Valei-nos Santa Clara!
Santa Clara é a padroeira da televisão. Um ano antes de morrer, doentinha, como não podia ir à igreja, viu a celebração eucarística do seu leito, ali, ao lado, enquanto o fato ocorria na igreja. Não se registrou patente, mas trata-se da notícia mais antiga de uma transmissão ao vivo e em 3D – ocorrida em 1252! (E tem gente querendo tirar a missa da TV Brasil aos domingos, que faz este milagre, 761 anos depois…)
Algo mais que ligue Santa Clara à TV? Ela era muito bonita e nasceu em família abastada. Foi batizada Chiara d’Offreducci, porque inspiraram sua (dela) mãe, indicando-lhe que a menina viria para clarear o mundo. (Será?! Televisão?!)
Daí em diante, nada a ver com televisão comercial: largou tudo para se aliar a São Francisco (ambos eram de Assis), entregou-se a uma vida de pobreza e fundou o ramo feminino da congregação franciscana – as Clarissas. Se entendermos que gostar de pobre é gostar de povão desprovido de escala de consumo, taí o via, veritas et vita da TV pública brasileira, sob o apoio espiritual de Chiara d’Offreducci.
Faço um pequeno intervalo. Essa transmissão ao vivo precursora não devia impressionar tanto as pessoas. Aconteceu um pioneirismo muito mais esplendoroso em um tempo muito anterior, quando nem havia calendário para aprisioná-lo. Livre e solto na história e no tempo, o primeiro download de que se tem notícia nem pode ser datado, de tão antigo – e foi pesado. Que o diga Moisés, carregando as pedras com os 10 mandamentos. Também merecem admiração as mensagens sem vírus e corriqueiras, como a enviada a Noé, que tratou de obedecer e construir a Arca. E o que dizer das redes sociais, o twiter do Divino Espírito Santo, seguido pelos apóstolos – que também montaram suas redes e deu no que deu? (Plim-Plim- acabou o intervalo.)
Voltando à Santa Clara, eis que a grade dela é mais para TV pública, mas convém reforçar o suporte protetor, fazendo link e convergência com São Judas Tadeu – o santo das causas impossíveis.
Creio que o cenário visto do campo público da televisão – especialmente as educativas e culturais (como a EBC/TV Brasil) e as comunitárias – mostra que elas sobrevivem na travessia de um corredor polonês. Claro, você sabe, corredor polonês tem duas filas paralelas, uma de frente para outra, só pensando em dar cacete.
>> A fila da direita tem os vigilantes do peso. Os que vigiam os processos e querem saber de cada centavo. Para eles, não pode haver leveza no fazejamento da TV – tem que ser tudo muito pesado, burocrático… Por isto, todo dia o dirigente da TV pública tem que provar que não é ladrão. Não vale seu passado, a criaçãoque recebeu dos pais, a devoção à Santa Clara, nada adianta.
O dirigente de emissora educativa e cultural, vinculada a governo, que acredita sair ileso desse corredor, não faz ideia de onde se meteu. Vão te pegar, nem que seja por causa da gravata que não combinou ou o carimbo que ficou meio torto no documento. É o que dá o casamento do seu Marco com a dona Norma. Exceção feita aos entes auditores bem preparados, que são necessários à proteção inteligente da res publica. Os emaranhados burocráticos lançados genericamente, sem foco, sem objetivo definido, graças a vigilantes perdidos, só funcionam para travar a gestão honesta e favorecer os ladrões, que ganham um roteiro exato dos obstáculos a serem vencidos para acessarem o dinheiro público e transferi-los sabe-se lá para onde e como, em segurança.
>> A fila da esquerda tem os que cobram resultados, ou seja, conteúdos de interesse da sociedade, de modo atraente. E audiência, de preferência para ganhar da Globo. Alguns estão lá ungidos por lei, com papel institucional formalizado, como os conselhos curadores, que estão no DNA do caráter público da televisão pública. Existem também os cidadãos interessados – uns no caráter da TV e outros sem caráter, que só querem futricar. Estes não conseguem enlaçar duas ou três idéias, não querem e não conseguem contribuir. Deus poupou-lhes a tormenta do raciocínio. Vamos separar aqui aqueles bem aventurados pela honestidade intelectual – deles é o reino dos céus, mesmo que lhes faltem consistência no raciocínio. A eles devemos muito respeito e atenção porque desse garimpo intuitivo saem coisas geniais.
Solidário que sou se me fosse dada autorização pra ser enxerido e palpiteiro, diria que:
>> Em relação à fila da direita – Antes de qualquer coisa, o ente público não deve ser mais realista que o rei – em si um ditador. Sem medo de ser feliz, que não invente mais mecanismos de “segurança” do que já tem. A fila da direita só quer saber dos processos (os modus operandi), dos formulários bem preenchidos e das planilhas exatas – não interessa o resultado obtido com o recurso público, que chega por conta-gotas. Todas as oportunidades para se escapar dos editais, licitações, comissões julgadoras e outras formalidades do atraso, devem ser aproveitadas. Não há um único caso de produto diferenciado, criativo, excepcional, de conquista, de talento real – advindo de um edital. Esses mecanismos são males necessários, mas o que puder existir sem eles… Edital não capta talento e a cultura burocrática só agrada aos medíocres. (Além do mais, edital ou processo parecido, não é atestado de correção e improbidade, como sabemos todos.)
>> Em relação à fila da esquerda – Fazem marcação cerrada. Alguns são legítimos e bem intencionados e, por isto mesmo, fundamentais para o caráter dos veículos públicos. E tem os futriqueiros, os mal intencionados, os paus-mandados e os pilantras.
Não é a anestesia que viabiliza a sobrevivência. Atravessar esse corredor significa sentir dores e saber analisá-las. Todas ensinam e algumas – causadas por origens desonestas – mostram o que devemos desprezar, desde que estejamos armados de altivez e clareza de propósitos. (Significa definir a que viemos e nos portarmos superiores aos futriqueiros – em vez de nos estressarmos aflitos com o que dizem e publicam.)
Dirigir uma TV de maior porte é manobrar um navio que voa e um avião que flutua. A crítica qualificada tem muito a ajudar e a definição de propósitos, princípios e estratégias deve servir para pautar nossos críticos. Pelo menos perdem os motivos para atirar com raiva e sem direção. No caso da EBC – Empresa Brasil de Comunicação, que faz a TV Brasil, a empresa tem documentos fundadores, princípios explicitados, manual de jornalismo, enfim, todo o aparato para protegê-la de críticas reducionistas. Mas deve ficar atenta às reflexões honestas, para melhorar, corrigir rumos e seguir adiante. Com todo respeito às suas razões de ser, ao pluralismo da sociedade – portanto, sem ser um nicho ideológico – e ao recurso público que a sustenta.
Enfim
De novo, Santa Clara. Lembrei-me de uma razão ainda mais forte pra ser devoto dela. Ela não era fácil. Quando os sarracenos se meteram a besta na invasão de Assis, ela armou-se de um ostensório com a hóstia consagrada e enfrentou o chefe deles, dizendo que Jesus Cristo era mais forte. Como milagre é efeito sem causa, que não se tente explicar, mas o fato é que eles entraram em pânico e fugiram. Por este milagre Santa Clara é representada segurando o Ostensório. Conclusão: Santa Clara é padroeira da TV pública mais do que parece. Se alguém duvidar, que pegue essa pauta e vá apurar.
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Antônio Achilis A. Silva é jornalista, e Especialista em Gestão Estratégica da Informação, assessor da Diretoria de Jornalismo da EBC, foi presidente da TV Minas e da ABEPEC- Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais