As intermináveis reprises de cenas brasileiras na TV paga e o fácil acesso ao conteúdo de TV na internet exigirão novo cálculo de seus administradores em curto prazo. Há uma série de movimentos em ação para criar novos critérios de pagamento por direitos autorais conexos, como já ocorre em outros países, incluindo a Argentina. Profissionais de TV e advogados ouvidos pelo Estado buscam por algo similar ao Ecad, Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, que recolhe os direitos devidos aos músicos a cada execução de uma canção sua – seja no rádio, no cinema, na TV, na web e até na churrascaria, caso a entidade tome conhecimento.
Sob esse contexto, Sônia Braga, que entrou na Justiça para receber o pagamento por direitos autorais conexos referentes à reprise da novela Dancin’Days pelo canal Viva, receberia tanto do produtor (a TV Globo), como do exibidor (canal Viva). Em sua argumentação, a atriz cita o artigo 13.º da lei 6533/78 e reivindica o pagamento de direitos conexos do “EXIBIDOR”, grafa ela, em letras maiúsculas, em sua página no Facebook.
Da forma como as coisas funcionam hoje, a remuneração cabe apenas à Globo. A emissora informou que, como Sônia acionou a Justiça antes que a emissora iniciasse seu pagamento, os valores foram depositados em juízo, até que a ação termine.
O caso do canal, que pertence ao mesmo grupo da Globo, é um dos assuntos em debate por um grupo de atores liderado por Antonio Fagundes, que desde o ano passado se reúne para ajustar uma série de quesitos que consideram hoje distorcidos em relação aos serviços prestados e pagos pela Globo.
Questionada pelo Estado, a Globo informou que “paga todos os direitos de acordo com seus contratos e políticas, independentemente da plataforma ou do tempo decorrido desde a exibição”. “Todo o elenco, assim como os autores e diretores, recebem regularmente os pagamentos relativos a novas utilizações das obras para as quais contribuíram.” Mas, como quantificar TV paga e web em um contrato assinado em 1978, só para citar o ano de Dancin’Days?
“Nos contratos antigos já constava que o contratado tinha direito a xis por cento ‘nas plataformas já existentes ou que porventura venham a existir’, o que cobre TV paga e internet”, explica Sérgio D’Antino, advogado que elenca a maior clientela de estrelas de TV no Brasil. Especialista no assunto, D’Antino foi um dos primeiros a levantar a lebre sobre direitos por reprise, já nos anos 60, quando surgiu o videoteipe.
A Globo não informa se uma reprise no Viva rende aos profissionais os mesmos 10% relativos ao Vale a Pena Ver de Novo. “No meu entender, deveria valer”, diz D’Antino. “Não importa se o Viva tem alcance menor ou se a Globo repassou a obra de graça: o contrato do ator diz que reprise vale 10% do salário, em valores corrigidos. Se ele ganhava R$ 100 mil e trabalhou por nove meses, são 10% de R$ 900 mil: R$ 90 mil corrigidos.”
Todas essas dúvidas passam pelo debate do grupo de Fagundes e por associações como a Abramus, responsável por parte do Ecad e que agora organiza um grupo de Gestão Coletiva, como já faz em outras áreas da cultura, destinado ao audiovisual. “Já estamos documentando todo o repertório de TV, que nunca teve nada parecido com o Ecad porque nunca se organizou”, diz Roberto Mello, da Abramus. “O Brasil está uns 60 anos atrasado nisso”, acredita.
A exibição à exaustão
Além de inibir o excesso de reprises na TV paga, a criação de uma entidade que conseguisse cobrar direitos autorais conexos por cada exibição da obra, beneficiando autores, atores, diretores, cenógrafos e figurinistas, resolveria também o drama de muito contrato malfeito no passado. É o caso da turma do Castelo Rá-Tim-Bum, que assina o maior sucesso na história de 45 anos da TV Cultura. Nem a emissora tem a conta de quantas vezes reprisou os 90 episódios da série. Mas o bônus de até hoje ser tratado como Nino, por onde passa, tornou-se também um ônus para seu intérprete, Cássio Scapin, que nem de longe foi remunerado à altura de um sucesso até hoje disposto a fazer sombra para suas atuações na TV.
Não é que a TV Cultura não honre o compromisso de pagar por reprises. É pior que isso. O próprio ator, assim como todo o elenco da série infantil, assinou, na época, um acordo abrindo mão dos direitos de reprise, por tratar-se de uma televisão sem fins lucrativos. Mas eis que o Castelo foi parar na TV Rá-Tim-Bum, emissora da Fundação Padre Anchieta que, como diz o nome da plataforma, é paga. É visto na TV Globo Internacional, na qual Nino, Doutor Vitor e a bruxa Morgana serviram como moeda de troca pelo Sítio do Picapau Amarelo. E rendeu licenciamento de produtos, sem que seu elenco nunca tenha visto um tostão da venda por sua imagem.
“Eu era muito jovem, hoje eu não repetiria isso. Assinei uma cessão de direitos de imagem para uma TV sem fins lucrativos. O que a TV Cultura fez depois foi comercializar isso, quando essa não era a regra do jogo”, diz Scapin. “Hoje, a maioria dos contratos que os atores assinam vem com essa coisa da cessão de direitos de imagem, isso é muito pernicioso, no geral, é uma discussão que tem que ser aberta e avaliada. A gente tem importado um padrão do que a gente quer ser, pelos moldes americanos, mas a gente só importou o pior. A gente importou a relação de competitividade do mercado americano, mas não a benesse que o mercado americano oferece como segurança de trabalho”, conclui o ator.
Na Globo, um contrato mal alinhavado no passado foi alvo de correção, com iniciativa da própria emissora, e sem contestação do contratado. Aconteceu com Gilberto Braga, autor da adaptação de Escrava Isaura. Produzida em 1976, a trama viria a se tornar o primeiro grande sucesso de exportações da Globo, sem que isso tivesse sido previsto no acordo do autor à época. Braga foi então procurado pela emissora, que lhe pagou uma quantia, sem que ele tivesse noção de valores.
Atualmente, o padrão exportação da Globo destina 5% sobre o valor da venda a direitos autorais conexos, ou seja, a toda a equipe da produção: autores, diretores, elenco e quem mais for apresentado no grupo de autoria coletiva. O valor é rateado entre todos, preservando as proporções dos salários originais. “Essa é uma conta que só o computador consegue fazer, mas, no caso de uma novela vendida para a Costa Rica, por exemplo, para alguns atores, nem vale a pena pegar um táxi para ir buscar o dinheiro, porque o táxi vai sair mais caro”, conta o advogado Sérgio D’Antino, especialista em Direito do Entretenimento. Na Record, os últimos contratos renovados rebaixaram esses valores, determinando 5% sobre o salário original para reprises e o rateio de apenas 2% sobre o valor recebido pela emissora em cada exportação.
“Na Europa, há várias entidades que gerem cada atividade. Aqui, o Ecad é uma gestora de direitos coletivos de execução de música. Lá, há várias outras associações, representando autores e detentores de direitos conexos, que gerem atividades de cada categoria. Tem na França, na Itália e funciona bem na Argentina”, diz D’Antino.
Essa é a proposta do novo braço da Abramus e, no caso específico dos escritores, criadores das obras, de outras associações contatadas pela Associação de Roteiristas (AR), como conta abaixo o autor Marcílio Moraes.
Roteiristas buscam apoio em entidades internacionais
Dois profissionais da Associação de Roteiristas (AR), que hoje soma mais de 200 profissionais brasileiros, foram até a Argentina na semana passada para conhecer as bases do ARGENTORES, entidade local de autores.
Lá, o exibidor paga pelos direitos autorais e direitos conexos. “Eles estão dispostos a nos apoiar na criação de uma associação arrecadadora”, conta Marcílio Moraes. Autor da série ‘Fora de Controle’, produção da Record e da Gullane exibida algumas vezes pelo canal pago Universal, Moraes teve sua parte paga pela venda do título à TV paga, mas não pelas reprises.
Indício da movimentação no setor, o pessoal da Associação Brasileira de Cineastas (Abraci) também tem contatado o DAC, entidade correspondente na Argentina.
“Uma coisa é o pagamento feito pelo produtor, a venda para o exterior, o licenciamento para DVD ou reprise: tenho um porcentual dessa renda. O que confunde no Brasil é que produtor e exibidor são a mesma empresa.”
O autor cita “a lei 9610/98, que consagra que são três os coautores da obra audiovisual: o músico, o diretor e o autor-roteirista”. Mas só os músicos recebem pela exibição pública de seus trabalhos.
E alerta para a necessidade de trocar “obra coletiva” por “obra em coautoria” nos termos contratuais. “Obra coletiva, segundo a lei, é aquela em que a participação de diversos profissionais se funde de maneira que se torna impossível diferençar a parte de cada um, e a titularidade acaba ficando para a pessoa jurídica, no caso, a produtora.”
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Cristina Padiglione, do Estado de S.Paulo