Considere este cenário: A operadora da linha de telefone fixo da sua casa passa a lhe cobrar extra para telefonar para certos Estados. Ou simplesmente corta a discagem direta para certos países, o que lhe obriga a pagar mais, via operadora. A Anatel e o Procon seriam inundados de protestos e as operadoras seriam alvo de ações legais.
Ou este outro: quando você quer falar com a sua mãe pelo Skype, a conexão é tão ruim que nem o amor materno resiste a cinco minutos de papo. Mas seu vizinho fala com a mãe dele à vontade, com imagem e som ótimos.
Pois cenários semelhante, que afetam gravemente a maneira como trabalhamos e nos comunicamos, podem se tornar possíveis graças à decisão de um tribunal federal em Washington na semana passada. O governo Obama foi derrotado pelo tribunal de apelações na questão da neutralidade da net. (Pausa para bocejo.)
Sim, o assunto é árido e peço paciência porque uma internet menos democrática nos Estados Unidos afeta todos nós. Se a decisão não for contestada, encerram-se aqui os primeiros 20 anos relativamente anárquicos e democráticos da web mundial. Tem início uma oligarquia em que as operadoras vão se colocar entre o internauta e o conteúdo que ele quer acessar.
Assim que saiu a decisão judicial, caíram as ações da Netflix, o típico serviço que depende da banda larga para o streaming de filmes. Minha conta mensal de Netflix só terá uma direção a tomar, o Norte. Mas o cada vez mais fraco menu de filmes da Netflix não é a maior dor de cabeça. Qualquer pessoa que trabalhe com informações online pode ter seu acesso a websites bloqueado ou encarecido. Um site como o YouTube pode se tornar um serviço premium.
O que está em jogo, dizem os defensores da neutralidade, é a liberdade de expressão. Imagine se, na década de 1990, os primeiros serviços de busca fizessem um pacto de exclusão com as operadoras americanas. Não haveria Google nem Facebook, gigantes intrusivos que hoje não podem ser acusados de bastiões democráticos mas ao menos não restringem os endereços virtuais que frequentamos.
A internet rápida é um elemento tão essencial à economia do século 21, que deixar o poder sobre o tráfego exclusivamente nas mãos do mercado é como deixar o mercado cobrar mais para sair água tratada da sua torneira.
Concentração de poder
O termo “net neutrality” foi cunhado em 2003 por Tim Wu, professor da Escola de Direito da Universidade Columbia. Em dezembro de 2012, numa entrevista ao Estado (ver “Diante do poder da web“), ele me disse que o Partido Republicano, em sua obsessão com qualquer interferência do governo para regular, distorceu a questão da neutralidade para reduzi-la a um problema ideológico.
Mas Tim Wu compara o fim da neutralidade da net à reserva de pistas de uma estrada para motoristas que pagarem mais pedágio. O professor critica, sim, o governo Obama, especificamente a FCC, Comissão Federal de Comunicações, por inabilidade jurídica, ao usar argumentos técnicos fadados à derrota no tribunal. Numa entrevista ao Washington Post em que declarou “entramos em território desconhecido agora”, Tim Wu lembra que o conceito de “common carriage” – o transporte público de bens ou serviços, existe desde a Idade Média. De fato, a comparação cai bem porque críticos da decisão estão prevendo um novo feudalismo digital em que a inovação será outra vítima certa. Para start ups, a ladeira se tornou mais íngreme ou a estrada intransitável. Como vender uma nova ideia como, por exemplo, o Skype, sem acesso preferencial à banda larga?
A Associação de Bibliotecas Americanas disse, num comunicado, que a decisão do tribunal dá a empresas comerciais uma autoridade legal sem precedentes sobre o tráfego na internet além de desviar usuários como um rebanho para websites que atendam a interesses comerciais específicos.
Milhões de jovens de menos de 30 anos foram atraídos para a candidatura de Barack Obama em 2008 quando ele prometeu lutar por uma internet livre. A derrota da FCC não martela o último prego no caixão da neutralidade da net e foi um susto que pode dar maior energia a iniciativas ironicamente convocadas por meio das operadoras que preferem um futuro de controle de seus latifúndios. Especialistas como Marvin Ammori da New America Foundation, acreditam que a própria FCC pode se levantar do tombo com outras iniciativas dentro do terreno de sua autoridade, já que o Congresso nada fez e é amestrado para obedecer a interesses especiais.
Todas as inovações tecnológicas de comunicação passam pelo estágio da concentração de poder. Se os americanos não reagirem, do rolezinho no shopping ao fórum científico, da educação a distância ao acesso a informações cruciais como a chegada de uma tempestade, vamos ficar à mercê dos ventos caprichosos de um punhado de senhores dos nossos movimentos digitais.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York