil não foi a classe C, foi a mulher. A mulher que, nos últimos 20 anos, enquanto percentual da população, cresceu 36% e aumentou sua participação no mercado de trabalho em 162%. É como se todo o estado do Rio Grande do Sul entrasse no mercado da mão-de-obra de trabalho feminino. Com mais dinheiro, essa mulher passou a decidir ainda mais sobre o consumo da casa e a chefiar um número maior de lares. Hoje, 38% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Mas esse processo de empoderamento feminino pela via do consumo e da renda é ainda recente e equivale ao papel dos homens dez anos atrás. Mas não temos nenhuma ilusão de que isso acabou com as desigualdades de gênero e preconceitos em geral, e muito menos entre os publicitários e anunciantes. Assim, vemos um conjunto de produtos e serviços que muitas vezes são consumidos pelo homem, mas é a mulher quem compra; só que as empresas olham para o homem, e não para a mulher que decide a compra.
Estamos falando de uma miopia das agências de publicidade, que têm entre os seus criativos, em boa parte, homens que dialogam com o universo masculino e ainda acreditam que a aspiração dessa nova mulher é ser como as europeias: altas, brancas, cabelos lisos. Não entendem que, junto com a renda, aumentou também a autoestima dessas mulheres, e elas querem se ver representadas nos meios de comunicação.
Nesse sentido, a pesquisa Representações das mulheres nas propagandas na TV, realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, revela exatamente o contrário, que a mulher brasileira não se vê na publicidade televisiva. Na sua opinião, que outros elementos, além do mundo masculino da criação publicitária e do crescimento ainda recente do papel da mulher brasileira no mercado consumidor, explicam esse distanciamento entre as propagandas e as mulheres brasileiras, que é percebido inclusive pelos homens?
R.M. – A mulher brasileira está envelhecendo, é majoritariamente negra e tem muito mais curvas que a média das mulheres do mundo. Mas as agências de publicidade trabalham com um ideal de beleza do passado, de mulheres altas, magras, loiras e de olhos claros. Esse padrão de beleza, que durante anos foi o aspiracional de parte considerável dos brasileiros, fazia sentido na propaganda de 20 anos atrás, sob a lógica publicitária. Só que, com a melhora do nível de vida de milhões de brasileiras nos últimos anos, elas querem se ver efetivamente representadas.
Mas as agências não trabalham com essa nova realidade, que tem como lógica o aspiracional possível. A mulher quer uma comunicação que a inspire a melhorar um pouco mais de vida, mas não a deixar de ser quem ela é. E quando as empresas vendem um aspiracional que está longe de ser desejado e possível para essa mulher, ou ela se frustra ou simplesmente conclui que esse produto não é para ela e cria uma barreira em relação a ele. Portanto, não se trata de ser politicamente correto ou incorreto, mas de ter uma comunicação que funcione ou não. E essa nova mulher brasileira não se vê em nenhum tipo de comunicação que não a represente. Da mesma forma que os brasileiros hoje vão às ruas afirmar que os políticos não os representam, essa propaganda também não representa as mulheres brasileiras.
Por que os anunciantes incorrem nessa postura se eles também fazem pesquisas sobre o perfil dos consumidores antes de contratar campanhas publicitárias?
R.M. – Infelizmente, temos visto que algumas agências de propaganda adotam um processo de planejamento para justificar a criação, e não o contrário. Assim, alguém tem uma ideia baseada no aspiracional do passado e depois o planejamento tenta justificar isso, mas sempre com a lógica do aspiracional antigo. E não percebem que essa lógica não funciona mais. O boca-a-boca influencia sete em cada 10 mulheres na hora das compras e isso tem que ser levado em conta, porque se a mulher não se vê, ela vai falar mal daquela marca ou produto, ou não vai fazer a propaganda boca-a-boca.
Então, para conquistar essa nova mulher, a função da propaganda é, em primeiro lugar, criar identidade; em segundo lugar, inspirar essa mulher a melhorar de vida, se sentir mais bonita e feliz; e, em terceiro lugar, gerar propaganda boca a boca. E se você não começa do início, que é a criação da identidade, não consegue criar os outros dois pilares do retorno de investimento. Isso acontece porque parte das equipes de criação das agências publicitárias, que vêm das elites, não entende essa nova consumidora.
A maioria dos entrevistados afirma que gostariam de ver mais mulheres negras e de classe popular nas propagandas na TV. Por outro lado, 67% avaliam que a mulher é mostrada como ativa e 43% como inteligente. Isso mostra também uma mudança na propaganda brasileira?
R.M. – A pesquisa permite que a gente diferencie as questões da forma e do conteúdo nas propagandas. Essa busca por apresentar uma mulher mais inteligente e que se aceite, do ponto de vista do conteúdo, começa a existir e já é percebida. Por outro, a questão da forma, o padrão estético, não avançou na mesma velocidade que a questão do conteúdo. Então, você vê atrizes falando que são mulheres independentes, que valorizam a conquista e o mérito próprio, que estão subindo na vida e que se veem como mulheres inteligentes. Mas a estética valorizada ainda é a do passado.
E o que temos visto é que isso acontece porque a elite que aprova os anúncios diz: “ah, mas isso está muito feio”, ou: “precisa ser uma coisa mais bonita”. E na visão dessa elite que aprova o anúncio a beleza ainda segue o padrão europeu, porque ela própria é branca, tem olhos claros e ainda dialoga com esses padrões que sempre foram privilegiados no mercado consumidor. Então, publicitários e anunciantes entendem os valores universais e novos, da inteligência, da independência, da opinião dessa nova mulher, mas na hora de aprovar o anúncio não conseguem seguir isso.
Isso explica também a invisibilidade das mulheres negras na propaganda?
R.M. – Se existe uma dissonância cognitiva entre forma e conteúdo na publicidade, pode-se dizer que houve um avanço no conteúdo e persiste uma carência gigantesca na forma. Só que isso não justifica a questão racial. Os negros são 52% da população e movimentam R$ 720 bilhões em consumo por ano. E o aspiracional do negro não é ser branco. Então, é uma miopia do ponto de vista de oportunidades de negócios que a consumidora negra seja apresentada como a empregada doméstica e não como a mulher que decide e está no mercado de trabalho exercendo múltiplas funções. E não se trata apenas de uma necessidade de identidade, mas de um direito da consumidora que, graças à ida para o mercado formal de trabalho, quer se enxergar na comunicação. A falta de entendimento dessa mudança gera essa miopia no mercado publicitário, que leva a dar menos valor à marca e faz com que o anunciante não otimize o seu investimento publicitário. Isso prejudica a construção da marca e faz com que as empresas tenham prejuízo graças a uma comunicação malfeita.
Na grande maioria das vezes, as pessoas que criam e aprovam os anúncios vêm das classes A e B. E elas tendem a fazer coisas que as agradem, e não que agrade o consumidor final. A mesma coisa acontece nas escolas, onde boa parte dos professores traz um conhecimento acadêmico que levou anos para ser construído e tem a ver com o Brasil do passado. E esse conhecimento acaba sendo reproduzido. Isso está mudando porque hoje a classe C está entrando maciçamente no ensino superior e trazendo consigo a sua história. E se tem uma coisa que aprendemos em 12 anos do Data Popular é que é muito mais fácil pegar alguém que veio de uma camada social mais baixa e fazer com que ela entenda de marketing do que fazer com que a classe A entenda de povo.
Mas nem tudo é negativo. Já existem empresas que sabem usar as informações atuais. A Dove, por exemplo, avançou ao falar de beleza de outro jeito. A Danone avança ao usar a Dira Paes como garota propaganda, assim como a C&A, com a Preta Gil ou a Gabi Amarantos, dialoga com esse novo Brasil.
É preciso entender de povo e que nesse povo estão os negros e as negras.
R.M. – Sim, porque não tem como falar nas classes C e D sem falar dos negros. De cada 10 pessoas que saíram da classe D e foram para a classe C, 8 são negros. Foram os negros os grandes responsáveis pela ascensão econômica do Brasil. Embora por mais que a desigualdade no Brasil tenha diminuído ela ainda seja gigantesca: 3/4 das classes A e B são brancos e 3/4 das classes D e E são negros. Então, quando falamos das classes C e D, estamos falando necessariamente do consumidor e da consumidora negros. E os anunciantes não estão enxergando isso, que é a intenção de consumo. Com R$ 720 bi dá para comprar milhares de notebooks e laptops. E os anunciantes não vão olhar para isso?
A pesquisa aponta também uma percepção de frustração das mulheres quando não conseguem ter seu corpo e/ou sua beleza mostradas nas propagandas na TV. Como você analisa esse dado?
R.M. – Ao não se enxergar na grande mídia, ela se sente uma mulher “invisível”. Por isso as personagens de novela que fazem mais sucesso são as que têm mais curvas, as mais “desbocadas”, que dialogam mais, não só na forma, mas também no conteúdo, com essa nova mulher brasileira. Por isso novelas como Avenida Brasil fazem tanto sucesso, assim como atrizes como a Dira Paes, porque fisicamente ela se parece mais com a nova mulher e as personagens que ela tem feito se parecem mais com essa mulher batalhadora. Entender essa junção de forma e conteúdo é muito importante.
Por último, gostaria que você, pensando no mundo dos publicitários e anunciantes, apontasse quais são os dados da pesquisa que merecem mais destaque, que o pessoal de criação precisa entender.
R.M. – Em primeiro lugar, que a mulher decide. E essa mulher decide através da identificação com a propaganda, e faz propaganda boca a boca daquilo que ela acredita. Como se vê na pesquisa, avançamos muito do ponto de vista do conteúdo, mas é preciso avançar muito do ponto de vista da forma para conquistar esse mercado de R$ 1,1 trilhão. Para as agências fazerem isso, têm que, além de ouvir mais essa nova mulher brasileira, ter nas suas equipes pessoas que são oriundas desse novo Brasil. Enquanto a comunicação for feita por uma elite, aprovada por uma elite, para vender para o restante, acho que temos poucas chances de avançar.
O Data Popular teve a oportunidade – e o Instituto Patrícia Galvão faz isso como missão – de estudar o quanto ainda existe de preconceito e desigualdade (de renda, de gênero e racial) no nosso país. Parece-nos meio óbvio falar da importância de ser plural nesse universo da propaganda. Mas o mérito da pesquisa não é falar o óbvio, é mostrar como as empresas perdem dinheiro ao não entender o óbvio, que não tem a ver com o politicamente correto ou o que sai nos relatórios de responsabilidade social. O óbvio tem a ver com o mercado. Se as empresas não olharem para esse mercado que mudou no Brasil, que é o mercado da mulher, elas estarão longe de conseguir efetivamente fazer uma grande transformação na sua comunicação e explorar o potencial econômico que isso tem.
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Luciana Araújo é jornalista da Agência Patrícia Galvão