Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Mídia técnica’, o inútil motivo da demissão de Helena Chagas

Para comunicar o seu afastamento do cargo de chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM), a jornalista Helena Chagas tornou pública a carta pessoal dirigida à sua chefe, a presidente Dilma Rousseff. No texto cuidadoso, em formal tom amistoso, a ex-ministra desenrola elogios e agradecimentos previsíveis. Nos subsentidos das entrelinhas há, porém, recados importantes a grupos políticos não claramente identificados, provavelmente com interesses que pouco ou nada têm a ver com os interesses da Nação.

A chave dos significados ocultos da mensagem de despedida de Helena Chagas está no seguinte trecho: 

“Foi um período de significativas realizações do seu governo, cuja divulgação se deu com todo o entusiasmo desta Secretaria. O critério da mídia técnica, que herdamos do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que soubemos preservar e aprimorar, propiciou a oportuna e equilibrada publicidade governamental de tais ações públicas, trazendo ao cidadão informação clara e objetiva a respeito de veículos aptos a receber investimentos de mídia foi significativamente ampliado, dentro de um processo de regionalização e democratização da publicidade oficial sem precedentes. São hoje 9.963 veículos cadastrados em todos os estados.”

Grifei a expressão “mídia técnica” pelo inusitado do seu uso pela ex-ministra, como recorte argumentativo para justificar o pedido de afastamento do cargo. Podemos supor, então, que Helena Chagas foi derrubada pelo “fogo amigo” de grupos petistas detentores ou protetores de meios de comunicação excluídos pela mídia técnica.

Para que se entendam bem as razões dessa briga, convém dizer que o governo federal é o maior anunciante do mercado publicitário brasileiro. Segundo a própria SECOM, os gastos com a propaganda oficial, em 2012, formam um número com doze algarismos divididos por três pontos e uma vírgula: R$ 1.797.848.405,13. 

Isso mesmo: quase 2 bilhões de reais, retirados dos tributos que nós, contribuintes, entregamos ao Estado, para que o dinheiro seja aplicado, sem mentiras e sem desonestidades, na construção de uma Nação que garanta ao seu povo condições de vida digna, numa sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e sem desigualdades, por meio de ações inspiradas em valores e princípios que a Constituição estabelece e os governantes juram respeitar. 

Discussão inútil

A chamada propaganda institucional que se pratica no Brasil serve a projetos de poder, portanto ao “bem dos poderosos”, não ao “bem de todos”, como manda a Constituição.

Com meias verdades, a propaganda institucional, regiamente paga, dissemina versões mentirosas da realidade; mascara diagnósticos e falseia dados na manipulação de estatísticas; interfere na liberdade de pensar quando compra a notoriedade de artistas e outros famosos para influenciar convicções e comportamentos de adesão a interesses político-partidários – tudo isso em função do objetivo maior, espúrio, que é o de mover as mentes em favor de quem está no poder. 

A demissão de Helena Chagas seria heroica e patriótica se tivesse sido motivada pela defesa de um projeto de comunicação pública voltado para a geração de conteúdos por métodos e motivações vinculadas ao interesse público e ao direito de cidadania à informação, e a socialização desses conteúdos pela via preferencial da linguagem e dos meios jornalísticos, públicos e privados. Eliminar-se-ia, assim, a necessidade (que é político-partidária, e não social) de gastar em propaganda institucional enganosa essa dinheirama desviada da educação, da saúde, da infraestrutura, da promoção social e de outras prioridades do bem comum.

Em vez disso, estamos aqui discutindo se devem ser técnicos ou políticos os critérios da divisão publicitária de bilhões de reais do orçamento da República. Trata-se de uma discussão inútil. Porque o erro não está nos critérios, quaisquer que sejam, mas na existência dessa política e desses programas de imoral gastança publicitária, que não serve nem à democracia nem ao povo. 

História edificante

Ainda a propósito da carta e da argumentação de Helena Chagas, peço licença para contar uma historinha que ajuda ao entendimento da polêmica sobre critérios de distribuição de verbas publicitárias. 

Ouvi pela primeira vez a expressão “mídia técnica” em fevereiro de 1973, num episódio que me ajudou a entender o que ela significava, em todas as suas implicações teóricas e práticas. Eram tempos de “milagre econômico”, com a economia acelerada pela injeção de petrodólares em grandes obras públicas e investimentos privados. Com os petrodólares cresceram a dívida externa e a corrupção. Mas também cresceu a economia, que atingiu níveis de pleno emprego, com o consumo de bens duráveis estimulado pelo crédito fácil. 

Para entrar no superaquecido mercado brasileiro de carros populares, e com o suporte de uma gigantesca campanha publicitária, a General Motors do Brasil lançou naquele fevereiro o primeiro modelo brasileiro do Chevette. O alarido publicitário fez do evento um grande acontecimento nacional.

O lançamento do Chevette ficou também marcado por uma grande inovação nos critérios do investimento publicitário: a McCann-Erickson, agência responsável pela campanha, resolveu usar as novas possibilidades de planejamento que os primeiros tempos da informatização já propiciavam, para impor critérios técnicos à distribuição de verbas pelos meios de comunicação – e chamou a isso “mídia técnica”. Em função dos objetivos de convencimento a alcançar, eram consideradas variáveis como audiências, tiragens, alcance, credibilidade, fidelidade do público, segmentações de públicos do mercado e valor de imagem da marca das publicações e emissoras. 

A agência propôs, e a GM aceitou, um acordo de radicalização da experiência de mídia técnica, ousadia pioneira naquela época. Assim, passaram a ser rejeitados, para a distribuição de verbas, quaisquer critérios não técnicos, mesmo aqueles comuns nos usos e costumes da publicidade – coisas como relações de amizade, pressões políticas, poder de chantagem, noticiário desfavorável ou a simples notoriedade de jornais e emissoras.

Romeu Neto, então gerente de Relações Públicas da GM, foi informado pela McCann-Erickson que os critérios técnicos haviam excluído os Diários Associados do rateio publicitário. Bom conhecedor das instabilidades morais e éticas que roubavam confiabilidade às relações negociais do mercado publicitário, Romeu Neto tentou manter uma fatia do “bolo” para o que ele chamava de “mídia política”, a ser decidida por ele. Pensava nos imprevisíveis comportamentos dos Associados. E tentava prevenir riscos. Mas foi derrotado pela decisão de radicalizar a experiência pioneira da “mídia técnica”. 

Não deu outra. Mal começou a campanha, o Diário de S.Paulo (título então de propriedade dos Associados) passou a publicar com destaque na sua primeira página, notícias diárias com histórias falsas de falsos consumidores insatisfeitos com automóveis da marca Chevrolet. Até que, vencida, a GMB encostou a barriga no balcão dos Associados e os incluiu no plano de mídia, que deixou de ser técnico à primeira chantagem.

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Descontada a diferença de circunstâncias e protagonistas, o conflito que levou Helena Chagas à demissão é muito parecido com aquele que Romeu Neto tentou evitar. Resta saber quem, no caso atual, está fazendo o papel que os Diários Associados chamaram a si, no lançamento do Chevette.

Quanto à imoralidade da publicidade institucional (que prefiro chamar de propaganda enganosa), mais haveria a dizer. Mas vou deixar isso para o Zelão Abelhudo, sábio da insensatez. Aguardem. Ele me avisou que tem o que dizer.

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Manuel Carlos Chaparro é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo