Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A governança da internet pós-Snowden

Há tempos ignorada e considerada uma questão restrita a um pequeno grupo de especialistas, a governança da internet tornou-se, no ano passado, central nos debates nacionais e internacionais. É boa notícia, no momento em que os usos online se expandem via duplo impacto do desenvolvimento dos celulares conectados à web e do fluxo de novos usuários nos países emergentes. Essa fixação recente resulta também de uma incrível série de escândalos – as revelações de Edward Snowden, por exemplo – que afetam a confiança pública na internet. Em tal contexto, a opinião pública gradualmente toma conhecimento do fosso crescente entre o ecossistema digital, organizado e integrado globalmente, e nossas estruturas institucionais nacionais.

Num nível global, a histórica administração da internet pelos EUA está sendo questionada com mais assertividade, tradicionalmente por regimes autoritários como os de China e Rússia, e mais recentemente pela Europa e grandes nações emergentes, como o Brasil. Esses governos consideram hipócrita boa parte da posição americana na política da rede: ao mesmo tempo em que prega a derrubada das “fronteiras digitais” que surgiram em alguns países, Washington vem gravando e explorando big data sem qualquer controle doméstico.

Em tal contexto politizado, parece crucial para os EUA controlar a narrativa sobre a governança global da internet. A recente decisão de Washington de globalizar o gerenciamento e a coordenação de endereços na web (.com, .org, etc.) também revela que os EUA ainda têm a melhor mão no pôquer global da internet – ao tomar a iniciativa justo antes da Netmundial, dias 23 e 24, em São Paulo, ultrapassa a Alemanha e o Brasil, países que têm sido os mais críticos dos programas de vigilância da NSA e que advogam uma mudança no atual sistema de governança da internet.

Não obstante, reconheçamos que a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, tem sido bem-sucedida em abrir debates sobre pontos estabelecidos e em desafiar o status quo. Se a questão da governança da internet é uma boa oportunidade política para ela se tornar uma personalidade global, será particularmente interessante observar como o Brasil – com uma longa prática de “multissetorialismo”, embora com forte cibersegurança e preocupações de soberania digital – se posicionará nos próximos eventos internacionais, a começar pela Netmundial.

Como a internet será politicamente organizada

Estamos nos iludindo se pensarmos que a governança da internet pode ser separada do jogo de poder político entre os Estados. Mas as revelações de Snowden também enfatizaram a dimensão estratégica da economia digital. Sua dominação pelo chamado oligopólio Gafa (Google-Apple-Facebook-Amazon) tem um papel central na reinvenção de um modelo competitivo de produção.

A economia digital americana está no centro da contenção da China e de seus campeões de TI e da web: Huawei, Lenovo ou Alibaba. Controlar a economia dos dados pessoais deverá se tornar uma parte substancial em termos de crescimento, mas também uma brecha potencial para a soberania e as liberdades, o que justifica a posição de Angela Merkel em favor de uma “internet europeia”.

Isto destaca a importância do setor privado para a governança da internet: hoje os CEOs das maiores companhias da internet são recebidos no exterior como chefes de Estado. Estes mesmos atores reconhecem as fronteiras físicas de territórios disputados em suas plataformas on-line, a interferir com a diplomacia tradicional. Recentemente, o CEO do Facebook declarou publicamente que o governo dos EUA “representava uma ameaça à internet”. De alguma forma, o papel desses atores privados relembra o da Companhia das Índias Orientais na Europa dos séculos 17 e 18: algo às vezes aliado a países rivais, às vezes indiferente a suas leis.

Para além das lutas pelo poder de modelar a internet, permanecem dois grandes eixos de progressão: de um lado, os envolvidos em desenvolver consenso dentro dos órgãos que governam a internet não são suficientemente representativos; de outro, a natureza técnica dos debates sobre a internet entrava o envolvimento da sociedade civil e a compreensão de tais questões pelos líderes políticos. O que está em jogo é nada menos do que a forma como a internet será politicamente organizada.

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Julien Nocetti é especialista em Rússia do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri)