Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘É preciso avaliar a eficácia do Marco Civil’

O Brasil promove nesta semana um evento global para discutir governança da internet. Na prática, isso significa debater quais entidades devem fazer o necessário trabalho de coordenação técnica da rede, além de analisar de que forma direitos fundamentais de usuários podem ser assegurados. Os representantes de mais de oitenta nações que comparecem ao NETMundial, como é chamado o encontro, festejaram a sanção (simbolicamente realizada pela presidente Dilma Rousseff na abertura do evento) do Marco Civil da Internet – lei que pretende disciplinar o uso da rede no país.

A aparição do Marco Civil é, sem dúvida, razão de comemoração, afirma o matemático americano Vint Cerf, de 70 anos, vice-presidente de evangelização do Google, considerado um dos “pais” da internet ao lado do britânico Tim Berners-Lee. É preciso, contudo, controlar a euforia acerca do potencial da lei. “Quão efetiva será essa legislação? Como ela será implementada? Muitos especialistas, entre os quais me incluo, querem saber como e se o Marco Civil vai realmente funcionar como esperado”, diz Cerf. Na década de 1970, o americano ajudou a desenvolver o TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol), conjunto de regras e especificações técnicas que permitem a troca de dados entre computadores. Na entrevista a seguir, Cerf, que está no Brasil para participar do NETMundial, em São Paulo, fala sobre Marco Civil e os debates acerca do futuro da rede.

Qual o impacto do Marco Civil no debate global?

Vint Cerf – O Marco Civil é parte de um processo e representa um grande passo para o país. O deputado Alessandro Molon, relator do projeto de lei, deve se sentir orgulhoso. Mas o Marco é só parte de uma discussão maior acerca da internet. Há também outros assuntos importantes ligados a políticas de governança da rede. O Marco Civil é uma solução criada para um território. É um projeto local.

Então, por ora, ele não deve ser usado como referência global? 

V.C. – É um momento interessante porque o mundo inteiro está de olho em como a lei será implementada, como vai funcionar. É ainda uma ótima oportunidade para que outros países desenvolvam projetos de lei melhores. Será interessante descobrir o quanto o Marco Civil será relevante em situações rotineiras. Uma vez que a internet se desenvolve de forma muito rápida e novas aplicações, especialmente as móveis, surgem a todo instante, questões inéditas vão aparecer todos os dias. Sabemos que novas formas de uso da internet vão impor desafios do ponto de vista jurídico. Então, essa é uma ótima oportunidade para o resto do mundo criar suas iniciativas, adotando o que der certo e deixando de lado o que der errado. Eu entendo que a lei brasileira nasceu para proteger os interesses dos usuários, mas o grande teste será agora, após a aprovação. Quão efetiva será essa legislação? Como ela será implementada? Muitos especialistas, entre os quais me incluo, querem saber como e se o Marco Civil vai realmente funcionar como esperado.

Quais são os maiores entraves técnicos e de gestão da internet atualmente?

V.C. – Há alguns pontos técnicos que contribuem para o desenvolvimento e operação da internet. Um desses pontos é a adoção do IPv6, a versão mais atual do Protocolo de Internet (uma nova geração do IP). Na América Latina, o Lacnic, entidade responsável pelo registro de endereçamento da internet para a região, optou por fazer a migração do IPv4 para o IPv6 em paralelo e já vem trabalhando em respostas tecnológicas para questões de segurança e privacidade. Eu, particularmente, acho que todos os problemas podem ser resolvidos tecnicamente. E também acho que todos os problemas são criados tecnicamente. Mas há questões como liberdade de expressão e direitos humanos que exigem uma resposta correta e precisamos lidar com isso. Vale ressaltar ainda que a economia da internet é muito diferente da de outras mídias. Muitas companhias mudaram seu modelo de negócio para se adaptar à rede. Essas empresas estão aprendendo a distribuir seu conteúdo em diferentes plataformas, como smartphones, tablets e até TVs. Todas essa evolução exige novas aplicações e novas tecnologias capazes de tornar mais fácil a interação com esse novo modelo de consumo da informação.

Qual é o foco do NETMundo: questões técnicas ou de gestão? 

V.C. – Trata-se de um chamado para uma discussão. A motivação para o encontro foram as denúncias de espionagem da NSA reveladas por Edward Snowden. Então o foco do evento é governança. O problema é que o termo governança da internet é muito amplo. É importante destacar que algumas questões são de natureza técnica e outras, não. Criar um software ou uma lei influencia diretamente na forma como a internet vai se desenvolver. E também na forma como as pessoas vão se comportar na rede. É um desafio proteger as pessoas na internet. Por isso é importante criar princípios para conscientizar a população sobre a importância de, por exemplo, zelar pelas suas senhas ou checar duas vezes antes de clicar em um documento anexado no e-mail. Eu mesmo faço isso. Ou ainda entender melhor a política dos registros de navegação (cookies, dados de GPS) e como essas informações são usadas por terceiros. Um dos objetivos do encontro é criar mecanismos que permitam o uso seguro da internet por meio de novas ferramentas e leis que protejam alguém que se sentiu lesado na rede. Esse é, inclusive, o ponto mais complicado da discussão, porque leis são criadas localmente. Essa não será a última conferência do gênero. Temos outros encontros programados para o próximo ano.

Qual a importância de um evento como o NETMundial para o Brasil? 

V.C. – Um evento como esse coloca o Brasil no mapa da internet. Isso porque as pessoas que estão profundamente envolvidas com políticas públicas e com a evolução da rede estão representadas aqui. Nomes que trabalham há décadas com a internet, que é o meu próprio caso, estão reunidos para o encontro.

O NETMundial é o primeiro evento global de internet realizado após o anúncio de que o governo americano não renovará, em 2015, o contrato com a Icann, entidade que administra a distribuição de números do protocolo de rede (IP) e os domínios adotados pelos sites para tornar acessíveis os conteúdos na web. Qual será o futuro da organização e quem fará a gestão da rede? 

V.C. – A comunidade tem sugerido a criação de uma entidade multissetorial, transparente, formada por atores de todas as áreas (iniciativa pública, privada, academia, sociedade civil). Eu, particularmente, acredito que a Icann pode aproveitar seus processos e se adaptar às novas necessidades. Algumas pessoas defendem a criação de uma nova instituição e outras atribuem à Icann essa responsabilidade de gestão. Eu acho que a Icann é forte o suficiente para enfrentar esse desafio.

A entidade de coordenação da web poderia ser subordinada à ONU? 

V.C. – Essa é a proposta de alguns países, como China e Rússia, mas sou resistente à ideia. Não acho que a internet caiba nas discussões da ONU. A internet não pode ser tornar um bem negociável no cenário político. A rede precisa ser coordenada de modo que continue sendo livre, aberta e cada vez mais segura. Todos esses valores precisam ser preservados. Na ONU, somente os Estados têm direitos. A sociedade civil, a iniciativa privada ou a academia não têm voz nas decisões. Há exemplos de entidades multissetoriais que funcionam muito bem com a participação de todos os interessados na rede. É o caso do Internet Engineering Task Force (IETF) ou do InterDigital Communications (IDCC), na Europa. Há ainda o CGI no Brasil. A instituição conta com a participação de todos os setores. A entidade é provavelmente o melhor exemplo dessa estrutura diversificada.

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Renata Honorato, de Veja.com