No próximo dia 23 de abril, começa em São Paulo uma reunião para tratar do Futuro da Governança da Internet. Organizados pelo ICANN, órgão que coordena globalmente os endereços da rede, estes encontros acontecem com frequência. Mas, desde a sexta-feira (14/03), um anúncio surpreendente por parte do governo americano fez triplicar a atenção nesta cúpula paulistana. É que os EUA, até então responsáveis mundiais pela entidade, anunciaram a intenção de se afastar.
O anúncio tem seus mistérios. O ICANN responde diretamente à Secretaria de Comércio. Na sexta, o ministro Lawrence Strickling encomendou oficialmente à entidade um plano para fazer esta transição. Até 30 de setembro de 2015, um contrato submete o grupo ao governo americano. Se, depois disso, ele seguirá independente, ainda não está claro. Mas a porta foi aberta. É neste plano de transição que a reunião de abril focará.
A mudança tem motivo: Edward Snowden. E o cenário desta reunião é convenientemente o Brasil. O furo de reportagem do repórter Glenn Greenwald a respeito do superesquema de espionagem online da NSA saiu primeiro no diário britânico The Guardian. Mas a primeira repercussão internacional, em colaboração de Greenwald com os repórteres José Casado e Roberto Kaz, saiu aqui no Globo. Mostrava que entre os focos da espionagem estavam tanto a presidente Dilma Rousseff quanto a Petrobras. O governo brasileiro foi o primeiro a protestar. Uma das mais antigas reclamações de Brasil e outros tantos é o controle que os EUA têm sobre a internet.
O ICANN foi instaurado em 30 de setembro de 1998 por ordem do presidente Bill Clinton, inspirado por seu vice, Al Gore. Até então, o responsável pelos endereços da rede era um tipo estupendo: Jon Postel.
Espírito colaborativo
Postel era um cientista da computação que passou toda a vida na Universidade da Califórnia em Los Angeles, UCLA. Se alguém precisasse sacar do bolso o estereótipo do cientista excêntrico, ele serviria: a barba espessa, desgrenhada, os óculos de lentes grossas. Foi um dos inventores da internet, ainda em finais dos anos 1960, quando era um jovem engenheiro com menos de um ano de formado.
A maior contribuição de Jon Postel para a história da internet foram os RFCs. Sigla para “pedido de comentários” em inglês, eram documentos que detalhavam tecnicamente como algo seria desenvolvido na rede. Cientistas de todo mundo poderiam, então, se envolver na discussão, propondo soluções diferentes. Foi neste espírito de colaboração entre cientistas que a internet nasceu e cresceu.
Também de seu escritório na UCLA, Postel governou solitário a internet mundial. Ou quase. Se alguém quisesse uma série de endereços IP, os números que identificam cada computador da rede, era Postel quem os concedia. Se alguém quisesse determinar que a um determinado IP correspondesse o domínio algumacoisa.com, também com Postel se combinava. Quando 1998 chegou, porém, a internet crescia com tal rapidez que já não era viável a um único homem cuidar de tudo. O ICANN nasceu para tê-lo como primeiro comandante. Não deu. Duas semanas após seu nascimento, o cientista infartou. Morreu aos 55 anos de idade.
Uma das condições impostas pelo governo americano para ceder comando do ICANN é de que nenhum outro país exerça papel dominante na estrutura do grupo. Washington espera uma proposta de estrutura de comando que inclua inúmeras entidades de muitos lugares. Organizações da sociedade civil, ONU, universidades, pode até incluir governos. Por um lado, é uma aposta no espírito colaborativo de Postel e os muitos fundadores da internet. Mas é também geopolítica.
Os EUA são uma sociedade democrática. Escândalos surgem e são arduamente debatidos em público. A ideia de pensar que outros países como China e Rússia possam ter controle sobre parte essencial do funcionamento da internet não agrada a ninguém. Há uma janela de oportunidade. Em algumas semanas, o futuro da rede será definido no Brasil.
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Pedro Doria, do Globo