Quem pode deixar de ser lembrado? Aqueles que cometeram atrocidades durante regimes autoritários, como os nazistas na Europa ou os algozes do regime militar brasileiro?
Em 13 de maio, em decisão inédita, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou a remoção de informações pessoais “sensíveis” dos resultados de busca na internet. A decisão aplica-se às informações “inconsistentes, não pertinentes ou que deixaram de ser pertinentes (…) com o tempo decorrido”.
O caso teve como origem um litígio antigo entre o Google e um cidadão espanhol, Mario Costeja González. Ele pretendia excluir seus dados pessoais da ferramenta de busca, exigindo o esquecimento sobre um fato que lhe desagradava: seu imóvel, no fim dos anos 1990, foi levado a leilão para pagamento de dívidas com a previdência social da Espanha, sendo o débito quitado sem que o bem fosse vendido judicialmente. Esses fatos, contudo, se perpetuavam na internet e bastava “dar um Google” para acessá-los.
O Tribunal Europeu passou então a enfrentar uma clássica discussão jurídica problematizada na era da internet: a colisão entre o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade. O que merece prevalecer?
De um lado, a decisão reconheceu a responsabilidade das ferramentas de busca pelo processamento de dados pessoais exibidos nos resultados. Por outro, assegurou o respeito ao direito à privacidade, que, nestas hipóteses, merece prevalecer em relação ao direito à informação, considerando o grave impacto à reputação pessoal.
Novas dimensões
No caso de pedido de exclusão de informações sobre uma pessoa do motor de busca, entendeu o Tribunal Europeu que é preciso ainda examinar “o papel desempenhado por essa pessoa na vida pública, que justifique um interesse preponderante do público em ter acesso a tais informações no âmbito de uma pesquisa desse tipo”. Para o tribunal, o alcance do direito à privacidade das pessoas públicas é passível de maior restrição em nome do interesse público à informação.
No Brasil, o Marco Civil da Internet foi recentemente aprovado por meio da Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso no Brasil. Adota como fundamento o respeito à liberdade de expressão, os direitos humanos, a pluralidade, a diversidade e a finalidade social da rede. Dentre os princípios, destacam-se tanto a garantia da liberdade de expressão como a proteção à privacidade e a proteção de dados pessoais. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, para a nova lei, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo atacado. Gradativamente, com oscilações, cortes nacionais e internacionais têm sido provocadas a delimitar o alcance de direitos e liberdades na era da internet. Ao mesmo tempo, marcos jurídicos têm sido aprovados com a ambição de estabelecer parâmetros, princípios, garantias, direitos e deveres no mundo digital. Instituições específicas passam ainda a ser criadas para enfrentar os múltiplos desafios do mundo virtual, como é o caso das delegacias para crimes virtuais.
Relatório de transparência do Google aponta que o Brasil é o segundo no ranking de solicitações judiciais de retirada de conteúdo dos serviços da empresa, perdendo apenas para os EUA.
Ao desconhecer fronteiras de tempo e espaço, o mundo virtual mostra-se essencialmente transnacional em seu alcance, sentido e impacto. Deixa mais perguntas que respostas; mais dúvidas que certezas. Todas as pessoas têm o direito de ser esquecidas? Quem pode deixar de ser lembrado? Aqueles que cometeram atrocidades durante regimes autoritários, como os nazistas na Europa ou os algozes do regime militar brasileiro? O condenado que cumpriu a pena imposta pelo Estado? Aqueles que se envolveram em processo criminal e foram absolvidos? A vítima de crimes e seus familiares? O cidadão comum que tinha uma dívida, mas a quitou, como Mario Costeja González? E, se for o caso, quem deve ser obrigado a excluir as informações sobre a pessoa: o provedor de internet, aquele que gerou o conteúdo ou os sites de busca?
Esses e outros tantos questionamentos ganham novas dimensões com a expansão do mundo virtual em uma sociedade global marcada, cada vez mais, pela produção, distribuição e uso da informação.
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Flávia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e procuradora do Estado de São Paulo, Roberto Dias é professor de Direito da PUC/SP