Embora a discussão sobre a necessidade de regulamentar a publicidade infantil no país seja pertinente, uma resolução do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), ao tentar evitar excessos, atingiu, por tabela, um sem-número de atividades econômicas e culturais destinadas única e exclusivamente à criança.
Trata-se do licenciamento de marcas, pelo qual o criador de uma música, um personagem ou uma animação infantil cede o direito de uso de sua criação ao fabricante de um produto. É o licenciamento que, no final, permite que essas criações sobrevivam, dado o limitadíssimo consumo cultural em nosso país.
A resolução, de abril deste ano, além de estabelecer que é abusiva a conduta de direcionar a publicidade à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de produtos e serviços, também considera abusiva toda a comunicação mercadológica dirigida à criança que contenha linguagem infantil, excesso de cores, trilhas sonoras e personagens infantis, desenhos animados e bonecos. A mesma resolução define comunicação mercadológica não apenas como a publicidade propriamente dita, mas também páginas na internet, embalagens, ações em shows e disposição dos produtos em lojas e supermercados.
Na tentativa de coibir eventuais abusos, a resolução provoca efeitos certamente indesejáveis. Estranho imaginar, por exemplo, uma boneca embalada em papel pardo na vitrine da loja de brinquedos ou uma caixa de lápis de cor que, por fora, seja inteira em preto e branco. Difícil aceitar também que se queira substituir o papel crucial que os pais exercem na educação de seus filhos. Aos pais cabe impor regras saudáveis de consumo de produtos e limitar compras de artigos que considerem prejudiciais às crianças.
Ao considerar abusivo o uso de criações desenvolvidas para a criança em embalagens de produtos infantis, a resolução afetará diretamente a produção cultural voltada às crianças. Curioso notar que a nova norma abre uma exceção ao permitir o uso dos personagens, cores e trilhas sonoras infantis em campanhas de utilidade pública – como se essas mesmas criações brotassem de fonte natural e não fossem produzidas por músicos, artistas, cartunistas e escritores para serem comercializadas, direta ou indiretamente, por meio do licenciamento. Esses, sim, serão diretamente afetados caso a resolução se mantenha.
Quem se espanta com a posição desses artistas “ao trocar suas criações por dinheiro” e acredita que a publicidade é a mais nefasta das profissões deve lembrar não apenas os casos de abuso existentes no passado e no presente e cujos exemplos proliferam nas redes sociais. Mas também aqueles que, ao atingirem em cheio o universo infantil, levaram à criança muito mais do que um simples produto. Como o lápis de cor que inseriu no imaginário infantil um valioso pedacinho da música popular brasileira ao imortalizar a “Aquarela” de Toquinho envolta em cores e desenhos na TV.
Debater sem radicalismos
A sociedade responsavelmente cobra dos órgãos públicos mais atenção na prevenção aos riscos a que a criança está exposta. Mas, certamente, não é seu desejo passar uma borracha nos desenhos, personagens e animações que fazem parte do universo infantil. Tampouco creio que as famílias queiram evitar o excesso de cores ou as músicas infantis que tanto encantam seus filhos em qualquer situação.
Ainda assim, ao agir com o legítimo intuito de coibir práticas comerciais abusivas direcionadas à criança, a resolução acabou por recomendar que se apaguem algumas das luzes do universo infantil.
O que precisamos mais do que tudo neste momento é ouvir a sociedade e debater o tema sem radicalismos, para que se chegue a um consenso do que é, no fim das contas, o melhor para a criança.
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Monica de Sousa é diretora-executiva da Mauricio de Sousa Produções