Integrante do Comitê Executivo da NetMundial e coordenadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ, Marília Maciel, participou intensamente dos debates em torno de uma nova governança para a internet na conferência que se realiza em São Paulo e vê no documento que será divulgado nesta quinta-feira no final do encontro um importante instrumento para que a discussão sobre o tema avance no mundo. “A base de princípios que será definida na NetMundial vai nortear aquilo que é preciso proteger quando se for regular a internet. Por isso, este é um documento importante”, diz. Ela antecipa, porém, que pouco se avançou na discussão do princípio da neutralidade da rede, pelo qual todos (usuários e empresas) devem ser tratados de forma equânime pelos provedores. A seguir, a entrevista concedida ao GLOBO.
O documento resultante da conferência NetMundial pretende ser uma referência ao debate sobre governança na internet no âmbito global. Em que pontos se deve ter avanços nesse encontro?
Marília Maciel – Nós recebemos antes do encontro cerca de 180 contribuições e o documento é dividido em duas partes. Uma que trata de princípios, e nessa área a grande contribuição do evento é ter um rol de princípios que seja endossado por toda a comunidade de atores. Porque existem hoje cartas de princípios, há uma carta muito boa do Conselho da Europa, outra que foi elaborada pela sociedade civil que tem foco nos direitos dos usuários da rede, mas essas cartas são restritas. Seja porque a do Conselho europeu vale somente na região, e a da sociedade só é endossada por um espectro de atores. E o que estamos buscando aqui é um rol de princípios que tenha um endosso geral.
Assim eles poderiam servir de referência para o debate sobre regras globais de governança da rede?
M.M. – Sim, desta forma esses princípios podem ser alçados e ter o valor de guiar o desenvolvimento de políticas e de legislação. No âmbito global, é muito difícil de se começar a regular a internet do ponto de vista hard são muitas jurisdições diferentes, muitas formas de ver como tratar a internet. Então partir dos princípios acho que é um bom começo.
O que você chama de hard, questões como o papel da Icann (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), órgão controlado pelos Estados Unidos que controla os registros e domínios na rede?
M.M. – A questão da Icann está no outro espectro de temas tratados no debate aqui. Ter esse rol de princípios que seja endossado por todos. E como já tivemos aqui a discussão do Marco Civil da Internet, acho que já entendemos a importância dos princípios para se avançar no desenvolvimento de regulação de aspectos específicos. Essa base de princípios vai nortear aquilo que é preciso proteger quando se for regular a internet. Por isso, este é um documento importante.
Entre os cerca 20 princípios que foram discutidos aqui, há algum em torno do qual não houve consenso?
M.M. – As divergências na parte dos princípios são mais localizadas na questão da neutralidade, que algumas pessoas queriam incluir, mas acho que não vai acontecer. E a questão da inserção da propriedade intelectual como um direito, também não. Mas os temas centrais como direito à privacidade, proteção de dados e respeito aos direitos humanos estão mantidos.
E quanto ao outro espectro de questões tratados aqui, que você chamam de “roadmap” (mapa do caminho)?
M.M. – Nesse campo há três debates principais. Um trata de vigilância e o que está no documento de base em discussão é a linguagem que foi discutida na Assembleia da ONU, em 2013 (logo depois dos escândalos de espionagem do governo americano em todo o mundo), de acordo com aquela proposta que foi feita pelo Brasil e pela Alemanha, de modo conjunto, isso já está consensualmente no texto. Nós já estamos partindo desse pressuposto. De que a vigilância que não respeita princípios de privacidade, que não respeita o direito internacional está condenado. Isso já é consensual, mas claro, a sociedade civil e outros atores querem reforçar essa linguagem.
O outro ponto refere-se à Icann?
M.M. – Sim, Estamos num momento em que os Estados Unidos, que sempre exerceram um papel unilateral de controle sobre o sistema de nomes e domínios – por uma questão histórica porque a Icann surgiu na Califórnia, o que sempre deu a eles um papel assimétrico em relação aos outros governos e atores –, anunciou que está disposto a discutir um processo de transição dessa função, de passar esse controle unilateral para a comunidade global. Como isso vai ser feito é algo que ainda está em discussão. Mas a mensagem que o NetMundial está mandando é: esse processo de transição deve incluir uma comunidade mais ampla e deve ser concluída com presteza. Temos um deadline muito claro, que é 2015, para essa transição estar concluída.
Por que 2015?
M.M. – Porque 2015 é quando o contrato que o governo americano mantém com a Icann para que ela administre essa função de registro e controle de nomes e domínios. Esse contrato e feito entre a Icann e o Departamento de Comércio dos EUA. E ele se extingue em 2015. E a mensagem que sairá da NetMundial é que em 2015 isso terá de mudar, e a Icann deve passar a responder para uma comunidade multissetorial, e não mais ao governo americano, e ser mais transparente em relação a essa comunidade.
Então 2015 é um ano que poderá marcar grandes mudanças na internet?
M.M. – Sim, 2015 é uma data importante para nós. Tem essa mudança pela Icann, mas também há certo consenso entre diferentes órgãos e instituições de que o regime de governança da internet precisa evoluir. para ter mais coordenação. Há várias instituições, como a União Internacional de Telecomunicações (UIT, ligada à ONU) e a Unesco. E qual é o mecanismo que vai dar essa maior coordenação à web é o que está em discussão em vários fóruns. Seria algo centralizado, dentro do escopo da ONU, mais governamental?
E além da NetMundial, em que estágio essa discussão sobre uma nova governança na internet se encontra globalmente?
M.M. – Estamos dentro de um processo de revisão da World Summit on the Information Society (WSIS, a cúpula mundial da sociedade da informação), que aconteceu em 2003 e 2005, e que está completando dez anos, e teremos a WSIS+10. E dentro desse processo há reuniões internacionais que estão sendo realizadas para avaliar se aquelas metas da WSIS estão sendo cumpridas ou não.Reuniões na UIT, na ONU. E há uma série de instituições e processos que o documento da NetMundial poderá “alimentar”. Em outubro, na Turquia, por exemplo, haverá encontro do Fórum de Governança da Internet (IGF, na sigla em inglês).