Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Internet ameaçada

Quando não tinha cabelo grisalho e ainda denunciava desmandos de Washington, que decidiu adotar ao se mudar para lá, o então senador Barack Obama repetia nos discursos de campanha: seria o maior defensor da neutralidade da rede. Mesmo com a passagem da lei do Marco Civil da internet, é importante prestar atenção no que vai acontecer nos próximos meses nos Estados Unidos como resultado da quebra da promessa de Obama. A lei brasileira prevê a neutralidade mas, como de hábito, Deus está nos detalhes.

A neutralidade da rede é o sistema que nos permite acessar a internet como quem dirige em estradas públicas, sem tratamento preferencial. O fim da neutralidade da rede, para usar a analogia das estradas, seria o equivalente ter que escolher entre triplicar o tempo para chegar ao trabalho ou pagar pedágio a uma companhia privada para percorrer o trajeto mais rápido.

“Acho que isto destrói o que a internet tem de melhor: a igualdade. O Facebook e o Google poderiam não ter decolado sem o acesso igualitário à rede.” O candidato Obama disse isto em 2007. Mas, em 2013, o presidente Obama decidiu chamar uma raposa para tomar conta do galinheiro. Nomeou Tom Wheeler, um ex-lobista da indústria, para presidir a agência encarregada de manter a internet neutra, FCC, Comissão Federal de Comunicações. No dia 15 de maio, a FCC vai votar uma proposta de Wheeler, um tapa na cara de quem acreditou na promessa de Obama. Em vez de entrar para a história como o homem que preservou a praça para o povo, Wheeler arrisca ser lembrado como o burocrata que selou a desigualdade de acesso à rede. Ele tem tentado apagar o incêndio provocado pelo vazamento de detalhes de sua proposta com desmentidos que não convencem.

O Washington Post cita fontes da FCC e revela que a intenção de Wheeler é dar às concessionárias de banda larga a “habilidade de negociar individualmente com provedores de conteúdo” desde que ofereçam um pacote básico de acesso à rede. A negociação individual, na história de carochinha do ex-lobista Wheeler, teria que ser conduzida de “maneira comercial razoável”. Pausa para risada sarcástica.

O fornecimento de banda larga é a galinha dos ovos de ouro de uma indústria cada vez mais monopolista. As altas margens de lucro foram descritas por um analista como “cômicas”. As quatro gigantes americanas que podem virar três, se for adiante a fusão da Time Warner Cable com a Comcast, passariam a ter um poder assustador sobre a experiência individual de acesso à rede.

O fim da internet que conhecemos

As repercussões seriam sentidas muito além do entretenimento ou da conveniência de se comunicar por e-mail ou mensagem de texto. A internet começou, criada pelo governo americano, como um instrumento de comunicação entre instituições de pesquisa. Ou, como diz Vladimir Putin, foi inventada pela CIA para espionar. A versão de neotsarista Putin é útil para termos uma medida da importância da defesa do acesso igualitário à rede.

Ciência, educação e o futuro da inovação podem ser drasticamente afetados se os monopólios das Telecoms começarem a cobrar por rapidez, acesso e até mesmo excluir conteúdo. No cenário proposto pela FCC, seria virtualmente impossível o aparecimento de uma Wikipédia.

Se você acha a sua conta de TV a cabo exorbitante e se irrita com a pobreza dos pacotes básicos, imagine quando seus hábitos, como bater papo com a família via Skype, consultar seu médico à distância, fazer um curso online ficarem mais caros e seus passos forem selecionados por um provedor de internet.

Só uma gritaria viral pode espantar Tom Wheeler, que instalou várias outras raposas no galinheiro da FCC. Nos próximos meses, vai haver um período de consulta pública em que qualquer cidadão pode enviar sua opinião para o governo. A desculpa usada pelo governo Obama é que a neutralidade da rede já foi derrubada duas vezes na Justiça. Contra ações judiciais, há uma arma simples e letal: a FCC pode declarar a internet uma utilidade pública como a eletricidade ou telefonia. Por causa da pressão inicial, Wheeler teria se comprometido a manter a possibilidade de igualar a internet a um serviço público, o que significa comprar uma briga com Godzilla. “Vai ser a Terceira Guerra Mundial”, ameaçou Michael Powell, CEO da associação americana de Cabo e Telecomunicações.

Mas a truculência da indústria pode estar subestimando um inimigo poderoso na infantaria dos consumidores. Não se trata da cobrança extorsiva por este ou aquele canal de TV paga, ou do fato de que eu subvenciono clubes de esporte por ser obrigada a pagar por canais que jamais assisto, neste modelo obsceno de negócio. A esta altura do jogo, a nossa relação com a internet é muito mais visceral, é entrincheirada numa rotina que, se sofrer uma ruptura, pode inspirar adesões de aliados por enquanto passivos.

Não corremos apenas o risco de um aumento da conta mensal para ter acesso à rede. Contemplamos o fim da internet que conhecemos.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York