Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Marco Civil enfrenta prova de fogo

Mal entrou em vigor e o Marco Civil, a lei que protege direitos fundamentais na internet brasileira, já enfrenta uma prova de fogo. Trata-se da forma como o Judiciário e as autoridades de investigação estão aplicando-o (ou não). A questão materializou-se de forma preocupante no inquérito policial que investigou os suspeitos de cometerem crimes relacionados às manifestações. Na busca por provas para motivar o indiciamento, a internet foi um dos principais instrumentos utilizados.

As autoridades demandaram a quebra do “sigilo das comunicações (texto, imagens, arquivos, áudio, localização etc.)” de 52 usuários de perfis do Facebook. Além disso, pediram “a criação de contas de espelhamento dos perfis” de modo que “os logins e senhas das contas-espelho” fossem “fornecidos à autoridade policial”. O juiz consentiu e expediu ordem para que fossem cumpridos os pedidos. A questão é saber quais os limites legais aplicáveis, já que os requerimentos foram os mais amplos possíveis.

O Marco Civil e a lei nº 9.296 (que regula a interceptação de comunicações) apontam em sentido diverso. A quebra de sigilo deve ser concedida apenas quando “a prova não puder ser feita por outros meios” e só quando houver “fundados indícios da ocorrência do ilícito”. Seguindo a Constituição, o Marco Civil assegura a “inviolabilidade da intimidade e da vida privada”.

Determina que “cabe ao juiz tomar as providências necessárias à preservação da intimidade e da vida privada do usuário”. Conceder quebra de sigilo tão ampla e genérica viola a lei e a Constituição.

Sinal necessário

O acesso a comunicações privadas pela internet só pode acontecer em casos excepcionais, em que haja indícios de crime de maior potencial ofensivo e deve ser circunscrito ao objeto específico da investigação –a autoridade não pode usar outros ilícitos contra o investigado.

A Suprema Corte dos EUA definiu recentemente um princípio importante. Comparou atividades on-line à proteção da inviolabilidade do domicílio, afirmando que uma busca feita em um dispositivo expõe muito mais uma pessoa do que uma busca feita em sua residência. Faz sentido. O que impede que a internet se torne uma máquina de vigilância perfeita é a lei. Sem freios e contrapesos, direitos fundamentais como a privacidade e a liberdade de pensamento (que é o seu corolário), vão sendo minados.

Quando o escândalo Snowden foi revelado, o Brasil foi à ONU e emitiu reação em prol da privacidade. A posição precisa ser disseminada também na Justiça. Sobre isso a presidente tem em mãos uma oportunidade. Na nomeação do próximo ministro do Supremo, deveria considerar juristas comprometidos com os valores do Marco Civil da Internet. É uma forma de sinalizar para o país e para o Judiciário a importância dos direitos civis na internet.

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Ronaldo Lemos é advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro