Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A neutralidade e o futuro das redes de banda larga

O princípio de “neutralidade de rede” causa controvérsias no mundo todo. No Brasil, a tramitação do Projeto de Lei do chamado Marco Civil da Internet gera resistências ao substitutivo do deputado federal Alessandro Molon, que está previsto para ser votado nas próximas semanas.

A Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês), órgão regulador das telecomunicações nos Estados Unidos, adotou o princípio da neutralidade de rede por meio do “Open Internet Order” em 2010. A regulação se traduz em três regras básicas: a da transparência, que exige que operadores de redes de banda larga informem em detalhes suas práticas de gerenciamento; a da proibição do bloqueio injustificado de conteúdo legal, aplicações, serviços e dispositivos não prejudiciais; e norma da não discriminação desarrazoada, que veda discriminar a transmissão de tráfego de rede considerado legal.

Considerada bastante ousada pelo mercado, a regulação da FCC enfrenta a irresignação dos operadores de rede, liderados pela Verizon, que patrocina uma ação judicial na corte de apelações do distrito de Columbia. Discute-se a competência institucional para o FCC impor ao mercado uma regulação tão restritiva de direitos e os possíveis prejuízos que a mera afirmação da regra teria sobre o mercado de redes de banda larga.

A operadora irresignada defende, ainda, seu direito de buscar um “mercado de duas pontas”, ou seja, o direito de vender ao consumidor, de um lado, e ao gerador de conteúdo, do outro (Google e Netflix etc). O mercado de duas pontas – como no sistema de pagamentos dos cartões de crédito, que cobram comissões dos usuários e dos estabelecimentos comerciais –, é considerado pelos operadores de banda larga a solução comercial para o aprimoramento das aplicações mais exigentes de capacidade de transmissão, tais como os filmes em HD, por exemplo. O próprio Netflix já anunciou que estuda uma política de preços diferenciados a partir da oferta de serviços de melhor qualidade.

Serviços “diferenciados”

Recentemente empossado como novo presidente da FCC, Tom Wheeler também parece concordar com esse ponto de vista, considerando suas declarações de que o futuro da internet nos reservará diferentes alternativas de precificação e arranjos variados de serviço, entre os quais a possibilidade de que um grande provedor de conteúdo pague para garantir um desempenho melhor da rede para seu tráfego.

No âmbito da Comunidade Europeia, onde apenas a Holanda e a Eslovênia já adotaram regras sobre o assunto, o tema não perde protagonismo. A Comissão Europeia propõe aos 28 países membros uma grande reforma das regulações nacionais de telecomunicações para promover a extinção dos custos de roaming dentro da Comunidade, permitindo-lhes desfrutar, finalmente, do mercado único digital. A Comissária Neelie Kroes, encarregada do tema no âmbito na Comissão, defende, no mesmo pacote, o fim do emprego das técnicas de “degradação” ou “bloqueio” de tráfego, sabidamente empregadas no gerenciamento de redes. Segundo ela, seus efeitos vem sendo considerados claramente anti-competitivos no mercado europeu, sobretudo na arbitragem de tecnologias ou soluções adotadas como “vencedoras” pelas operadoras.

A Comissão Europeia, entretanto, admite que os prestadores de serviços de banda larga ofereçam serviços “diferenciados”, de maneira que usuários que não necessitem de maior capacidade de tráfego paguem um plano de serviço mais barato, enquanto outros usuários sejam livres para escolher soluções mais especializadas e, eventualmente, mais onerosas.

Potencial das redes

Na verdade é a administração do tráfego – associada aos investimentos na rede –, que permite a garantia do padrão de qualidade dos serviços. Esta é, de fato, a tensão por trás da noção de neutralidade de rede: quanto menos gerenciada for uma rede, menos garantia pode existir para a qualidade ou a especialidade dos serviços que nela trafegam. E, além disso, uma menor possibilidade de equacionamento comercial dos investimentos necessários para aplicações mais sofisticadas, que implicam maior capacidade de banda disponível.

A proposta de redação do princípio da neutralidade de rede atualmente discutida no Brasil reconhece essa tensão entre neutralidade de rede e qualidade do serviço nas redes de telecomunicação. Por isso o artigo nono do projeto admite as atividades de gerenciamento justificáveis sob o ponto de vista técnico. Ocorre que o texto substitutivo do deputado Molon dá um passo além e atribui a um futuro decreto presidencial a prerrogativa de definir as práticas de administração técnica da rede que serão toleradas. Trata-se de uma solução que abre as portas para um nível de interferência política na internet até hoje inexistente.

É evidente a inconveniência prática da proposta. A administração de redes de banda larga tem uma dimensão técnica e uma dinâmica que resultará claramente prejudicada pelo enrijecimento inevitável do processo de regulamentação sugerido.

Uma regulamentação desse tipo poderia promover a padronização de processos de gestão técnica e, portanto, acabaria por inibir o papel da competição entre os prestadores para a oferta de níveis diferenciados de qualidade dos serviços. Como consequência, os usuários poderão acabar privados do direito de escolha dos serviços que lhes convém, sendo obrigados a usufruir de um único padrão de serviço.

O potencial de uso das redes de banda larga pela sociedade ainda contém inúmeras possibilidades que merecem ser experimentadas antes de se possa justificar uma regulação tão restritiva. Esperemos pela manifestação final do Congresso Nacional.

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Eduardo Ramires é sócio fundador do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados