Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Direito autoral e Estado em conflito

É conhecida a história dos autores que, com seu editor, processaram um café para defender os direitos autorais de suas obras utilizadas sem remuneração. Aconteceu na França e um dos desdobramentos foi a criação, em 1850, de uma sociedade autoral para administração, em regime coletivo, de direitos autorais.

Dentre as modalidades de direitos geridos por uma sociedade, os direitos de execução pública, decorrentes da utilização de obras musicais em locais de frequência coletiva, rádios, televisões, cinemas, hotéis, shows etc, têm como maior característica se realizar, como sentido de direito, quando exercido de forma coletiva. Nesse modelo, os criadores organizaram em todo o mundo a maioria das sociedades de gestão coletiva de direitos de obras musicais.

Em 1973, o Brasil adotou um regime unificado de arrecadação de direitos autorais, congregando, em uma entidade, diversas associações administradoras de repertórios musicais. Essa organização é conhecida como Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), que, desde 1977, vem exercendo as suas atribuições legais para cobrança de direitos autorais. O Ecad arrecadou, em 2012, R$ 625 milhões, estando o Brasil entre as dez maiores arrecadações do mundo e com enorme potencial. A conquista se deu sem apoio estatal ou verba pública, e decorre da gestão privada dos titulares, que lutam arduamente para defesa dos seus direitos.

Os direitos autorais são bens móveis, privados, e, no seu viés patrimonial, traduzem a realização econômica dos titulares de direitos. A Constituição, no capítulo das garantias individuais, conferiu direito exclusivo ao criador para que tenha plena liberdade de se organizar e determinar as condições do uso de sua obra. A Lei de Direitos Autorais assegurou as mesmas prerrogativas, inclusive para organização da gestão coletiva.

Gestão eficiente

Neste mês [dezembro] entra em vigor a lei 12.853. Aprovada em regime de urgência no Congresso, altera, substancialmente, a forma de organização da gestão coletiva de direitos autorais e confere ao Estado um papel fiscalizador nunca visto na história do setor. Com a justificativa de dar transparência e eficiência à gestão coletiva, a lei cria um elenco de obrigações administrativas que irão interferir no funcionamento das associações e do Ecad, hoje sob a tutela dos criadores. A lei, formada por regras restritivas de direitos, inibe o direito exclusivo do criador de fixar o preço de sua obra musical, restringe o direito de propriedade, a liberdade de organização de associações, interfere nas deliberações do Ecad e ainda subtrai, arbitrariamente, de titulares de direitos patrimoniais, como editores de música e sucessores, os seus direitos associativos de participação na gestão coletiva. Surpreendente, ilegal e arbitrário! Também cria regulamentos e controles administrativos, inchando, injustificadamente, a máquina pública. É intervenção desmedida, que, ao contrário de colaborar com o difícil processo de respeito dos direitos autorais, sataniza as associações e transfere à gestão coletiva o aumento de custos administrativos e operacionais, em claro prejuízo aos titulares.

A ofensa à norma constitucional é flagrante, o que impõe às associações de titulares, no exercício do controle da constitucionalidade, provocar o STF para decidir.

Criadores de todas ideologias lutam por um objetivo: uma gestão coletiva de direitos autorais clara e eficiente. Foi anunciado que a nova lei irá trazer nova ordem próspera. Ledo engano e a comunidade internacional já condenou. Na verdade, há sério risco de esfacelamento de duras conquistas e, pior, o enfraquecimento no exercício do direito autoral pelos titulares de obras musicais. Um triste retrocesso.

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Sydney Sanches é jurista e escritor