Em Montevidéu, Uruguai, [na sexta-feira, 11/10], os diretores de todas as principais organizações da internet – ICANN, a Força-Tarefa de Engenharia da Internet (IETF), o Conselho de Arquitetura da Internet (IAB), o Consórcio World Wide Web (W3C), a Internet Society (ISOC), todos os cinco registradores regionais de endereços IP da Internet (AfriNIC,APNIC, ARIN, LACNIC e RIPE/NCC) – voltaram suas costas ao governo dos EUA. Com unanimidade marcante, as organizações que realmente desenvolvem e administram os padrões e recursos da Internet iniciaram uma ruptura com o domínio dos EUA sobre a governança da internet que já vem de três décadas.
Um comunicado divulgado pelo grupo defende a “aceleração da globalização das funções da ICANN e da IANA, para chegar a um ambiente no qual todas as partes interessadas, incluindo todos os governos, participem em pé de igualdade”. Essa parte da declaração constitui uma rejeição explícita da supervisão unilateral da ICANN pelo Departamento de Comércio dos EUA do Comércio dos EUA através do contrato IANA. Ela também ataca indiretamente a abordagem unilateral dos EUA na Afirmação de Compromissos – o pacto entre os EUA e a ICANN que prevê revisões periódicas de suas atividades pelo Comitê Assessor de Governos (GAC) e outros membros da comunidade da ICANN. (A Afirmação foi concebida como um acordo entre a ICANN e os EUA exclusivamente – não teria sido difícil permitir que outros governos a assinassem também.)
Ressaltando o alcance internacional e a determinação do grupo de ter um impacto global, o Comunicado de Montevidéu foi divulgado em inglês, espanhol, francês, árabe, russo e chinês. Em conversas com alguns dos participantes da reunião de Montevidéu, ficou claro que eles estavam pensando em novas formas de supervisão pluralista como um substituto para a supervisão dos EUA, embora nenhum plano detalhado tenha sido apresentado.
Um erro que muda uma vida
Mas isso foi só o começo. Um dia após a declaração de Montevidéu, o presidente e CEO da ICANN, Fadi Chehadé – o homem aceito pelo governo dos EUA para liderar sua instituição central da governança da internet – reuniu-se com a presidenta brasileira Dilma Rousseff. E nesta reunião, Chehadé empenhou-se em uma audaciosa diplomacia privada. Ele pediu que “a presidenta [do Brasil] leve sua liderança a um novo nível, para assegurar que trabalhemos juntos em torno de um novo modelo de governança no qual todos são iguais”. Um comunicado de imprensa do governo brasileiro informou que a presidenta Dilma Rousseff propôs uma reunião de cúpula da internet a ser realizada em abril de 2014 no Rio de Janeiro.
Assim, o presidente da ICANN não só aliou-se a uma figura política que tem feito fortes críticas ao governo dos EUA e ao programa de espionagem da NSA, como articulou com ela a convocação de um encontro global para começar a forjar um novo sistema de governança da Internet que possa ir além do velho mundo da hegemonia dos EUA.
Não tenham dúvida: isto é importante. É a mais recente, e uma das manifestações mais significativas das consequências das revelações de Snowden sobre a espionagem da internet global pela NSA. Uma coisa é quando o governo do Brasil, um antagonista de longa data sobre o papel dos EUA na governança da internet, fica indignado e faz ameaças por causa das revelações. E, claro, o regozijo de representantes da União Internacional de Telecomunicação (UIT) poderia ser esperado. Mas isto é diferente. O Estado brasileiro está agora em aliança com os porta-vozes de todas as instituições de internet que se constituíram com o desenvolvimento da rede, os representantes do mesmo “modelo pluralista (multistakeholder)” que os EUA se propõem a defender. Você sabe que você cometeu um grande erro, um erro que muda sua vida, quando seus próprios filhos o abandonam em massa.
EUA perderam a iniciativa
Também notável é a disposição da presidenta do Brasil em aliar-se abertamente às instituições internacionais de internet. Há atores politicamente influentes dentro do governo brasileiro, especialmente a agência reguladora de telecomunicações, Anatel, que gostariam de trazer a zona-raiz do DNS para o âmbito da UIT, que odeiam a ICANN, e não gostam de modelos pluriparticipativos de governança. A visão destes agentes é apoiada pelo oligopólio transnacional das telecomunicações que controla as principais redes do Brasil. A presidenta Dilma Rousseff tomou uma posição corajosa contra estas forças e em favor de princípios pluralistas. Receber o CEO da ICANN e sair do encontro com a proposta de uma reunião de cúpula foi também um importante marco político para ela nessas disputas políticas internas.
Nós do IGP só poderíamos manifestar uma satisfação impiedosa com esse rumo que as coisas tomaram. Temos insistido há quase dez anos que o governo dos EUA deveria acabar com seu rol privilegiado e concluir a desestatização da gestão do DNS. Temos argumentado que o substituto adequado para a supervisão unilateral do Departamento de Comércio seria, não uma “supervisão política” multilateral, mas um acordo internacional articulando regras claras sobre o que a ICANN pode e não pode fazer, um acordo que proteja explicitamente a liberdade de expressão e outros direitos individuais, bem como os princípios de governança aberta da internet. Ouvimos todos os argumentos imagináveis sobre por que isso não tem que acontecer: eles disseram que ninguém realmente se importava com a governança da raiz DNS, disseram que não havia alternativa melhor, disseram que o resto do mundo secretamente queria que os EUA fizessem isso etc. etc. Uma combinação de arrogância, complacência e pressão política interna impediu qualquer ação.
Tivesse esse conselho sido ouvido, tivessem os EUA tentado desfazer-se de sua supervisão unilateral por sua própria iniciativa, poderia ter exercido algum controle sobre a transição e feito valer seus apreciados valores de liberdade e democracia. Poderia ter assegurado, por exemplo, que uma ICANN independente fosse sujeita a limites claros sobre a sua autoridade e a novas formas de prestação de contas, algo muito necessário. Agora, os EUA perderam a iniciativa, irremediavelmente. A evolução futura da governança de nomes e números da internet, pelo menos, não é mais para eles.
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Milton Müller, do Internet Governance Project (IGP); artigo originalmente publicado pelo IGP. Esta é uma versão especial para a RETS