Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uruguai foi pioneiro em leis sociais

O professor e ativista político Antonio Carlos Peixoto morreu em agosto de 2012, aos 71 anos. Eu iniciara em novembro de 2006 uma série de entrevistas com ele sobre a América do Sul (“As muitas Américas do Sul“; as datações que aparecem acima dos textos estão erradas, foram atribuídas automaticamente numa migração de servidor de internet) e os países sul-americanos. Conversamos depois, nesta ordem, sobre Paraguai, Venezuela, Colômbia 1 e Colômbia 2, Chile, Peru e Bolívia. Antonio Carlos falou também da história política do Uruguai, em maio de 2008, mas meu afastamento do Observatório da Imprensa até agosto de 2010 fez com que essa entrevista permanecesse inédita.

Agora, em esforço de que participa a professora Maria Emilia Prado, com quem Antonio Carlos era casado, o texto foi trazido à tona com a ideia de reunir as entrevistas num livro. Esperemos que os ventos nos ajudem a navegar nessa direção. As falas de Antonio Carlos têm pelo menos dois méritos principais: não ficaram datadas, porque se trata de verdadeiras aulas, e dar aula era algo que ele fazia assombrosamente bem; e sugerem um método de pensamento peculiar no qual convergiam a prática da análise política (ele foi durante longos anos militante do PCB; depois, pertenceu ao PSB), cultura geral que dispensa adjetivos e um conhecimento específico invejável sobre as realidades de América Latina.

Por escrúpulo, ele não quis falar do Equador, país sobre o qual não poderia discorrer sem preparar apontamentos. Também foram deixadas de fora “as Guianas”, como se chamavam em nosso tempo de escola, a saber a Guiana (antiga Guiana Inglesa), o Suriname (antiga Guiana Holandesa) e a Guiana Francesa. Iniciamos uma conversa inconclusa sobre a Argentina.

 

País-amortecedor

O Uruguai nasceu como uma espécie de amortecedor entre Brasil e Argentina, mas foi, dos quatro países que integram hoje o Mercosul, o mais avançado socialmente, a despeito de ter sido uma economia que transitou do modelo agrário exportador para o financeiro desregulado, praticamente um paraíso fiscal.

País ao qual é ligadíssimo o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, teve no século 20 o regime político menos turbulento da região e, ao mesmo tempo, o mais temível movimento de guerrilha urbana, os tupamaros.

Infelizmente, não pudemos gravar, como pretendíamos, uma “coda” da entrevista que permitiria a Antonio Carlos abordar por que o desacordo entre as elites políticas uruguaias abriu espaço, no final dos anos 60 do século 20, à irrupção da guerrilha urbana e à instauração de uma ditadura [1973-85].

O momento iluminador da história uruguaia terá sido a percepção, pelo duas vezes presidente Batlle y Ordóñez, no início do século 20, de que seu partido, o colorado, enraizado em Montevidéu, onde se concentraram os imigrantes – aos quais foi dada logo a cidadania, diferentemente do que ocorreu na vizinha Argentina –, deveria propor um acordo aos blancos, implantados no campo. Esse acordo deixou sob controle políticos dos blancos cinco províncias do norte uruguaio e permitiu a Batlle y Ordóñez criar o primeiro sistema de previdência social das Américas e, com isso, pacificar sociopoliticamente o país.

A publicação desta entrevista é uma homenagem póstuma ao intelectual brilhante que foi Antonio Carlos Peixoto. Agradeço a colaboração de Maria Emilia Prado no tratamento do texto.

Forma-se a nação uruguaia

Como se formou o que viria a ser a nação uruguaia?

Antonio Carlos Peixoto – O Uruguai, que fazia parte do vice-reinado do Prata, se encontrava, portanto, ligado ao que hoje é Argentina e Paraguai. E com um ecossistema que é o prolongamento do que vamos encontrar no Rio Grande do Sul – o pampa gaúcho –, separado pelo Rio da Prata da continuidade desse mesmo ecossistema no caso argentino. E os processos de colonização foram mais ou menos semelhantes.

Com a vinda da família real para o Brasil e com o estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro, dona Carlota Joaquina, que, como sabemos, era espanhola, quis, usando o Brasil como base, reconstituir pelo menos em parte aquilo que seria propriamente o Império espanhol nesta parte do mundo.

Em 1808 já tinha sublevação dessas terras aí?

A.C.P. – Do Uruguai?

Do que hoje é a Argentina, do que hoje é o Paraguai?

A.C.P. – Não. A rebelião contra a autoridade espanhola que começou mais cedo foi a de Buenos Aires, em 1810.

Artigas

Então quando você fala que quis restaurar, não foi imediatamente na chegada… Algum tempo depois.

A.C.P. – Sim. O que é hoje o território uruguaio foi invadido por tropas brasileiras em 1811, e existe um processo prolongado de resistência, levado a cabo por uma figura que é um herói nacional do Uruguai, José Artigas [1764-1850].

Artigas representava o quê?

A.C.P. –A ideia de uma nação.

Chamada Uruguai ou com outro nome?

A.C.P. –Olha, essa é uma boa pergunta.

Banda Oriental?

A.C.P. –A banda oriental do Uruguai é em relação ao Rio Uruguai, lá na fronteira do Rio Grande com a Argentina, com a província argentina de Corrientes. Quando se fala em Banda Oriental do Uruguai é a mesma coisa que…

…Margem esquerda do Sena…

A.C.P. –… Margem esquerda do Jordão. É o lado de cá, é o lado do Rio Grande do Sul do Rio Uruguai, não tem a ver com o país. Artigas encarnava um espírito de resistência de uma área que já tinha uma cidade com alguma importância, Montevidéu, e com o interior, que se recusou aceitar a subordinação a uma Corte europeia instalada no Brasil.

Artigas não foi capturado, Artigas não foi morto, ele simplesmente, em 1817, se exilou, foi embora do Uruguai. E – isso é uma hipótese que eu avanço – para não dar a impressão de que o seu ato de exílio significava uma submissão à Argentina, ele pegou um caminho mais difícil. Ao invés de se exilar em Buenos Aires, o que seria muito mais fácil, pegar um barco e atravessar, ele se exilou em Assunção, no Paraguai, onde já existia o governo de Francia [José Gaspar Rodríguez de Francia; governou de 1816 até morrer, em 1840]. Então nós temos a incorporação deste território ao Brasil com o nome de Província Cisplatina.

Vice-Reinado

Garantida a independência da totalidade da América hispânica, já realizada a independência do Brasil, a Argentina vai efetuar um movimento de recuperação dos territórios que faziam parte do antigo Vice-Reinado do Prata. Envia, então, uma expedição militar ao Paraguai, que foi uma catástrofe para a Argentina, pois o Paraguai, tendo declarado sua independência, continuou separado do Vice-Reinado do Prata e seguiu a sua trajetória como país independente.

Desconfiar do Brasil

Em relação ao Uruguai era de se esperar um choque. O presidente ditador da Argentina, Rosas [Juan Manuel de Rosas, governou Buenos Aires de 1829 a 1832 e de 1835 a 1852], via com muita desconfiança não só o Uruguai incorporado ao Brasil como Província Cisplatina, mas também o Brasil como ente singular numa América do Sul que era quase toda espanhola, exceção feita ao próprio Brasil, e que, além disso, tinha tomado um caminho monárquico.

Não sei se já chegamos a comentar isto em outra entrevista, mas a verdade dos fatos é que aqui na América do Sul a desconfiança em relação ao Brasil, pelo fato do Brasil ter trilhado um caminho monárquico, foi muito grande. Bolívar, em todos os seus escritos, que são muitos, praticamente ignora a existência do Brasil. É como se o Brasil fosse aquela tal jangada de que falava o Saramago, vagando no Atlântico, e houvesse uma reentrância na América do Sul colossal e o mar chegasse à Bolívia. Os outros libertadores também preferem não tomar conhecimento da existência de um ente nacional chamado Brasil, e, portanto, nós surgimos como país cercado por uma enorme desconfiança e uma hostilidade latente de todo o resto do subcontinente americano, aqui da América do Sul.

Rosas

O caso de Rosas é claro: não vai entregar a Província Cisplatina, deixar que aquilo se eternize como Província Cisplatina. Montevidéu é uma cidade onde a língua dominante é o espanhol, no pampa uruguaio a língua dominante era também o espanhol. Pelo menos aquele tipo de espanhol falado pelo gaúcho de lá, porque nós sabemos inclusive que a fronteira do Rio Grande com o Uruguai se caracteriza por uma língua que não é nem português nem espanhol, é uma mistura das duas coisas. Mas mostra que esse modo de vida gaúcho e o idioma espanhol chegaram até a fronteira, entraram um pouquinho por dentro da fronteira. Com uma particularidade, por causa daquelas tentativas da Corte portuguesa, mas nesse caso a Corte portuguesa lá de Lisboa, de colocar ou de iniciar uma presença no Rio da Prata. Já no final do século XVII [em 1680] criou-se a Colônia do Sacramento, que fica praticamente em frente a Buenos Aires.

Portugueses em Montevidéu

Em todas as guerras que ocorreram ali no final do século XVII e durante o século XVIII, os tratados de limites que procuraram estabelecer as linhas de fronteira entre Argentina e Brasil, e o próprio território que hoje é o Uruguai, ainda durante a época colonial, de uma ou de outra maneira permitiram a presença portuguesa em Montevidéu. Nessa época, Montevidéu é uma cidade onde o português não é uma língua estranha, e que é também caracterizada por uma presença relativamente grande de portugueses, comerciantes e outros.

Esse foi até um recurso do qual Mauá [Irineu Evangelista de Sousa, barão e visconde de Mauá, 1813-89] vai se valer, posteriormente, quando empreende aí o projeto, que quase deu certo, de colonização econômica e financeira do Uruguai. Mauá quase foi o dono do Uruguai, faltou pouco.

Dentro de um acordo muito bem estabelecido com a Argentina, em 1825, desembarca no Uruguai uma expedição chefiada por Lavalleja [Juan Lavalleja, 1784-1853] e os trinta e três combatentes que iniciam então a luta pela independência da Província Cisplatina.

Guerra da Cisplatina

É claro que essa questão é desde o início dúbia, porque Rosas estimula a independência, mas ao mesmo tempo incentiva a Província Cisplatina a, tornando-se independente, ir para a Argentina. Lavalleja não pensava exatamente isso, mas os dois eram os chamados aliados de ocasião, um precisava do outro. Inicia-se então a famosa Guerra da Cisplatina. É aquela guerra na qual a Argentina não ganha, mas o Brasil perde. Três anos de guerra, 1825 a 1828, na qual tropas argentinas invadiram o Rio Grande do Sul, dá-se aquela famosa batalha, a batalha que a historiografia oficial do exército brasileiro procura dizer que foi um empate técnico, mas que a historiografia oficial do exército da Argentina diz que eles ganharam. E parece que eles têm razão. Realmente foi uma vitória argentina.

Com dinheiro inglês

Como é o nome da batalha?

A.C.P. –Os argentinos chamam de Ituzaingó. E no Brasil ela se chama Passo do Rosário. É travada numa área central do Rio Grande, e ao fim e ao cabo, depois de três anos de guerra, uma guerra para a qual nenhum dos dois países estava preparado – porque a independência tinha sido recém-conquistada e os problemas de organização de um Estado eram muito mais prementes do que uma guerra na fronteira sul –, em 1828, chega-se finalmente a um acordo, e esse acordo se dá em larga medida por interferência de Sua Majestade britânica, porque ambos os países estavam travando a guerra com dinheiro emprestado. E, como se sabe, se dois brigam, mas a fonte de aprovisionamento financeiro é a mesma, há um momento em que os sujeitos que estão emprestando dizem: esses caras vão continuar uma guerra inteiramente maluca e daqui a pouco eu não recebo dinheiro de nenhum dos dois. Então, vamos parar com isso.

Não quero de modo nenhum sugerir que as coisas chegaram ao fim única e exclusivamente por causa do governo britânico, que foi acionado pelas casas financeiras, pelos bancos. Havia já uma disposição também tanto do governo brasileiro, de dom Pedro I, como de Rosas, de chegar a um acordo. Isso porque os dois sentiam que estavam se desgastando numa guerra que era mais ou menos inútil. Afinal, nenhum dos dois levava vantagem e não havia assim na linha do horizonte a perspectiva de que um dos dois fosse ganhar. A proposta feita foi sábia. Para evitar futuros atritos entre o Brasil e a Argentina, cria-se ali onde era a Província Cisplatina um país independente chamado Uruguai, que vai funcionar como aquilo que se chama em linguagem diplomática o buffer state, o estado tampão, para evitar que os dois fiquem se cutucando mutuamente. E assim diminui sensivelmente a violência das relações, os atritos. Assim foi criado o Uruguai.

Identidade uruguaia

A que você atribui a existência possível, provável nesse caso até, de uma identidade uruguaia, como se define uma identidade uruguaia? O cara não é nem português, nem espanhol, nem argentino…

A.C.P. – Não, ele não é nem português, nem argentino. Eu diria o seguinte: o elemento nacional uruguaio se dá em primeiro lugar e antes de mais nada pelo fato de que eles não queriam uma anexação à argentina.

Quem são eles? Os habitantes…

A.C.P. – Começa com o velho Artigas…

Mas Artigas representava o quê?

Colônia do Sacramento

A.C.P. – Representava um espírito nacional uruguaio, que estava provavelmente mais no interior, no pampa uruguaio, do que em Montevidéu, onde a presença portuguesa era importante, por causa das velhas histórias da Colônia do Sacramento.

Eu não achei necessário aqui me referir às coisas da Colônia do Sacramento, elas têm um impacto sobre o Brasil, principalmente por causa dos tratados de limites: Tratado de Madri [1750], Tratado de Santo Ildefonso [1777], etc., mas isso não tem muito a ver propriamente com o Uruguai, ficou uma espécie de jogo de pingue-pongue.

Às vezes Portugal entregava a Colônia do Sacramento, que era um posto avançado do Império português no Rio da Prata, e recebia alguma coisa em troca. Às vezes Portugal queria manter a Colônia do Sacramento e ia à guerra. Na mais importante delas, o vice-rei do Prata dom Pedro de Cevallos [1777-8] invadiu o Rio Grande. O Rio Grande foi invadido por um exército espanhol, mas na realidade composto de argentinos comandados por dom Pedro de Cevallos, e até cabe dizer que ele estava levando vantagem quando a diplomacia agiu, tirou a Colônia do Sacramento e entregou as Missões jesuíticas, cuja linha de fronteira não estava muito bem definida.

Tinha havido aquilo que ficou conhecido como Guerra Guaranítica [1754-5], quando o exército português, composto basicamente por brasileiros, entra no Rio Grande do Sul e destrói as Missões jesuíticas, porque até então essas missões eram consideradas como pertencendo ao lado espanhol. Fixa-se aí uma linha de fronteira entre Brasil e Argentina.

Você diria que residem nesses episódios raízes históricas da hostilidade popular brasileira à Argentina e vice-versa?

A.C.P. – A Colônia do Sacramento era o pano de fundo da história. Aquilo era uma área deserta, mas existe uma colonização espanhola, do outro lado do Rio da Prata, em Buenos Aires. O que o Império português pretende, portanto, é assegurar sua presença na margem de cá do Rio da Prata, margem norte, já que a margem sul era ocupada por eles. Vamos encostar na colonização espanhola tendo só um braço. Ali ainda é rio. Montevidéu não era perto, mas a Colônia, como se chamava o lugar e se chama até hoje a cidade, fica em frente mesmo a Buenos Aires, e a travessia de barco dura muito pouco.

E a Colônia de Sacramento andou mudando de mãos várias vezes. Ela era atacada. Os espanhóis tomavam, os portugueses voltavam, até que em algum momento o vice-rei do recém-criado Reinado do Prata resolve acabar com essa questão. Cevallos invade realmente o Rio Grande para resolver essa questão de uma vez por todas, porque na percepção espanhola o Rio Grande do Sul também devia ser área deles, uma vez que era contíguo ao Uruguai. O limite então devia ser dado pela Serra gaúcha. Ali devia parar a colonização espanhola. Manter o Rio Grande do Sul para o Império português já foi uma coisa importante. O Tratado de Madri fixou as fronteiras.

Missões arrasadas

Os portugueses entregam a Colônia, é como se eles estivessem desistindo do Uruguai, mas recebem a chamada Banda Oriental do Uruguai, as Missões, os Sete Povos das Missões da Banda Oriental do Uruguai. Ali você tem, portanto, um exército português, mas composto por brasileiros, que entra naquela área e arrasa as missões jesuítas, São Borja, São Luís, Santo Ângelo. E posteriormente existe um outro tratado que revoga o Tratado de Madri, o tratado de Santo Ildefonso, vinte e tantos anos depois.

Revogado o tratado de Madri…

A.C.P. – Revogado o tratado de Madri, a Banda Oriental do Uruguai volta a ser Império espanhol. Mas não tem mais os padres para organizar as missões. Aquilo virou um território deserto. Não interessa mais a margem de lá do Rio Uruguai ocupada, então fica uma terra de ninguém. Eu não sei exatamente quando, mas creio que em 1808 uma pequena expedição militar, saindo de Porto Alegre, chega lá e ocupa todo o território que vai até o Rio Uruguai.

Quer dizer, na prática, voltar para a Espanha a chamada Banda Oriental do Uruguai não significa nada, porque as Missões foram arrasadas, os índios que existiam ali estão vagando pelo pampa. Aquilo não tem mais significado. Eles não ocuparam. Foi devolvido, mas na devolução eles não ocuparam E em 1808 o Brasil ocupa definitivamente.

Existia um espírito nacional uruguaio que começou se formar embrionariamente antes do processo da independência. Principalmente com Artigas. É a ideia de que aquilo era um ente autônomo. Ele tem uma fronteira sul que é dada pelo Rio da Prata e pelo mar, portanto ele não tem contiguidade em relação à Argentina. É preciso ver o seguinte, a contiguidade física do Uruguai é o Brasil, era o Rio Grande do Sul; em relação à Argentina vai ter sempre rio separando, rios grandes, largos. Em relação ao Brasil existe uma distância porque aquilo ali é Espanha, de qualquer modo, e o Brasil é Portugal. Então vai se criando embrionariamente uma ideia de que o Uruguai não é Buenos Aires, mas também não é Brasil.

M.M.: Poder-se-ia dizer que se não tivesse havido o acidente histórico que você menciona como sendo uma das raízes da formação do Uruguai, o Uruguai hoje seria para a Argentina o que o Rio Grande do Sul é para o Brasil.

A.C.P. – Mais ou menos isso.

Um movimento separatista.

A.C.P. –É uma contiguidade, e tal…

É pura especulação minha.

A guerra desce o altiplano

A.C.P. – É, isso é um pouco de especulação, mas tudo bem, podia ser. Esse acidente histórico então foi determinante, porque Carlota Joaquina põe na cabeça que tinha de incorporar. Até porque na época em que ela invade a Argentina tinha acabado de declarar sua independência e não tinha condição de reagir. Não houve guerra pela independência da Argentina dentro do território que hoje é a Argentina, mas na área norte da Argentina, principalmente na província que eles chamam de Salta, que é contígua à Bolívia e que é, digamos, um prolongamento do altiplano boliviano que vai descendo, as altitudes são bem menores. Ali, sim, ali teve guerra. Porque, partindo da Bolívia, o Império espanhol, com as guarnições espanholas, reage. Aquela fronteira norte da Argentina foi uma fronteira de conflito. A Argentina não tinha condição de reagir à ocupação da Província Cisplatina. Ela só vai reagir em 1825, no governo de Rosas.

Quem luta é o gaúcho

É preciso também levar em conta que manter um exército era muito caro, como ainda é. Mas era muito caro para um país que…

A.C.P. – Não tinham condições de manter.

O próprio Exército brasileiro até a Guerra do Paraguai nunca passou de 15 mil homens.

A.C.P. –E uma guerra ali é muito mais baseada em unidades irregulares, ou seja, em bom português, significa o seguinte, você chama o gaúcho para brigar. É isso. Você tem pouquíssimas unidades que são regulares…

Batalhão sediado…

A.C.P. – A grande massa que está combatendo é de elementos irregulares. Foi assim com as guerras do Brasil, até o momento em que Caxias assumiu o comando do exército na Guerra da Tríplice Aliança. A Guerra do Paraguai, o esforço da Guerra do Paraguai ainda é o mesmo, é o gaúcho brigando. É em 1866 que o Brasil resolve levar a guerra a sério e então você tem o esforço de aumento do Exército por meio do voluntariado, entre aspas, os voluntários da pátria.

Num primeiro momento parece que teve voluntários mesmo. Mas logo depois, quando os caras viram que aquilo ia virar um pantanal medonho, “não, manda os escravos, faz qualquer negócio aí”. E além do mais tinha muita gente roubando.

Guerra dos Farrapos

A.C.P. – Uma boa parte dos voluntários foi arrebanhada embaixo de chicote. Foi gente laçada e empurrada de qualquer jeito. Alguns escravos. Mas, o que eu quero dizer é o seguinte, essa é uma guerra travada basicamente por elementos irregulares. É uma guerra na qual alguns dos comandantes vão ser homens importantes da Guerra dos Farrapos [1835-45]. Bento Gonçalves, David Canabarro. Eles já foram homens que estiveram na Guerra da Cisplatina.

E, incidentalmente, há pouco tempo estive em Buenos Aires, mas depois desci em Porto Alegre, fiquei uns três, quatro dias lá, para ver umas conferências na Federal do Rio Grande do Sul, estava conversando com um professor que é especialista em história regional e ele me disse que em algum momento, quando Caxias assumiu o comando, Bento Gonçalves propôs uma negociação. Os termos da negociação era o seguinte: eu aceito o Império, mas vocês aceitem o Império federativo, uma autonomia provinciana. Se vocês aceitarem, eu trago para o Império brasileiro a província de Corrientes. Porque guerras e guerras, amigos se fazem. Havia uma rede de relações locais ao longo da linha de fronteira e descendo pelo território uruguaio que algumas das lideranças gaúchas tinham construído. Havia. E Bento Gonçalves dizia não ser difícil trazer o Uruguai. Agora, o Caxias endureceu, disse “não, não vai ter federação”. O Bento diz “bom, então eu continuo a guerra, até onde eu não sei, mas eu continuo.”. E assim foi. Por isso é que tem aquela desgraça. Demorou dez anos.

Você já está falando dos Farrapos?

A.C.P. – Dos Farrapos. Mas os homens eram mais ou menos os mesmos do lado brasileiro. Tinha um comandante lá que veio do Rio de Janeiro, enviado por dom Pedro I. Mas os homens de campanha eram os que conheciam o pampa, o terreno. Eram esses. Os homens que seguraram aquilo eram chefias locais do Rio Grande, as chefias políticas e militares, que frequentemente se confundiam, eram as mesmas.

Depois dos Farrapos há um episódio na história regional gaúcha que são as chamadas Califórnias, dirigidas por Francisco Pedro de Abreu, Chico Pedro, o barão de Jacuí [1811-91]. Ele organiza uma série de expedições que saem da fronteira do Rio Grande e entram no Uruguai com o único objetivo da pilhagem. Fazendas no Uruguai são assaltadas, gado roubado. Aquela fronteira nunca se estabilizou. Quer dizer, a partir de certo momento se estabiliza, mas demora para se estabilizar. E no meio disso você tem relações de conflito e de cooperação. É uma fronteira que não tem limite geográfico.

Nem etnográfico.

Linha fictícia: fronteira

A.C.P. – Nem nada. Você olha uma pastagem, no meio dessa pastagem tem uma linha fictícia. Além daquela linha é Uruguai, para cá é Brasil. O tipo humano é o mesmo. Alguém respeita isso? Ninguém respeita. Não é próprio do ser humano respeitar isso. Você tem o rio larguíssimo, é mais complicado, aí é muito mais complicado. Você tem montanhas mais ou menos escarpadas, elevadas, aí é complicado.

Mas muito bem. O Uruguai tem então o seu início como nação. Veja bem, eu não quero sugerir ao futuro leitor que existe um espírito nacional uruguaio fortemente marcado e separado do Brasil e da Argentina. Não, não é isso. Mas existe um espírito nacional uruguaio. Ele pode não apresentar sinais extremamente fortes, visíveis e característicos. Ele existe de forma um pouco mais tênue, mas existe um espírito nacional que se forma por oposição a uma incorporação a Buenos Aires e também por oposição à incorporação ao Brasil.

Eu já previno o leitor que quando Antonio Carlos fala “Buenos Aires” tem um sentido muito preciso que vai ser explicado quando ele falar da Argentina: por que neste momento ele não fala Argentina e fala Buenos Aires?

A.C.P. – Porque a grande referência argentina para o Uruguai é Buenos Aires, que está a uma viagem de barco no Rio da Prata.

Porque a Argentina internamente não tinha resolvido como até hoje não resolveu direito os conflitos regionais.

Solução argentina

A.C.P. – Não, resolveu, isso está resolvido.

Lá não tem lei de responsabilidade fiscal. Se o governador quiser quebrar um estado, que se dane. Se um governador lá, vou dar um exemplo bem recente, que seria difícil no Brasil, um governador chega e diz: preciso de tanto [propina] para autorizar uma usina de celulose, acabou de acontecer, deu origem a todo esse conflito aí, preciso de tanto, aí o finlandês diz “mas é muito”, vai o uruguaio, diz “aqui nem precisa pagar nada, basta fazer que aqui para nós é um grande negócio”. Então, esse governador argentino que existia na época, eu posso até ver o nome dele…

A.C.P. – Não, mas essa história é a seguinte. É porque ali na província, é Entre Rios. É a área que se chama a Mesopotâmia Argentina, que fica entre os dois rios, o Paraná e o Uruguai. Mais ao sul você tem Entre Rios, fronteira fluvial com o Uruguai. Corrientes é a fronteira fluvial com o Brasil. Quer dizer, com o Rio Grande do Sul e Missiones, aí já é fronteira com Santa Catarina e Paraná. Esse cara era peronista. Esse negócio foi incentivado pelo [Néstor] Kirchner [1950-2010], o governo central da Argentina incentivou isso por causa da caixinha do Partido Peronista e da caixinha também das campanhas de cada um dos dois, do governador, do presidente. Aí não é um problema de rebelião, um estado contra o poder central, é o contrário, poder central comanda o estado. E uma das maneiras que o poder central tem de assegurar a lealdade política é justamente por meio da desordem dos caixas estaduais, provinciais, como eles chamam, da federação argentina.

Espírito nacional

Então eu diria o seguinte: há um espírito nacional que se forma, eu não vou nem chamar por oposição, mas por diferenciação em relação a Buenos Aires e ao Brasil. Isso não tem, evidentemente, a força que tem, por exemplo, um espírito nacional argentino que não se confunde em nada com o do Chile, porque tem aquele negócio enorme que é a cadeia andina que separa os dois. E nem com o boliviano, porque a Argentina não é altiplano. Existem umas ramificações do altiplano entrando na Argentina, mas a colonização já foi diferente, não foi baseada na mineração, etc. Então você tem um tipo argentino que garante um espírito nacional. Não é o caso uruguaio, porque o tipo uruguaio, o gaúcho, é encontrado no Rio Grande do Sul e é encontrado na Argentina. Mas por um elemento de diferenciação em relação a Buenos Aires, em relação à colonização portuguesa do Rio Grande do Sul, você vai ter um espírito nacional uruguaio. E isso vai se desenvolver ao longo do século 19.

Eu não vou me deter muito no século 19 uruguaio, até porque este século 19 não vai nos apresentar nenhum elemento que possa indicar uma direção diferente do Uruguai. Você vai encontrar ali um processo de ocupação da terra que é semelhante ao do Rio Grande, que é semelhante ao da Argentina, o da grande propriedade, principalmente pecuária. E a formação dos dois partidos, dos blancos e dos colorados, que se diferenciam em alguma medida, ou uma das suas razões de diferenciação está nos seus apoios externos. Um procura ter melhores relações com o Império brasileiro, o outro procura ter melhores relações com a República Argentina.

Blancos e colorados

Mas, a saber, quem é o quê?

A.C.P. – Blancos são mais ligados à Argentina e colorados são mais ligados ao Império brasileiro.

Tem alguém que seja mais conservador, mais liberal?

A.C.P. – De um modo geral você pode dizer o seguinte, os colorados têm uma base que é maior em Montevidéu e nas outras pequenas cidades uruguaias, Salto, Paysandú, etc. A força dos blancos está no interior, é o pampa, é o gaúcho. São os grandes proprietários do interior. Você sabe que a guerra contra Rosas realmente se inicia quando o caudilho da província de Entre Rios, que é o Urquiza [Justo José de Urquiza, 1801-70], se rebela contra ele. Mas o Império brasileiro entra, pois tudo o que se quer é um pretexto para derrubar Rosas. O Uruguai está sendo governado por um blanco, [Manuel] Oribe [1792-1857]. E o Brasil aproveita também para botar para fora o Oribe. A esquadra brasileira, meia dúzia de navios, navegação fluvial, entra em Paysandú, cidade ribeirinha do Rio Uruguai, e ocupa Paysandú, desloca Oribe do poder e logo depois entra na guerra junto com Urquiza contra Rosas. Quer dizer, blancos e colorados nunca conseguiram acertar os seus ponteiros. Viveram em conflito aberto e constante durante todo o século 19.

O conflito chega a ser armado?

A.C.P. – Em armas. De um modo geral o conservadorismo uruguaio passa pelos blancos, que representam uma sociedade mais rural, mais interiorana, o espírito dos colorados é mais liberal, mais urbano. Isso começa a mudar nas últimas décadas do século 19, quando se inicia a onda migratória que se derrama principalmente sobre o Atlântico Sul, ou seja, pegando Brasil, Uruguai e Argentina. O sonho dourado é a Argentina, mas alguns preferem ficar do outro lado do Rio da Prata, não tem muita explicação, o critério da imigração é um critério um pouco estranho. Como atingiu São Paulo, atingiu áreas do sul do Brasil, também passou pelo Uruguai, houve gente que emigrou primeiro para o Brasil, depois foi para o Uruguai, depois para a Argentina. Há casos de imigração argentina que depois veio ao Brasil. Eu antecipo alguma coisa sobre a Argentina. Mas é preciso ver, nesse quadro migratório, que ele em números absolutos é mais no Rio da Prata que no Brasil. Em números absolutos, a Argentina recebeu mais imigrantes do que o Brasil recebeu.

Em números relativos também.

Imigrantes na Argentina

A.C.P. – Em números relativos um pouco mais. O único país do mundo que nessa época recebeu um número de imigrantes maior do que a Argentina foi os Estados Unidos. Bem-situado, em frente ao mar, coisa que em Buenos Aires é mais complicada, porque ali é rio, a navegação é mais complicada. Montevidéu é uma cidade marítima, Buenos Aires ainda tem alguma coisa de cidade fluvial. Uma parte dessa imigração se deteve ali e ficou ali. O Uruguai recebeu, então, uma imigração que em termos relativos foi enorme, eu arriscaria dizer que em termos relativos ela deve ter sido a maior. E isso, ao mudar o perfil socioeconômico, vai necessariamente ter um impacto no perfil político.

Existem textos ainda do conservadorismo uruguaio do fim do século 19 chamando a atenção para isso, que o espírito nacional uruguaio está sendo corroído, corrompido, que as verdadeiras raízes do Uruguai estão no campo. E os problemas se mantêm até a década dos 90. O campo uruguaio, o agro uruguaio, os blancos, portanto, veem com desconfiança todo esse fluxo imigratório.

Mas o governo deixava entrar?

A.C.P. – O governo deixava entrar.

Fosse blanco ou fosse…

A.C.P. – Colorado. Aquilo era dinheiro, em última análise. Quer dizer, essa imigração era de caras de que iam trabalhar, iam abrir os seus negócios.

Abrir negócios, não iam trabalhar no campo.

A.C.P. – Não, muito pouco no campo.

Diferentemente dos italianos no Brasil.

A.C.P. – E dos italianos também na Argentina. Também eles foram trabalhar no agro da Argentina. No caso uruguaio não, porque a economia uruguaia era muito mais de pecuária. Uma pequena economia agrária é algo que começa a acontecer depois. Nem o pampa uruguaio como o pampa do Rio Grande têm a fertilidade excepcional que tem o pampa argentino. Aquilo é uma economia muito baseada na pecuária e na lã, ou seja, como a Argentina, nisso não é diferente, eles têm que esperar que surja a eletricidade, o navio frigorífico, para poder exportar carne, a lã já era exportada desde um pouco antes.

Batlle y Ordóñez

Veja bem que existem certos processos da história que não podem ser explicados sem a menção a um indivíduo, a um homem. Em alguns casos um homem faz a história. Obviamente ele não faz sozinho, mas sem ele muito possivelmente a vaca poderia ter ido para o brejo, porque o aumento constante do fluxo migratório, o fortalecimento de Montevidéu e de outras cidades frente ao campo poderia acabar levando a um choque civil de proporções realmente grandes.

É aí que surge a figura de um grande uruguaio, um homem venerado até hoje no Uruguai, que é a figura de [José] Batlle y Ordóñez [1856-1929]. Você ainda vê aí presidente uruguaio recente com esse sobrenome, Batlle. A raiz está nele. Escreve-se Batlle mas eles pronunciam “baje”. Batlle y Ordóñez é o quadro político colorado que põe os olhos no fluxo imigratório, homem de visão, hábil, propõe um acordo. Os termos do acordo são muito simples. Eleitoralmente, pela imigração que ocorreu, nós somos os mais fortes, nós vamos ganhar. Mas vocês não vão aceitar esse resultado, vão tentar resolver isso pelo modo que historicamente sempre usaram, as armas. Este país vai se dividir ao meio, isso vai ser uma catástrofe para o país, porque nós podemos até perder, mas vocês não ganham. Ninguém ganha. Só vai ter um perdedor, que é o país. Então, vamos fazer o seguinte: deixem-nos governar o Uruguai a partir de Montevidéu e eu entrego a vocês as cinco províncias do norte uruguaio, que são aquelas mais ruralizadas, justamente as que fazem a fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul. Eu agora não tenho de cabeça o nome dessas cinco províncias. Sei, por exemplo, que Tacuarembó é uma delas [as outras são Rivera, Paysandú, Salto e Artigas]. Nessas cinco províncias vocês se perpetuam no poder, nós não vamos disputar eleição, não vamos tentar dividir vocês, não acontece nada. Vocês governam se revezando, se perpetuando no poder. Agora deixem-nos governar tranquilos.

Alguns laivos de bom senso passaram ali pelas mentes das lideranças dos blancos: “O acordo é aceitável e qualquer reação nossa vai levar o país a uma catástrofe. O país pode até acabar”. Então, o acordo foi feito. Batlle governou o Uruguai em duas ocasiões, entre 1903 e 1907 e, depois, entre 1911 e 1915.

Um Uruguai pacificado

Na virada do 19 para o 20 você tem um Uruguai pacificado. E um Uruguai pacificado dentro de um projeto liberal. Aceita-se a imigração, os imigrantes têm o seu lugar aí. Um projeto liberal que – eu faço só o contraste – não se desenvolve na Argentina, porque a oligarquia argentina que está no poder nessa mesma época não tem um projeto liberal como os colorados tiveram no Uruguai. E imigração, sim, queremos todos, mas vamos ver como é que nós tratamos deles. Aí é outra história, é a historia da Argentina e não do Uruguai.

Mais do que isso, Batlle y Ordóñez é um homem tão extraordinário que ele vai criar no Uruguai, no início do século 20… Pelo que sei, os primeiros sistemas previdenciários do mundo foram criados na Alemanha de Bismarck [1871-90]. Um sistema alternativo que fornecia renda vitalícia para idosos cuja renda estivesse abaixo de determinado patamar, sem base contributiva e financiado, portanto, por impostos gerais, foi adotado na Dinamarca em 1891. O mesmo ocorreu na Nova Zelândia em 1898 e em 1908 na Austrália e na Inglaterra.

O certo é que no início do século 20 Batlle y Ordóñez cria o sistema previdenciário uruguaio, e é de longe o primeiro sistema previdenciário do hemisfério americano e muito antes do que os da quase totalidade dos países europeus. Batlle y Ordóñez parece, visto assim em perspectiva histórica, um homem obcecado pela paz. Não só pela paz política, quer dizer, colocar um fim na pauleira que existiu durante todo o século 19 entre blancos e colorados, mas uma vez que isso foi obtido através do famoso acordo das cinco províncias, passou a se preocupar com a realização da paz social. Evitar o conflito social, porque esse conflito social já está se desenhando do outro lado do Rio da Prata, e cria, então, um sistema previdenciário. Nós vamos ter, portanto, o desenvolvimento de um Uruguai internamente pacificado pelas suas duas vertentes: pacificação política e pacificação social. Evita-se o conflito social porque o sistema previdenciário adotado cumpriu sua missão.

Evitar o conflito social ou evitar que o conflito social se transforme em outra coisa? Quando se diz evitar o conflito social pode-se dar ideia de que não tem conflito de interesses entre patrões e empregados…

A.C.P. – Tem, claro que tem… Não, sempre tem…

Criar regras…

A.C.P. – Criar regras e evitar que o conflito social se transforme num fator de tensão nacional. E o objetivo foi cumprido. O uruguaio não teve Vargas, não teve Perón. A noção de caudilhismo no Uruguai é algo que está deslocado lá pelo século 19, não é uma questão do século 20. Você não vai encontrar o populismo à la uruguaia.

E eu estou dando aí à palavra populismo não um sentido de desprezo que ele tem na imprensa. Não acho que Vargas e Perón tenham sido homens desprezíveis, de jeito nenhum. Mas na época, nos anos 30, 40, você não vai encontrar no Uruguai nada de semelhante a isso. Por quê? Porque as relações sociais estão muito melhor reguladas do que no caso dos dois poderosos vizinhos do Uruguai.

Quando Batlle y Ordóñez entrega a sua última presidência, em 1915, você tem um país que está realmente pacificado, um país ordenado. Eu não saberia projetar os índices de desenvolvimento humano para aquela época. Sem dúvida alguma a qualidade de vida ali era alta. O movimento intelectual uruguaio é importante. A Universidade Nacional de Montevidéu é uma universidade onde existem pensadores, um movimento de ideias que não é de modo nenhum desprezível. Não é a Argentina, que produziu ininterruptamente uma intelectualidade . A intelectualidade brasileira pode se equiparar a ela, mas é de algum tempo pra cá.

Os melhores deles são mais ou menos iguais ao melhores nossos e vice-versa.

A.C.P. – Agora. Porque 50, 60 anos atrás, de jeito nenhum. Este processo de pacificação uruguaia permite uma série de coisas. Permite a implantação de um sistema de ensino público…

Por lei?

Mauá

A.C.P. – Nós vamos abrir um parêntese para colocar isso. É nos anos 50 do século 19 que se inicia uma expansão dos negócios do Mauá na direção do Uruguai. Eu não tenho nenhuma dúvida em dizer que o Mauá foi o maior gênio empresarial latino-americano durante muito tempo. Gaúcho, da cidade do porto do Rio Grande. Foi um homem que viu uma série de coisas. A vantagem do trabalho livre sobre o trabalho escravo. Você sabe que Mauá chegou inclusive a comprar títulos de propriedade de escravos, dava liberdade e treinamento de mão de obra para os caras irem trabalhar nas empresas dele.

Principalmente na área de construção naval, que ele tinha ali numa área que se chamava Ponta d’Areia [bairro de Niterói], quando o Brasil teve uma das boas indústrias de construção naval do mundo. Eu não sei se era a quinta ou a sexta do mundo. Britânica, americana, francesa, alemã, russa, austro-húngara, porque tinha saída ali por Trieste, que era império austríaco, e Brasil. Estava entre as dez maiores do mundo. Poucos países tinham e o Brasil era um deles.

Liquidaram com Mauá. Uma casa bancária britânica não deu a ele um financiamento que ele esperava, falou que já tinha jogado muito dinheiro nos negócios dele e o Tesouro imperial se recusou a adiantar o dinheiro dele em troca de uma promissória. Ele não tinha nenhum problema estrutural, teve um pequeno problema de caixa. E o Império, quer dizer, na época era um ministério conservador. Eles deixaram o homem falir. Tragédia.

Mauá teve uma expansão muito grande no Uruguai. Banco, toda a navegação de cabotagem do Uruguai, era controlada por ele, e os principais serviços urbanos de Montevidéu pertenciam a ele. Mas com a falência ele não conseguiu pagar os outros acionistas dos negócios dele, aquilo que era prometido, que lhes era devido, o resultado, você sabe, é o chamado efeito dominó. As coisas aí se precipitam e nos anos 60 foi a chamada quebradeira.

Eu não sei bem até que ponto essa expansão dos negócios do Mauá em Montevidéu provocou rivalidades, acendeu, eu diria, a chama de uma nacionalidade uruguaia, isso é uma coisa que era preciso verificar melhor. Mas o certo é que era uma época na qual ele era considerado dono do Uruguai. Todos os negócios rentáveis do Uruguai estavam nas mãos dele. Menos a agricultura. A agricultura, a pecuária, porque nos 50 e 60 a pecuária de grande porte não tem valor de mercado. Só internamente.

Escravos

Nem charque?

A.C.P. – Aí já não se usava mais muito charque, não. O número de escravos é um número declinante, alimentação por meio da carne seca já é algo que está em pleno declínio.

Por falar nisso, o Uruguai teve um certo número de escravos negros.

A.C.P. – Teve, mas era uma escravidão principalmente urbana.

Como Buenos Aires também teve. Só que você vai a Buenos Aires e esse pessoal sumiu.

A.C.P. – Eles foram colocados num gueto. O governo Rosas pegou a população negra de Buenos Aires e jogou toda ela para uma área da Patagônia. Foi uma decisão de governo: “Não queremos miscigenação racial”. O Uruguai não fez isso. Isso é uma coisa que eu acho que tem de diferenciar. O espírito uruguaio, o etos uruguaio, o modo uruguaio de tratar as coisas é muito mais tolerante. Não tem aquela prepotência, aquele espírito de cruzado. Cruzado no sentido das Cruzadas, de acabar com os infiéis. Tem negro? Ora, tem negro. Tem preconceito. Não é bom ter negro, mas tem. Deixa eles. Ter negro é pecado, então acaba com o pecado. O modo uruguaio de se manifestar na vida social é um modo mais tolerante, mais aberto. Não é aquela certeza arrogante, muito própria do argentino e, em particular, também de Buenos Aires. O montevideano não é o portenho.

Índios

 E os índios no Uruguai?

A.C.P. – Ah, não, isso morreu tudo.

Mas eu fui ao Uruguai em 1992, era uma comitiva oficial, tinha uma guarda de honra no desembarque no aeroporto e os soldados eram índios. Eram baixinhos, cabelinho liso, preto.

A.C.P. – Você teve miscigenação com índio como também teve na Argentina, mas ela é pequena. Ali no pampa uruguaio vivia uma etnia guerreira, que frequentemente invadia o Rio Grande do Sul. Eram os índios que tinham duas denominações. Se eu não me engano, do lado uruguaio, no pampa uruguaio eles eram chamados de charruas, e no Rio Grande do Sul eles eram chamados de minuanos. Minuano é o vento que sopra do sul, quer dizer, como eles vinham e irrompiam sempre pelo sul, do lado brasileiro, eram chamados de minuanos.

Parece que nos anos 40, depois dos Farrapos, ocorreu a última grande expedição de pilhagem dos minuanos no Rio Grande do Sul, combatida inclusive pelo futuro general Osório, Marquês de Herval [Manuel Luís Osório, 1808-79), mas parece que não é um fator importante na formação da nacionalidade uruguaia.

Imigrantes

No oeste teve imigração de tudo quanto é jeito: portuguesa, espanhola, italiana, judaica, sírio-libanesa. Enfim, a mesma coisa que aconteceu aqui, aconteceu lá. Mas isso é uma coisa que acho que tem que ser assinalada. As relações com a imigração por parte dos antigos moradores eram muito mais tranquilas. Você sabe que sempre existiu na Argentina um antissemitismo que é uma coisa perversa daquele país. Apesar de ter uma colônia judaica muito grande, maior que a brasileira…

Ainda agora, depois da grande repressão que provocou a queda de 600 mil para 300 mil judeus na Argentina, ela ainda é o dobro da brasileira.

A.C.P. – É isso que eu ia dizer.

O destino dos judeus que saíam da Europa era Buenos Aires. Seiscentos mil não é pouca coisa.

A.C.P. – Não, não é pouca coisa, não,

Mas depois da ditadura o antissemitismo ficou muito aberto.

A.C.P. – Começou com a ditadura do [Jorge Rafael] Videla [1976-81].

Está cheio de psicanalista argentino no Rio, em São Paulo. Está cheio de cara que foi morar na Europa, sei lá onde. O que eu não entendo, mas ainda não chegou, é por que o Uruguai teve uma ditadura militar. Pelo relato que você está fazendo não era para ter. O que mostra que ou a situação se deteriorou de tal maneira, ou a pressão por esse tipo de regime foi praticamente incontornável. Não sei, mas vamos chegar lá. Nós vamos voltar agora para 1915.

Ensino público

A.C.P. – Você tem aí um sistema de ensino que funciona bem – não é o argentino, mas é um sistema de ensino que dá conta das coisas. Precisa dizer também que é um país pequeno. O Uruguai em território é menor que o Rio Grande do Sul, sensivelmente menor. Um ou dois rios mais caudalosos. Seja por ferrovia e posteriormente por rodovia, aquilo é mais ou menos tranquilo para integrar. E uma relação tranquila com a imigração. Ou seja, não ocorre ali, primeiro, a tensão do ponto de vista cultural. O imigrante não é visto com desconfiança, ele é bem aceito, qualquer que seja ele, judeu, “turco”, qualquer coisa. Não há problema. E, segundo, não há um problema político como ocorre na Argentina, porque a oligarquia argentina se mantém durante tanto tempo no poder e dificulta a obtenção da nacionalidade argentina por parte do imigrante. Num momento em que a imigração já era enorme na Argentina, mas o corpo eleitoral era mínimo, porque os imigrantes não votavam.

Cidadãos de segunda categoria. Nem cidadãos.

A.C.P. – Não eram nada.

Eram mão de obra.

Argentina vs anarquistas

A.C.P. – E havia um dispositivo constitucional na Argentina que permitia a expulsão do imigrante por perturbação da ordem pública. Era para prevenir os graves problemas causados pelo anarquismo. Aqui no Brasil você teve uma lei desse tipo, de controle da imigração, de autoria de um senador por São Paulo, Adolfo Gordo. Mas a argentina é anterior à brasileira. Nós olhamos o que eles fizeram e a oligarquia paulista rapidamente tratou de se assegurar os mesmos mecanismos de controle.

No Uruguai, o imigrante foi absorvido. Até porque no projeto do Batlle y Ordóñez o imigrante tinha que se tornar o mais rapidamente possível cidadão, porque a base eleitoral dos colorados estava ali. A absorção foi muito mais rápida, muito mais tranquila. Não há tensões do ponto de vista político nem do ponto de vista cultural. O imigrante é mais ou menos bem- aceito. Como o sistema previdenciário começa a funcionar muito cedo, as coisas no país estavam mais ou menos resolvidas.

A crise de 1929

Nós temos então aí o episódio da crise de 1929, que vai desorganizar o sistema comercial em escala internacional. Essa crise tem muito menos repercussões do lado uruguaio do que teve do lado brasileiro. Não estou dizendo que a crise deflagrou a Revolução de 30 [no Brasil], não estou sugerindo isso, mas do ponto de vista econômico as repercussões dela foram muito graves. A economia baseada no café praticamente foi varrida, não quer dizer que o café tenha desaparecido, mas uma economia agrária exportadora baseada no café entra em declínio do qual nunca mais vai se recuperar. E é um fator a mais na deflagração da Revolução de 30, a mais, não estou atribuindo grande importância.

No caso argentino você também vai encontrar uma repercussão relativamente forte. Em 1930 há o primeiro golpe de Estado na Argentina, desde que a Constituição deles foi votada. A Constituição argentina é do final dos anos 50 do século 19. Desde que se inicia um período de normalidade institucional na Argentina, em 1862, você tem 68 anos de paz institucional quase que total. Há uns disturbiozinhos nos anos 90, mas não foram importantes, não alteraram o quadro.

Em 1930 ocorre o primeiro golpe de Estado na Argentina, o primeiro de uma dolorosa e longa série. Não é isso que ocorre no Uruguai. A crise de 29 não desorganizou o sistema institucional uruguaio, desorganizou as relações de mercado, mas por razões até que o nosso Celso Furtado estudou, a Cepal estudou bastante bem o impacto da crise nas economias agroexportadoras de trigo, carne e lã, é um impacto menor do que em economias que dependem da cana-de-açúcar, do café, ou dos minerais, que são ligados ao círculo industrial. O círculo industrial se retrai, a exportação de minério também se retrai. Eu, quando falar da Argentina, entro mais nessa questão porque aí o fenômeno é mais próprio da Argentina.

Ditadura peculiar

 O Uruguai conheceu uma ditadura no começo dos anos 30, ditadura de Gabriel Terra. Mas é uma ditadura um pouco sui generis. Ela não decorre do delírio de poder de um indivíduo, não decorre de um projeto estruturado de mudança do sistema institucional uruguaio. Decorre de uma necessidade percebida pelas elites, tanto de um lado como de outro, de que era preciso passar por cima do parlamento uruguaio. Entregar poderes excepcionais a um indivíduo para que medidas emergenciais fossem tomadas, para que não caíssem na vala comum do debate parlamentar. É a mesma coisa que alguém chegar aqui e dizer: deixa o presidente (Lula) governar um ano e tanto por medida provisória. É mais ou menos isso que aconteceu no Uruguai.

É um civil?

A.C.P. – É um civil. Não é um golpe de Estado militar, ninguém saiu marchando para fechar o Congresso. É um consenso, tem que botar um cara porque a situação econômica não é boa, nossa situação no mercado é uma situação ruim, precisa de medidas excepcionais. A contragosto nós vamos ter que passar por cima do parlamento. Então coloca esse aí no poder, alguém que vai governar por meio de medidas excepcionais. E durante o governo de Gabriel Terra não houve prisão, não houve tortura, não foi o Estado Novo, não foi a ditadura da Argentina, que durou dois anos e depois caiu, nós vamos ver quando tratarmos disso.

É ruim, mas quando se conta a história das ditaduras sul-americanas e também centro-americanas, é ruim, mas não foi o péssimo, de jeito nenhum. Foi palatável, tolerável, o cara governou um ano e pouco, e pronto. Devolveu o poder quando as medidas excepcionais tinham sido editadas e estavam começando a fazer efeito…

Quem lhe atribuiu o poder? O Congresso era contra o Congresso? E a quem ele devolveu o poder?

Simpatia pelos Aliados

A.C.P. – Ele devolve o poder para a realização de eleições, para o restabelecimento da normalidade institucional. O Uruguai passa pelo processo da Segunda Guerra Mundial tendo simpatia pela causa aliada, não há aquele fenômeno que você vai encontrar na Argentina, em que uma parte do exército argentino, é Peron, mas não é ele sozinho… Perón tem fortes redes de relações e contatos com o Exército e que estavam seriamente inclinados à Alemanha, ao Eixo. O governo do Uruguai adota uma política de neutralidade no início, como todo mundo adotou. Mas é um governo mais simpático à causa aliada. Quando se dá aquela famosa conferência… Pearl Harbour foi 7 de dezembro de 41…

A conferência [do Rio de Janeiro] foi em janeiro de 42.

A.C.P. – No Uruguai isso não causa o abalo que causou na Argentina, até porque na Argentina isso leva ao golpe de Estado que abre caminho para o Perón. No Uruguai você não tem nada disso. Você tem uma sequência institucional que é ininterrupta. Vai se mantendo sem nenhum problema. Muito ao contrário. Com o peronismo avivam-se receios e temores do Uruguai porque havia uma política do Perón dirigida ali para Montevidéu, de criar simpatizantes, etc. Peronismo à la uruguaia.

Entretanto, no meio desse cenário idílico alguns problemas vão se desenhando. E o primeiro deles é o da pirâmide etária, um problema demográfico. Já nos anos de 1950 você começa a visualizar um país que está se tornando velho. O fluxo imigratório diminuiu muito. Durante o peronismo o fluxo imigratório também diminuiu para a Argentina, mas ele é retomado depois. Claro que em escala incomparavelmente menor. Mas no caso uruguaio, não. O fluxo imigratório não acabou inteiramente, mas diminui sensivelmente. E os dados da pirâmide etária vão mostrando que aquilo era um país que inicia um processo visível de envelhecimento. A agricultura dá uma base importante ao mercado interno – é um país que não depende de importação de alimentos, como a Argentina também não depende –, mas não é suficientemente grande porque o território, como nós já dissemos, um território mais reduzido, não tem condição de gerar dinamismo industrial. Então é um país que vive de exportações agrícolas. E isso não mudou até hoje.

O ilícito escancarado

Existe , porém, um setor terciário. Mas, o setor terciário hoje foi para o financeiro. Por um sistema financeiro que é até sofisticado, e até pior que sofisticado, porque o ilícito ali é tranquilo, já nos quadros da globalização. É uma das questões para os chamados críticos da sociedade protegida pelo Estado, porque o Uruguai era uma sociedade altamente protegida pelo Estado, como a brasileira nunca foi. A Argentina também era mais do que a brasileira, mas bem menos que a uruguaia.

Os críticos da estrutura social muito protegida apontam que a sociedade não se coloca mais desafios. Que os caras não encontram uma razão muito mais forte para viver, você tem uma sociedade que vai envelhecendo, sem dinamismo, sem espírito de iniciativa, esse fenômeno que vai caracterizando a sociedade uruguaia. Isso a partir dos anos 50 é visível. Por quê? Porque a partir do final dos anos 30 é a guerra na Europa, mas o efeito do estancamento do fluxo imigratório vai ser percebido nos anos 50, quando já se vê uma sociedade que envelheceu e vai continuar envelhecendo.

Aí nós vamos ter dois fenômenos que vão marcar o processo social e político uruguaio por um bom número de anos. O primeiro deles, não estou dizendo que é mais importante que o outro, é a Revolução Cubana. Até porque os dois interagem. E, segundo, uma erosão gradual do quadro de consenso no qual os dois partidos operam. A ditadura não surgiu do nada. A ditadura surgiu…

Quer dizer que as elites do Uruguai não têm uma saída clara e consensual para enfrentar o problema de perda de dinamismo e de envelhecimento…

A.C.P. – Não têm. As elites de diferentes partidos não conseguem mais se colocar de acordo. Rompe-se o consenso.

E nesse meio tempo você também tem um avanço socialista. Tem Partido Comunista. Aquela Frente Ampla. Não tinha?

A.C.P. – Mas isso só foi criado depois do golpe. O [Líber] Seregni [1916-2004] é candidato às eleições de 71 e a Frente Ampla está se gestando no final dos 60.

Essa vertente socialista sempre existiu?

A.C.P. – Sempre existiu. Mas ela é minoritária.

É minoritária? Não se compara com a do Chile, por exemplo?

A.C.P. – Não. No Chile você tem uma estruturação partidária que é nítida. Você tem direita, tem centro e tem esquerda.

Blancos e colorados não representam isso?

Extremos e centro

A.C.P. – Não. Não representam isso. Você tem um que é mais progressista, outro que é um pouco mais tradicional, mas ambos confluem para o centro. Um está um pouco mais à esquerda, outro um pouco mais à direita. Mas a partir do centro. Não é o caso da direita chilena. A direita chilena não converge para o centro. Ela é direita em si mesma. Ela não é uma direita por relação com o centro. Você tem lá os movimentos, tem o partido socialista no Uruguai. Basta você ver a votação do Seregni nessas eleições, foi muito pequena.

Ao lado disso, também nos 60, vai se forjando no Uruguai o mais importante e mais tenaz movimento de guerrilha urbana que a América Latina conheceu. Os tupamaros. A sociedade uruguaia, certamente pelo fato de não ter tido ao longo de sua história uma oligarquia arrogante, prepotente, isso foi diluído no comecinho lá do século 20, é uma sociedade que se distingue das latino-americanas, ou mais especificamente das sul-americanas, por um profundo sentimento igualitário. Você tem uma força dos sentimentos igualitários ali que é um traço marcante.

Classes médias

Os desníveis de renda não são grandes, não. Ela é uma sociedade de baixos e médios salários, os padrões de vida são mais ou menos equiparados. É um enorme conjunto de classes médias. Há um caso muito emblemático, um coronel do exército que em plena ditadura comprou uma casa numa área de Montevidéu que não é uma área de palacetes ricos, área de classe média, mas classe média bem situada, eu diria, como médico, advogado, uma coisa assim. E a mudança para essa casa foi feita por caminhões do exército, que transportavam os móveis. A vizinhança nunca mais falou com ele, não porque era coronel de uma ditadura. Aí dá para manter as relações formais. Mas porque ele não podia fazer isso: os outros pagavam pela mudança. Ele usou erário público, ele usou gasolina, usou transportadores de mudança que não pagou do bolso dele. Os motoristas, os caminhões que fizeram a mudança, ele não pagou do bolso dele.

Ao mesmo tempo, eu me deparei ao longo dos anos com um burocratismo uruguaio, aí já em profissionais que eu conheci aqui no Brasil. Uruguaios, trabalhando aqui no Brasil, era quase exasperante.

Sem modernidade americana

A.C.P. – Aí é o seguinte. A modernidade de estilo americano não entrou no Uruguai. O tradicionalismo ibérico, aquela coisa pesada, que se move lentamente e vai chegando lá, vai fazendo as coisas, mas com muita lentidão e um alto grau de ineficiência. A Argentina tem um pouco. Nisso sem dúvida alguma o Brasil é mais rápido. Mas porque nós viemos de Portugal.

Que não é assim..

A.C.P. – Não. É desorganizado, a burocracia é empacada, é ruim.

Mas é verdade que não carregamos a coisa da Espanha.

A.C.P. – A Espanha é um anteparo cultural muito mais forte que Portugal. Ele marca. Portugal marca, mas marca menos. Aonde a Espanha botou as patas, ela teve peso para moldar de alguma maneira procedimentos, mentalidades, normas, etc. E isso aí o Uruguai não mudou muito, não mexeu muito nisso. A Argentina também não.

Rodó

E alguma coisa de pensamento uruguaio também. No ano justamente de 1900, na cerimônia de formatura dos licenciados da Universidade Nacional de Montevidéu, o paraninfo foi um grande pensador uruguaio, um dos grandes pensadores latino-americanos, José Enrique Rodó. Rodó preparou um discurso e esse texto é um dos clássicos do pensamento latino-americano. Com o nome de Ariel. Que é uma defesa dos valores ibéricos contra o utilitarismo, pragmatismo utilitário que eram próprios de uma sociedade plutocrática que vinha se desenvolvendo nos Estados Unidos nos trinta e tantos anos anteriores. Rompeu aquela sociedade igualitária que Tocqueville mais ou menos descreveu. Texto pequeno, mas é um clássico do pensamento, “a defesa do iberismo”. De um iberismo que já não é aristocrático, mas que prega a diferenciação na sociedade. Não é todo mundo igual. E não se desiguala na sociedade por dinheiro, isso é uma forma errada de procurar a desigualdade. (Transcrição de Maria Almeida)

***

P.S. – Antonio Carlos Peixoto pretendia retomar algumas reflexões sobre a importância de Mauá no Uruguai, sobre os blancos e colorados e sobre o pensamento uruguaio, de modo geral. Mas a conversa sobre o Uruguai não pôde ser concluída.