A conferência NETmundial terminou na quinta-feira (24/4), com um texto final que expressa “meio-consenso” entre os representantes de governos que participaram dos comitês de discussão da carta cuja proposta era definir princípios globais para o uso e governança da internet. O texto final teve poucas alterações em relação ao documento de referência discutido antes do evento. A vitória para o governo foi o apoio maciço à adoção do modelo de governança multissetorial.
Durante o dia, entre os integrantes do comitê técnico, responsável por discutir formas de incorporar sugestões de mudanças à carta feitas por representantes de governos, academia, sociedade civil e empresas, já era consenso de que seria difícil obter um documento muito diferente do texto base do evento. Na reunião do comitê multissetorial de primeiro nível, presidida pelo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e que o Link acompanhou, as divergências foram evidentes.
Os principais pontos de questionamento dos painéis abertos para participação popular nos dois dias foram a inclusão da neutralidade de rede no documento, de um parágrafo mais explícito de oposição à vigilância em massa de dados e sobre a responsabilidade de terceiros. A inclusão no texto do nome do ex-agente da NSA Edward Snowden, responsável por revelar os documentos sobre a espionagem norte-americana, chegou a ser solicitada por alguns dos participantes.
Esses mesmos pontos geraram impasse e um atraso de cerca de duas horas na divulgação do documento. Representantes da Índia e dos EUA foram os que demonstraram oposição mais forte a esse termos.
A discussão começou com o trecho sobre proteção intermediária de terceiros, que dizia ser essencial a proteção destes de serem responsabilizados pelas ações de seus usuários. A França alegou que não poderia concordar com esse trecho. A posição foi apoiada pelo governo alemão, pela comissão europeia e pelos EUA, que alegaram que o trecho bateria de frente com as legislações dos países, interferindo em políticas locais.
O segundo ponto de discordância foi a inclusão de um parágrafo sobre a neutralidade de rede. O trecho afirma que “houve discussões produtivas e importantes durante a NETmundial, com pontos discordantes sobre incluir ou não o termo neutralidade na lista de princípios”. O texto sugere que, diante disso, o assunto continue a ser discutido pela comunidade em futuros encontros, como o Fórum de Governança da Internet (IGF).
Demanda
O ministro Paulo Bernardo, defendeu a neutralidade. “Nós acabamos de aprovar uma lei que foi discutida por mais de três anos (o Marco Civil) e para o governo brasileiro ficou muito claro que a neutralidade de rede é importante e é uma demanda dos cidadãos”, afirmou o ministro, que tentou, pouco depois, encerrar a discussão e declarar o documento aprovado, enfrentando forte reação da Índia e dos Estados Unidos.
O trecho que atendia à demanda das plenárias por uma menção mais explícita à vigilância em massa também gerou discordâncias. O texto dizia que “a vigilância em massa não é compatível com os princípios de privacidade e proporcionalidade”. O trecho foi retirado do texto final após forte oposição. “Do jeito que isso está escrito, expressa uma opinião e não uma definição”, afirmou o embaixador americano Daniel Sepulveda. “O texto fala que a vigilância é sempre uma violação da privacidade e os EUA não concordam com isso”, afirmou.
Durante as discussões para aprovação do documento final do NETmundial, os membros dos comitês fizeram a defesa de alguns trechos, destacando o caráter multissetorial do evento, o que significa que todas as modificações foram originadas de demandas de todas as partes envolvidas e, portanto, representavam o interesse público. “Estou muito preocupado com o rumo da discussão. Precisamos achar um jeito de aprovar um documento que expresse o caráter multissetorial do evento”, afirmou o coordenador da NETmundial e secretário do Ministério de Ciência e Tecnologia, Virgílio Almeida. No fim, porém, a voz dos governos foi a mais forte.
A retirada do trecho sobre vigilância em massa e a alteração do trecho sobre intermediários, para uma versão que afirma que a responsabilidade dos intemerdiários pode ser limitada em alguns casos, por exemplo, foram feitas seguindo pressões de representantes de governos. O trecho citando a neutralidade de rede foi mantido.
Diante das ações e do apelo dos comitês para que todo o trabalho de inclusão dos trechos solicitados em plenário não fosse descartado, a Índia aceitou levar o documento para apresentação no plenário desde que ficasse claro que não houve consenso no documento. O governo americano sugeriu que o documento afirmasse que o texto foi aprovado em “meio consenso”. “Para mim não existe isso. Ou algo é consenso ou não é”, afirmou o representante indiano.
O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, considerou o resultado positivo. “Foi uma discussão típica de uma reunião multissetorial e que envolve muitos pontos de vista”, afirmou. “Para o Brasil, fomos prejudicados por não haver uma menção mais explícita sobre a neutralidade de rede. Mas classifico o resultado final como um êxito. O problema que nos une é maior do que a soma de inquietações de cada parte.”
Fadi Chehadé, presidente da ICANN, elogiou a construção coletiva no evento e pediu esforço para que os princípios sejam seguidos. ”Devemos celebrar o enorme avanço do NETmundial. Mas, a partir de amanhã, a luta é pela implementação.”
O texto final estabelece, entre outras coisas, que os mesmos direitos humanos defendidos no mundo offline devem ser preservados no mundo online. Segundo o documento, a internet deve ser inclusiva, transparente e responsável. O modelo de governança deve ser o multissetorial, a ser continuamente aprimorado. O texto coloca a neutralidade de rede como assunto a continuar sendo debatido além do NETmundial em eventos futuros. Recomenda que o processo de transição da governança da Icann aconteça de forma gradual até setembro de 2015. E que a coleta e processamento de dados deve seguir a carta internacional de direitos humanos.
>> Veja a íntegra do texto final da NETMundial.
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Ligia Aguilhar, do Estado de S.Paulo