A discussão sobre “regulação da mídia”, como o tema vem sendo tratado agora e com toda a expectativa criada pelo discurso de posse do ministro das Comunicações Ricardo Berzoini, não é nem de longe uma discussão nova. Ela já existe há muitos anos. No contexto do debate atual, a primeira referência importante a um projeto de “regulação da mídia” é de 1997, ainda no governo FHC. Naquele ano, quando o ministro das Comunicações Sérgio Motta enviou a Lei Geral de Telecomunicações ao Congresso, mas deixou propositalmente uma série de temas inerentes à radiodifusão e TV a cabo de fora do texto, para evitar polêmicas e aprovar rápido a LGT (fundamental para o processo de privatização). Ali surgia, contudo, o embrião de uma série de projetos e discussões regulatórias que viriam depois.
O próprio ministro Sérgio Motta tomou uma das medidas mais importantes ao mercado de radiodifusão desde o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Foi em sua gestão (mais precisamente em dezembro de 1996) que as concessões de radiodifusão passaram a ser objeto de licitação, com a alteração o Regulamento de Radiodifusão de 1963 (Decreto 52.795/63). Até então elas eram distribuídas politicamente.
Este noticiário fez uma compilação das propostas e anteprojetos que surgiram desde então no Executivo e que podem, de alguma maneira, ser enquadradas como propostas de “regulação da mídia”, como o assunto tem sido tratado pela imprensa, pela militância e pelo próprio governo, e a quantidade de projetos mostra que esse não é nem um assunto novo nem exclusivo do governo petista ou tucano. Não estão incluídos neste levantamento projetos cujos debates ficaram restritos ao Legislativo nem discussões correlatas, como reforma dos direitos autorais, classificação indicativa, mudanças nas regras de publicidade ou leis de fomento.
Governo FHC
1) Anteprojeto de Lei de Comunicação Eletrônica de Massa (versão 5), elaborado na gestão Sérgio Motta/Mendonça de Barros, entre 1997 e 1998 – Quando o texto da quinta versão do projeto veio a público em meados de 1999, de maneira não-oficial (nunca foi aberto um processo de consulta), foi a primeira vez que se teve a dimensão e a magnitude do que estava em elaboração. A proposta, fortemente baseada no modelo norte-americano da FCC, revia a legislação de TV por assinatura e radiodifusão de maneira ampla; reclassificava os serviços de TV por assinatura (cabo, DTH e MMDS); estabelecia aos radiodifusores um limite de 30% nos domicílios com TV para concentração de mercado em termos de cobertura geográfica; colocava o mesmo limite para operadoras de TV por assinatura; impedia a propriedade cruzada entre TV paga e TV aberta e entre TV a cabo e telefonia fixa; os contratos entre geradoras de TV aberta e afiliadas passavam a ser regulados; ficavam proibidos contratos de exclusividade de programação; e seriam estabelecidas cotas de produção local para a TV paga. Todos os serviços de comunicação de massa (incluindo a radiodifusão) passariam a ser regulados pela Anatel.
2) Anteprojeto de Lei de Comunicação Eletrônica de Massa (a versão apócrifa), supostamente elaborado no início da gestão Pimenta da Veiga (1999) – Trata-se de uma atualização da versão anterior, mas que veio a público (também de maneira não-oficial) em um contexto específico: o então ministro Pimenta da Veiga estava em guerra com o então presidente da Anatel, Renato Guerreiro, justamente por conta de uma disputa sobre a responsabilidade da agência em relação aos serviços de rádio e TV. A proposta do ministério teria inclusive sido enviada à Casa Civil justamente no meio dessa disputa, como forma de demarcar territórios, ainda que oficialmente Pimenta negasse a autoria do texto. Entre os principais aspectos dessa minuta estavam: a regulação e a fiscalização da radiodifusão continuariam sob responsabilidade do Minicom, ficando a Anatel responsável apenas pelo processo de licitação; a proposta não previa uma forte regulação dos contratos de afiliação das emissoras de TV, mas o Minicom poderia ter ingerência sobre essa relação; eram amenizadas as cotas de programação local para TV paga; eram mantidos os limites de cobertura de 30% dos domicílios de TV para uma mesma empresa de radiodifusão. O início do mandato de Pimenta da Veiga foi marcado por uma intensa discussão sobre o assunto, inclusive com a realização de um seminário fechado apenas a radiodifusores em que tratou do tema de maneira reservada, sem a presença da imprensa.
3) Anteprojeto de Lei de Radiodifusão, elaborada na gestão do Ministro Pimenta da Veiga e colocada em consulta pública oficialmente em setembro de 2001 – Ao contrário das versões anteriores, essa proposta era bem menos abrangente e não tratava da TV por assinatura nem pretendia criar um marco normativo único para TV aberta e TV paga. Mas atualizava aspectos importantes da radiodifusão. Por exemplo, impedia a terceirização de conteúdos na TV aberta (como o aluguel de espaço a igrejas ou programas de venda); dava ao Minicom (que permanecia como regulador do mercado) poder de exigir informações técnicas, econômico-financeiras e operacionais das emissoras de TV; exigia conteúdos de dramaturgia e jornalismo inéditos, além de cotas para conteúdos infantis e filmes nacionais que seriam estabelecidos por regulamentação (Pimenta previa inclusive a possibilidade de uma agência para conteúdos); abria ao serviço de radiodifusão a possibilidade de prestar serviços de valor adicionado sobre sua própria rede; criava a possibilidade de obrigações de universalização para serviços de radiodifusão; previa a flexibilização do processo de outorga das emissoras de rádio e TV para contemplar outros critérios além de técnicos e financeiros; e criava o Conselho Nacional de Comunicações como órgão de assessoramento do ministério para elaboração de políticas. Apesar da consulta pública, a proposta de Pimenta da Veiga não chegou a ir ao Congresso.
4) Projeto para criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), em 2001 – Foi uma proposta que consumiu grande esforço da Casa Civil em 2001, quando o titular da pasta era o ministro Pedro Parente. A primeira versão conhecida da proposta, elaborada pela Casa Civil e pelo GEDIC (Grupo Executivo para Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica), propunha a criação de uma agencia reguladora para o cinema e para o audiovisual, a Ancinav, com poderes de regular e também poder sancionador sobre esse mercado do audiovisual; estabelecia 10% de taxa sobre as remessas ao exterior provenientes de exploração de obras audiovisuais no Brasil; estabelecia uma cobrança de tributo sobre a receita bruta de programadores de TV paga e emissoras de TV aberta, com a aplicação de percentuais mínimos de aplicação da receita na aquisição de direitos e produção de conteúdo nacional (na primeira proposta o percentual era de 4%); exigia um canal de produção independente inclusive dos operadores de banda larga (SCM) que oferecessem conteúdos audiovisuais; e criava o Conselho Superior do Cinema e do Audiovisual, responsável pela criação de políticas para o setor audiovisual e garantir a presença de conteúdo nacional em todos os “meios de comunicação eletrônica de massa”.
5) MP que criou a Agência Nacional de Cinema (MP 2.228/2001), editada em setembro de 2001. Após a polêmica gerada em torno da primeira proposta elaborada pela Casa Civil, o governo cedeu aos radiodifusores e se focou em criar uma agência reguladora para o cinema, a Ancine, por meio de Medida Provisória, aproveitando o trabalho elaborado pela Casa Civil e pelo GEDIC. A taxação sobre a radiodifusão foi retirada, assim como qualquer referência a uma regulação ampla do mercado audiovisual. A Ancine era criada naquele momento como uma agência de fomento e fiscalização do cinema e do mercado videofonográfico. O conselho previsto anteriormente ficou restrito à formulação de políticas para o setor de cinema. O setor de TV por assinatura, contudo, foi diretamente impactado pela medida, pois a receita bruta das programadoras continuaria sendo taxada. Posteriormente, no Congresso, essa taxação foi revista dando origem ao que hoje é a redação final do Artigo 39 da MP 2.228/01, que prevê que os recursos recolhidos sobre as remessas ao exterior possam ser reaplicados em co-produções. O texto final da MP também isentou as programadoras nacionais de qualquer pagamento. Vale destacar que a discussão sobre a criação da Ancinav ocorreu em paralelo ao debate, no Congresso, da Emenda Constitucional que permitiria a grupos estrangeiros participarem de até 30% do capital de empresas jornalísticas e de radiodifusão.
6) Propostas de Lei de Comunicação Social Eletrônica, apresentadas no final de 2002 pelo então ministro das Comunicações Juarez Quadros – Era um mesmo projeto, com duas variantes: uma dava poderes para a Anatel regular o mercado de radiodifusão e a outra mantinha essa atribuição com o ministério. As propostas também eram muito parecidas com os projetos elaborados na gestão do ministro Mendonça de Barros. Como pontos principais, as propostas criavam o Serviço de Comunicação Social Eletrônica, que poderia incluir vários serviços de telecomunicações e radiodifusão. As propostas traziam a obrigação de determinado percentual de conteúdos nacionais na TV por assinatura; fim da possibilidade de contratos de exclusividade; obrigatoriedade de transporte de canais abertos em qualquer tecnologia de TV paga; limitava o total de outorgas de TV a uma por grupo em cada município; criava a modalidade de radiodifusão institucional e radiodifusão para segurança rodoviária; previa a licitação por proposta técnica para emissoras educativas; estabelecia direitos aos usuário de TV por assinatura; e propunha algum nível de acompanhamento, ainda que superficial, das relações de afiliadas de TV aberta.
As propostas elaboradas na gestão Quadros foram tornadas públicas oficialmente e deixadas para a equipe do primeiro ministro das Comunicações do governo Lula, Miro Teixeira, ainda na fase de transição. Miro Teixeira nunca encaminhou nenhuma das propostas ao Congresso nem abriu consulta pública.
Ainda no final do governo FHC, foi regulamentada, por meio da Lei 10.610/2002, a presença de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de radiodifusão, sem, contudo, que fosse estabelecida a responsabilidade fiscalizatória sobre empresas jornalísticas ou de comunicação eletrônica.
Governo Lula
7) Anteprojeto Lei Geral do Audiovisual, ou “Projeto da Ancinav” como ficou conhecido, foi elaborado pelo Ministério da Cultura sob a gestão Gilberto Gil, em 2004. Nunca ficou muito claro se esse projeto era de fato a Lei Geral do Audiovisual ou uma etapa intermediária antes de uma legislação ainda mais ampla. Mas o projeto já apontava para uma legislação extremamente abrangente, de mais de 140 artigos, que tratava pela primeira vez da comunicação audiovisual em múltiplas plataformas, inclusive as de telecomunicações. O texto surgiu aproveitando um momento político único, em que havia forte movimento dos radiodifusores em defesa do “conteúdo nacional”, contra as teles.
Fato é que o “Projeto da Ancinav” talvez tenha sido, até hoje, o texto mais intensamente debatido e com o mais completo processo de consultas e audiências pública entre aqueles que podem ser enquadrados como “regulação da mídia”, no sentido amplo. A proposta recriava a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (sugerida pela primeira vez em 2001), em lugar da Ancine, com poderes de regular o mercado audiovisual, fosse na radiodifusão, na prestação de serviços por empresas de telecomunicações ou no cinema. A proposta tinha uma preocupação especial com as empresas de telecom, que na época ganhavam força no cenário convergente, na mesma medida em que grupos de comunicação (incluindo a Globo) passavam por um complexo período de reestruturação financeira após a grande crise de 2002 e 2003.
Pela primeira vez se falava em dar à agência do audiovisual poderes para atuar em questões concorrenciais do setor audiovisual (que ia da produção à veiculação de conteúdos) e evitar abusos de poder econômico. Também caberia à Ancinav a fiscalização do cumprimento dos limites de publicidade e programação jornalística das emissoras de TV.
A Ancinav também teria poderes de regulamentar o mercado de TV paga em vários aspectos que na época eram (e ainda são) responsabilidades da Anatel. Também estabelecia compromissos para veiculação de conteúdo nacional em todas as plataformas de distribuição audiovisual. Por fim, o projeto mudava vários aspectos da legislação de direito autoral.
A discussão dobre a proposta do MinC se alongou por todo o segundo semestre de 2004, teve várias versões, contou com grande apoio do ministro Gil e ganhou inclusive uma declaração pública de apoio do presidente Lula, que assegurou que o projeto seria enviado ao Congresso. Mas, na prática, o bombardeio foi tanto que a proposta acabou engavetada. Muitas de suas ideias e inovações voltaram depois na discussão feita pelo Congresso a partir de 2007, para a Lei do Serviço de Acesso Condicionado, o SeAC, e alguns pontos apareceram em regulamentações da Ancine. A ideia de uma Lei Geral do Audiovisual, contudo, sucumbiu e foi transformada em um grupo de trabalho para regulamentar os artigos 221 e 222 da Constituição, mas que nunca deu frutos concretos.
8) Decreto da TV Digital (Decreto 5.820/2006) – Trata-se do principal marco normativo da TV digital brasileira e, na prática, foi o documento que estabeleceu o Sistema Brasileiro de TV Digital (o primeiro decreto, de 2003, dava apenas linhas gerais). O documento é resultado de um processo de quase três anos de discussão entre governo, empresas e academia sobre as possibilidades tecnológicas da TV digital e o que isso deveria mudar no modelo normativo da radiodifusão. Mas o resultado final foi limitado. Na prática, o decreto apenas institui o padrão ISDB-T como padrão tecnológico a ser seguido pelo Brasil e consolidou os princípios da alta definição, mobilidade e interatividade como requisitos do modelo brasileiro. Não houve nenhuma mudança mais profunda em relação ao modelo de outorgas, competição, política industrial ou regulação do setor.
9) Lei da EBC (Lei 11.652/2008) – Foi um projeto de iniciativa do Executivo que criou a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, responsável pela TV Brasil, entre outras atividades. O governo tinha uma preocupação de fortalecer o sistema público de comunicação e criar uma emissora pública nacional de TV.
10) ”Projeto Franklin Martins”, elaborado pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República, comandada pelo então ministro Franklin Martins. A proposta começou a ser desenhada em 2010, como resultado da sistematização dos trabalhos da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009. Durante cerca de um ano, um grupo de trabalho formado por vários órgãos do governo se debruçou sobre todas as propostas já elaboradas no sentido de modernizar e atualizar o marco legal do setor de comunicações. O resultado foi uma minuta concluída ao final do governo Lula, mas que não entrou em consulta.
Pouco se sabe sobre o texto da proposta porque ele nunca se tornou público nem foi discutido abertamente. Mas entre os aspectos importantes estavam mudanças na Lei Geral de Telecomunicações (que seria inclusive incorporada pela nova lei) e na legislação de TV paga, bem como a reforma de vários dispositivos da legislação de radiodifusão. Uma Agência Nacional de Comunicação (ANC), responsável por regular o mercado de radiodifusão, TV paga, audiovisual e de conteúdos, seria criada sobre a base da Ancine, que deixaria de existir. Esta nova agência e a Anatel passariam a ficar sob um mesmo ministério (Ministério das Comunicações), e o papel fomentador do audiovisual voltaria para o MinC. A proposta criava os Serviço de Comunicação Social, Serviço de Comunicação Eletrônica e um Serviço de Comunicação em Rede, que seria um equivalente mais regulado dos serviços de valor adicionado.
A proposta, deixada para o governo Dilma Rousseff, acabou não sendo colocado em consulta pública, apesar de promessas nesse sentido. No primeiro ano da gestão de Paulo Bernardo à frente do Ministério das Comunicações cogitou-se criar uma consulta na forma de perguntas (que nunca foram publicadas). Bernardo manifestou em diversas ocasiões a questão da preocupação com o controle das outorgas de TV por políticos e cunhou a expressão “regulação econômica” do setor ao se referir ao projeto. Mas nunca obteve o sinal verde da presidenta para levar a discussão adiante.
Governo Dilma Rousseff
11) Lei da Comunicação por Acesso Condicionado, ou Lei do SeAC (Lei 12.485/2011) – Trata-se na verdade de um projeto de reforma na legislação dos serviços de TV por assinatura que surgiu no Legislativo e começou a ser discutida no Congresso em 2007, mas que recebeu contribuições importantes do Executivo, via Ancine e, em sua reta final de tramitação, em 2011, teve forte apoio do Ministério das Comunicações e da Anatel.
12) Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) – Não é uma proposta de “regulação da mídia” nem muda as regras do setor de comunicação social, mas acabou tendo o setor de radiodifusão e das telecomunicações como parte importante do debate, pela primeira vez trouxe grupos com atuação no mercado de Internet para um grande debate legislativo e, sem dúvida, é uma legislação relevante para o mercado de comunicação na era da Internet.
Existe uma grande expectativa, nesse início de segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, em relação ao tratamento que o ministro das Comunicações Ricardo Berzoini dará ao tema. Ele sempre se manifestou favorável a levantar a abrir o debate e assume o ministério depois de a própria presidenta Dilma ter dito que daria prioridade ao assunto, durante a campanha. O discurso de Berzoini e a expectativa, contudo, também não são novos. Todos os ministros que assumiram o ministério das Comunicações desde Mendonça de Barros (e desde então foram oito titulares na pasta) sempre chegaram pressionados por algum grau de questionamento sobre como tratariam o tema.
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Samuel Possebon, do Tela Viva News