“De acordo com dados estatísticos do Ministério da Educação – MEC, existem 546 cursos de Jornalismo no país, sendo que, destes, 463 são oferecidos por instituições privadas. Na primeira década deste milênio ocorreu uma proliferação de cursos, que foram criados sem que a maioria deles possuísse um corpo docente capacitado e qualificado (com mestres e doutores), o que acabou contribuindo para a queda da qualidade dos cursos e, por consequência, do nível dos profissionais que chegavam ao mercado, completamente despreparados. Naturalmente que há instituições que primam pelo ensino de qualidade, o que não acontece com a maioria dos cursos existentes”, analisa o professor Sérgio Mattos.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o docente analisa a adequação da formação jornalística à complexidade da sociedade atual, a qual exige do profissional da comunicação conhecimentos amplos de cultura ao mesmo tempo em que lhe pede domínio sobre as tecnologias implementadas. “Eu diria que os cursos de Jornalismo precisam ser repensados com urgência e que os métodos de avaliação desses cursos devem ser mais rigorosos para que continuem atuando no mercado. Acredito que as novas diretrizes, que não engessam os cursos, atendem plenamente às necessidades atuais se forem cumpridas. A flexibilidade curricular possibilita que os cursos se adéquem às realidades regionais e globais simultaneamente. Isto porque as diretrizes esboçam princípios norteadores que garantem a autonomia das universidades para organizar seus respectivos projetos pedagógicos”, pondera.
Sérgio Augusto Soares Mattos é escritor, compositor, músico, poeta, jornalista e professor. Tem doutorado em Comunicação pela Universidade do Texas, Estados Unidos. Foi diretor da Coordenação de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação da UniBahia – COEPP no município de Lauro de Freitas e coordenador do curso de Jornalismo da Faculdade da Cidade do Salvador. É professor aposentado da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Atualmente, é professor adjunto do curso de Jornalismo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Integrou a comissão de especialistas criada pelo Ministério da Educação para elaborar as novas diretrizes do curso de Jornalismo.
Confira a entrevista.
Quais são as principais alterações nas diretrizes curriculares do curso de Jornalismo? Qual o impacto esperado das novas diretrizes?
Sérgio Mattos – Antes de tudo devo salientar que as novas diretrizes têm como base, de certa forma, o consenso que vinha sendo defendido pelas entidades da área, Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ, Fórum Nacional de Professores de Jornalismo – FNPJ, Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – SBPJor, Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom, não deixando de ouvir também a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós e a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social – Enecos, no sentido de garantir a qualidade do ensino do Jornalismo. A comissão de especialistas foi nomeada [pelo Ministério da Educação] para rever e atualizar especificamente as diretrizes curriculares do Curso de Jornalismo, dentro da área daComunicação Social, concentrando-se em dois aspectos fundamentais: o perfil do jornalista e suas competências profissionais, sendo que o desafio principal é a qualidade do curso e a formação humanística.
Para formular a proposta, a comissão de especialistas indicada pelo MEC teve como base a consulta pública pela internet e três audiências públicas que contaram com a participação da comunidade acadêmica, de empresas representadas pelas associações específicas (Associação Nacional de Jornais – ANJ, Associação Nacional de Editores de Revistas – ANER, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT, Associação Brasileira das Agências de Comunicação – Abracom) e profissionais do setor, e representantes da sociedade civil (Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Associação Brasileira de Imprensa – ABI, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG, entre outras). Dentre as alterações contidas nas diretrizes aprovadas destacam-se, como exemplos, a valorização, especificidade e maior identidade dos cursos de Jornalismo, considerando que o diplomado no curso será Bacharel em Jornalismo e não mais diplomado em Comunicação com Habilitação em Jornalismo. As novas diretrizes propõem uma maior interdisciplinaridade e maior integração entre teoria e prática e a regulamentação do estágio supervisionado de 200 horas. Destacaria também o fato de que, a partir de agora, a carga horária dos cursos de Jornalismo aumentou de 2.700 horas para 3.000 horas. Nas Diretrizes aprovadas, a inclusão do estágio obrigatório talvez se constitua no maior impacto para a adequação dos cursos às novas diretrizes.
Qual é o objetivo do Conselho Nacional de Educação ao aprovar as novas diretrizes?
S.M. – O Conselho Nacional de Educação – CNE é órgão colegiado integrante do Ministério da Educaçãoque tem a finalidade de auxiliar o ministro da Educação, formulando e avaliando a política nacional da área, zelando pela qualidade do ensino e pelo cumprimento da legislação. Estão entre as funções do CNE: acompanhar a elaboração e execução do Plano Nacional de Educação – PNE, regulamentar diretrizes, assegurar a participação da sociedade, dar suporte ao MEC no diagnóstico de problemas, entre outras coisas. Assim sendo, o principal objetivo do CNE ao aprovar as novas diretrizes do curso de Jornalismo foi o de atualizar as diretrizes, adequando-as às novas necessidades, além de zelar pela melhoria e qualidade do ensino nos cursos específicos. A Resolução CNE/CES nº 1, de 27 de setembro de 2013, foi publicada no Diário Oficial da União do dia 01 de outubro de 2013, instituindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Jornalismo. As universidades têm até 2015 para se adequar às novas diretrizes.
A proposição de novas diretrizes para o curso de Jornalismo foi uma iniciativa essencialmente do governo federal, que criou uma comissão técnica com este fim, ou foi fruto de um movimento mais amplo?
S.M. – Constitucionalmente, compete ao Ministério da Educação a regulação e supervisão da educação superior no país, além de manter atualizadas as diretrizes que norteiam todos os cursos de graduação, incluindo-se aí também o de Jornalismo. Considerando que na última década várias profissões passaram por mudanças, principalmente o Jornalismo, fazia-se necessário a revisão das diretrizes curriculares, como já havia ocorrido com outros cursos também, buscando o aprimoramento do processo de formação do jornalista. Não se pode negar, no entanto, que, além do governo federal, o FNPJ, a FENAJ, a Enecos e a SBPJor, entre outros, vinham já há algum tempo apontando a necessidade da melhoria da qualidade do ensino superior de Jornalismo e a definição de critérios para normatizar a abertura, credenciamento, renovação e avaliação de novos cursos de Jornalismo. E assim uma comissão de especialistas da área, sob a presidência do professor José Marques de Melo, foi constituída pela Secretaria de Educação Superior – Sesu para subsidiar o MEC na revisão das diretrizes, que, depois de várias audiências públicas e reuniões, teve o texto final das propostas das novas diretrizes, síntese do consenso, aprovado pelo Conselho Nacional de Educação e homologado pelo ministro da Educação, em 2013. A partir da homologação, os cursos de graduação em Comunicação com Habilitação em Jornalismo e os de Jornalismo passam a ser regidos pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Jornalismo, bacharelado.
Há diferenças substanciais entre as antigas e as novas diretrizes no que se refere ao perfil de profissional a ser formado pelas universidades e faculdades de Jornalismo? Qual é o perfil profissional desejado para o jornalista de nossos dias?
S.M. – De certa forma sim, mas não por culpa das diretrizes anteriores, mas pela descaracterização do próprio curso ao longo do percurso histórico e devido às mudanças tecnológicas. Textualmente, o perfil do egresso no Curso de Jornalismo ”é o jornalista profissional diplomado, com formação universitária ao mesmo tempo generalista, humanista, crítica e reflexiva. Esta formação o capacita a atuar como produtor intelectual e agente da cidadania, dando conta, por um lado, da complexidade e do pluralismo característicos da sociedade e da cultura contemporâneas e, por outro, dos 17 fundamentos teóricos e técnicos especializados. Dessa forma, terá clareza e segurança para o exercício de sua função social específica no contexto de sua identidade profissional singular e diferenciada dentro do campo maior da Comunicação”.
Dentro deste perfil destacam-se as competências cognitivas, pragmáticas e comportamentais. Sintetizando as três competências, poderíamos dizer que, em termos cognitivos, além de conhecer a história, os fundamentos e os cânones profissionais do Jornalismo, o jornalista deve compreender as especificidades éticas, técnicas e estéticas do Jornalismo, além de discernir os objetivos de funcionamento de todas as instituições e as influências do contexto no qual o exercício do Jornalismo é praticado. Da mesma forma reduzida, no que se refere às competências pragmáticas, podemos destacar que espera-se do jornalista que saiba contextualizar, interpretar e explicar informações atuais, agregando-lhes elementos da realidade. Espera-se que o jornalista saiba propor, planejar, executar e avaliar projetos na área, além de dominar metodologias jornalísticas de apuração, depuração, aferição, produção, edição, difusão e conhecer conceitos e dominar técnicas dos gêneros jornalísticos; além disso, dominarlinguagens midiáticas, formatos discursivos e o instrumental tecnológico – hardware e software – utilizado na produção jornalística.
No que se refere às competências comportamentais, destacaria a necessidade de que o profissional identifique, estude e analise as questões éticas e deontológicas do Jornalismo, bem como conheça e respeite os princípios éticos e as normas deontológicas da profissão e que saiba avaliar, a partir dos valores éticos, as razões e os efeitos das ações jornalísticas. Concluindo esta resposta, diria que o profissional de Jornalismo que se espera hoje é aquele que saiba lidar com todos os recursos técnicos à sua disposição e que preste um serviço de qualidade à sociedade, garantindo aos cidadãos o direito de ser informado corretamente.
Na sua avaliação, qual a qualidade do ensino oferecido atualmente nos cursos de Jornalismo?
S.M. – De acordo com dados estatísticos do MEC existem 546 cursos de Jornalismo no país, sendo que destes 463 são oferecidos por instituições privadas. Na primeira década deste milênio ocorreu uma proliferação de cursos, que foram criados sem que a maioria deles possuísse um corpo docente capacitado e qualificado (com mestres e doutores), o que acabou contribuindo para a queda da qualidade dos cursos e, por consequência, do nível dos profissionais que chegavam ao mercado, completamente despreparados. Naturalmente que há instituições que primam pelo ensino de qualidade, o que não acontece com a maioria dos cursos existentes. E se considerarmos que nos dias atuais o exercício do Jornalismo está cada vez mais complexo, exigindo do jornalista não só habilidades profissionais, mas também um conhecimento da cultura e da tecnologia vigente, diria que os cursos de Jornalismo precisam ser repensados com urgência e que os métodos de avaliação desses cursos sejam mais rigorosos para que continuem atuando no mercado. Acredito que as novas diretrizes, que não engessam os cursos, atendem plenamente as necessidades atuais se forem cumpridas. A flexibilidade curricular possibilita que os cursos se adéquem às realidades regionais e globais simultaneamente. Isto porque as diretrizes esboçam princípios norteadores que garantem a autonomia das universidades para organizar seus respectivos projetos pedagógicos.
Que relação as escolas de Jornalismo devem estabelecer entre uma formação mais técnica, relacionada à operação de equipamentos e ao domínio de uma estética narrativa específica, e uma formação teórica mais global, crítica e humanista? Como se dá o equilíbrio entre estas duas posições nos dias de hoje?
S.M. – Atualmente os cursos de Jornalismo apresentam um desequilíbrio entre as disciplinas teóricas e práticas, enquanto as novas diretrizes com seus seis eixos fundamentais (Eixo de fundamentação humanística, Eixo de fundamentação específica, Eixo de fundamentação contextual, Eixo de formação profissional, Eixo de aplicação processual e Eixo de prática laboratorial) oferecem todas as alternativas para que os cursos alcancem este equilíbrio. As matrizes curriculares dos cursos devem ser construídas a partir desses eixos, o que vai garantir, de certa forma, o equilíbrio na oferta das disciplinas, oferecendo uma formação mais atualizada e conectada com o cenário contemporâneo. O texto das diretrizes que foi aprovado ressalta a importância da integração entre teoria e prática, estabelecendo que os alunos devem, desde o primeiro momento do curso, estabelecer contato com o mundo real, com fontes, profissionais e com o público, pois só assim eles vão aprender a lidar com a realidade e seus respectivos problemas. Para que se alcance também este equilíbrio é necessário que a base das matrizes curriculares seja a interdisciplinaridade.
A formação acadêmica deve ser pautada pelas demandas do mercado? Que papel as universidades devem desempenhar neste contexto?
S.M. – Este é um tema polêmico, pois há aqueles que defendem que sim e outros que não. Tanto um grupo como o outro possuem argumentos fortes e têm certa razão. No entanto, sob o meu ponto de vista, as universidades devem formar cidadãos em várias carreiras profissionais para atuar na sociedade. No caso do Jornalismo, devemos formar jornalistas que vão atuar no mercado, ou como empreendedores, mas com o foco voltado para o interesse público e a defesa dos direitos humanos. A formação acadêmica deve confirmar o compromisso do Jornalismo com a liberdade de expressão. De certa forma, a universidade, a academia, na área da comunicação, tem estado muito distante do mercado, e precisamos dialogar um pouco mais, nos aproximar um pouco mais, quebrando algumas barreiras para que haja uma melhor sintonia entre a academia e o mercado. Não vejo obstáculos ao diálogo no sentido de melhorarmos os produtos, os conteúdos e a formação do próprio jornalista, tendo em vista a necessidade de se prestar um melhor serviço à comunidade.
Digo isto porque o Jornalismo, como espaço público de debates, tem que cumprir um papel cada vez mais importante nos processos sociais, atuando como suporte na construção da democracia.
As universidades devem seguir um modelo mais aberto e menos engessado, se abrindo mais e interagindo com as comunidades onde seus formandos vão atuar, exercendo a cidadania, cada qual num ramo, numa especialização, numa carreira definida, que pode ser a Medicina, a Engenharia ou o Jornalismo. Por que se questiona a formação do jornalista em relação ao mercado e não se questiona esta relação com nenhuma outra profissão? Por acaso quando um médico ou engenheiro é diplomado andam perguntando se a formação acadêmica deles deve ser pautada pelo mercado ou não? Quantos cursos de Engenharia são abertos e totalmente voltados para o mercado, para a indústria automotiva, para a metalurgia, polo petroquímico, etc.? Acredito que, se a universidade oferecer uma boa formação acadêmica, ela pode contribuir para melhorar os serviços públicos prestados pelo Jornalismo e o jornalista vai poder exercer melhor sua cidadania.
A formação oferecida nos cursos contempla a complexidade das relações que permeiam a comunicação na sociedade atual?
S.M. – Estamos vivendo uma verdadeira revolução tecnológica que está impondo e modificando uma nova ordem nas relações humanas, e a formação oferecida nos cursos de Jornalismo deve se adaptar aos novos tempos. Como disse Carlos Chaparro, também um dos membros da comissão de especialistas do MEC, no artigo intitulado “Jornalismo – Linguagem e espaço público dos conflitos da atualidade”, “em tal cenário, urge clarear conceitos plurais – interativamente éticos, técnicos, estéticos – para uma nova compreensão do Jornalismo, que terá de assumir, como predominante, a vocação do espaço público confiável e de linguagem narro-argumentativa eficaz para a expressão, a viabilização e a elucidação dos confrontos discursivos das ações humanas, na dinâmica da atualidade”.
Qual o impacto das redes sociais e da internet na produção e no conhecimento jornalísticos?
S.M. – A passagem do sistema analógico para o digital provocou transformações no campo da comunicação e na prática da produção jornalística. A tecnologia digital contribuiu diretamente para que a informação pudesse ser processada automaticamente e em larga escala, com alto grau de precisão, além de ter influenciado no processo de armazenamento e recuperação de informações, reduzindo inclusive os custos de produção dos veículos. Com a tecnologia digital, que integra processo de produção e difusão da notícia, sistemas e redes interativas, surgiu uma linguagem capaz de integrar, transmitir numa mesma mensagem áudio, texto, fotos, vídeos e gráficos interativos pelo mesmo método, facilitando o sistema de busca da informação.
Na produção jornalística, a tecnologia digital agilizou também a apuração de pautas devido ao acesso à informação proveniente de múltiplas fontes. Da mesma forma que a prática jornalística vem sendo atingida pelas tecnologias digitais, devido às possibilidades de interatividade e participação dos cidadãos, o ensino do Jornalismo também já começa a sentir os efeitos, apontando para a necessidade dos cursos de Jornalismo repensarem a forma como devem habilitar seus alunos dentro desse novo contexto. Um contexto no qual o profissional de Jornalismo já está trabalhando em redações híbridas, graças à convergência midiática, produzindo conteúdos, simultaneamente, para vários veículos e em diferentes plataformas.