Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

As democracias levam a sério o direito à informação

A regulação dos meios de comunicação é algo comum nas grandes democracias do mundo. Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Espanha, entre outros países, há várias décadas estabeleceram regras para o setor. A maioria busca atualizá-las constantemente para alinhar a legislação às inovações tecnológicas e às transformações sociais. Os britânicos, por exemplo, a cada cinco anos, em média, discutem e aprovam no Parlamento novas regras para a mídia eletrônica. E recentemente aprimoraram a regulação para os meios impressos.

Na América Latina, nos últimos anos, a maioria dos países aprovou leis modernas para o rádio e a televisão com o objetivo de democratizar o seu uso. O caso mais expressivo, por seu respaldo político e pela consistência da lei, é o da Argentina, que em 2009 teve aprovada pelo Congresso a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual.

Uma das principais características comuns a todos esses países é a existência de autoridades reguladoras públicas com competência para aplicar as leis existentes para a produção e a difusão audiovisual. São responsáveis por outorgar as concessões de rádio e TV, acompanhar e avaliar a qualidade dos serviços prestados pelos concessionários e promover, ou não, a renovação das concessões. São também os fóruns legais para manifestações do público e de diálogo com as empresas de radiodifusão.

Nas concessões, os governos diretamente ou os órgãos reguladores redigem os chamados “cadernos de encargos”, nos quais constam direitos e deveres atribuídos aos concessionários durante o período em que vigorar a concessão. Tipos de programas, públicos que pretendem atingir e formas de financiamento são alguns dos itens a serem especificados no caderno. Caso sejam descumpridos, o órgão regulador tem poderes de impor sanções que vão de advertência a cassação da concessão.

Nos Estados Unidos, a Comissão Federal de Comunicações (FCC, de Federal Communications Commission) é o órgão criado pela Lei de Comunicação de 1934 com a prerrogativa central de realizar a regulação econômica da mídia, evitando a concentração da propriedade dos meios. Não permite, por exemplo, que apenas uma empresa seja dona de jornal e de emissoras de rádio e TV numa mesma cidade. Embora a primeira emenda da Constituição estadunidense garanta a absoluta liberdade de expressão, a FCC recebe queixas constantes sobre o conteúdo das programações. No entanto, sua ação limita-se basicamente a proteger as crianças do que ela chama de “material indecente”, proibido de ser veiculado entre as 6h e as 22h.

Ainda assim, a FCC pode punir emissoras que transmitam informações falsas, realizem sorteios ou concursos em que as regras não estejam claras e não sejam rigorosamente cumpridas ou aumentem o som nos intervalos comerciais. A comissão é responsável também por fazer cumprir a lei que determina a obrigatoriedade das emissoras de transmitir, no mínimo, três horas semanais de “programação infantil essencial”, identificando os programas com o símbolo E/I e informando antecipadamente os pais sobre os horários de exibição. Eles devem ser exibidos entre as 7h e as 10h, com pelo menos 30 minutos de duração.

Proteger o público

Na Europa, os órgãos reguladores preocupam-se mais com questões de conteúdo e exigem das emissoras cuidados que vão da veracidade dos anúncios publicitários exibidos à linguagem utilizada por artistas e apresentadores. No Reino Unido, a regulação do rádio, TV, internet e redes de telecomunicações é feita pelo Escritório de Comunicações (Ofcom, de Office of Communications), criado em 2003, quando unificou vários outros órgãos reguladores existentes anteriormente. Os meios impressos são regulados pela Ipso (Independent Press Standards Organization), uma organização independente aprovada pelo Parlamento e sancionada pela rainha Elizabeth II em 2013.

Ao Ofcom cabe a tarefa de garantir à população britânica a existência de serviços de comunicação eletrônica de alta velocidade, de programas de rádio e TV com qualidade e diversidade, além de proteger os espectadores e ouvintes de conteúdos impróprios e de impedir a invasão de privacidade.

Conta para isso como uma série de canais abertos para que o público possa se manifestar em relação aos serviços prestados pelos meios de comunicação. As demandas são avaliadas e, quando é o caso, levadas aos responsáveis pelas transmissões. Abusos comprovados são punidos de acordo com a legislação.

Os meios impressos foram durante quase 60 anos autorregulados por meio da PCC (sigla em inglês da Comissão de Reclamações sobre a Imprensa). O código de conduta adotado foi elaborado pelos próprios empresários que, além disso, ocupavam mais da metade das vagas do órgão. A complacência da Comissão diante de casos graves de violações éticas cometidas pela imprensa minou a sua credibilidade. Ela não resistiu ao escândalo provocado pelos jornalistas flagrados grampeando telefones de artistas e de pessoas envolvidas em casos policiais.

Diante da ineficiência da PCC, o governo britânico criou uma comissão de inquérito para esclarecer o “papel da mídia e da polícia no escândalo das escutas telefônicas ilegais”. Ao final dos trabalhos, a principal recomendação do Relatório Levenson (referência ao presidente da comissão, lorde Justice Levenson) foi a criação de uma nova agência reguladora para a mídia com poder de aplicar multas de até 1 milhão de libras (cerca de
R$ 4 milhões de reais) ou de até 1% do faturamento das empresas.

A Ipso tem como uma de suas atribuições adotar medidas para proteção dos cidadãos, além de poder obrigar jornais, revistas e sites de internet com conteúdo jornalístico a publicar correções de matérias e pedidos de desculpas. A adesão das empresas ao órgão é voluntária, mas as que não aderirem poderão sofrer punições ainda mais severas. A criação da agência é resultado de um acordo firmado entre os três maiores partidos britânicos e tem o respaldo de uma Carta Real, assinada pela rainha Elizabeth. Qualquer alteração só poderá ser feita com o voto de, pelo menos, dois terços do Parlamento.

Na Argentina, a regulação atinge apenas o rádio e a TV, com a aplicação da nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada pelo Congresso em 2009. Seu mérito principal é o de ampliar a liberdade de expressão no país, garantindo o acesso ao espectro eletromagnético de grupos sociais antes excluídos pela força do monopólio. A lei estabelece que 33% do espectro está destinado a organizações sem fins lucrativos e abre espaço para que povos originários possam controlar emissoras de rádio e TV, transmitindo programas em seus próprios idiomas, como já ocorre na região de Bariloche, com o canal Wall Intui (Olhar em Volta, no idioma dos Mapuche).

A nova legislação acaba com os monopólios e oligopólios ao estabelecer limites para o número de concessões outorgadas a cada empresa. Nenhuma delas (seja estatal, privada com fins lucrativos ou privada sem fins lucrativos) pode controlar mais de um terço das concessões, que terão no máximo dez anos de vigência. Até os direitos de transmissão do campeonato nacional de futebol foram assumidos pela emissora pública argentina, que posteriormente abriu o sinal para que outras redes de rádio e TV abertas pudessem exibir as partidas da primeira divisão.

Por força da lei, o grupo Clarín teve de abrir mão de várias de suas licenças e, por isso, tornou-se o maior opositor da nova regulação, tendo sido derrotado em todas as instâncias do Judiciário para as quais apelou. Agora, um empresário não pode mais controlar canais de TV abertos e fechados ao mesmo tempo, e o sinal de uma empresa de TV por assinatura não poderá chegar a mais de 24 localidades nem superar o limite de 35% do total de assinantes.

A Lei de Meios argentina permitiu uma expansão do setor audiovisual até então inédita no país. Foram concedidas 814 licenças para operação de emissoras de rádio, TV aberta e TV paga. Dessas, 53 de TV e 53 de rádio FM destinaram-se às universidades e 152 a emissoras de rádio instaladas em escolas primárias e secundárias.

As aspirações brasileiras

No Brasil, calcula-se que 19 projetos de lei visando à democratização da mídia já foram elaborados pelo Executivo desde que entrou em vigor a Constituição de 1988. Nenhum deles foi levado ao debate com a sociedade e muito menos enviado ao Congresso Nacional. Seguem vigorando as leis antigas que, por serem obsoletas, atendem aos interesses dos poucos que se beneficiam dessa situação.

No caso do rádio e da televisão, apenas a aprovação de leis que regulamentassem os artigos da Constituição promulgada há menos de três décadas referentes ao Capítulo da Comunicação Social já seria um grande avanço. Por exemplo, o Artigo 220, em seu parágrafo 3º, determina que compete à lei federal “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que se recomendam, locais e horários em que a apresentação se mostre inadequada”.

Essa é uma das poucas determinações da Constituição que já foi objeto de regulação, originando o que se convencionou chamar de “classificação indicativa” para exibição de programas de TV. Mesmo tendo sido amplamente debatida na sociedade, a classificação indicativa sofre forte oposição dos radiodifusores e é contestada por uma ação de inconstitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal.

Segundo o mesmo parágrafo, ainda cabe a uma legislação reguladora “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defender de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no Artigo 221 (ver a seguir), bem como a propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”.

Não existem esses meios. A defesa da “pessoa e da família” só é feita por meio de ações propostas pelo Ministério Público, que invariavelmente são derrotadas na Justiça pela falta da lei específica. Mas só a lei não basta. É necessária a existência de um órgão regulador, como o Ofcom britânico, como poderes para aplicá-la. Além de ser um fórum com representantes dos radiodifusores, do governo e da sociedade capaz de resolver divergências mais simples, sem necessidade de recursos à Justiça.

“Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”, também é uma regra estipulada no Artigo 3º do mesmo parágrafo. A concentração de canais de difusão de informação nas mãos de poucas empresas é o principal obstáculo à liberdade de expressão no Brasil. Um pequeno grupo controla todo o setor e veicula programas, programações e ideias semelhantes, impedindo a circulação de opiniões plurais, imprescindíveis para uma sociedade democrática. A revisão da distribuição do espectro eletromagnético e o estabelecimento de limites à propriedade de meios de comunicação por um mesmo grupo econômico são as providências necessárias para romper com os monopólios e oligopólios existentes no país.

Agora, diz o Artigo 221 que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão devem atender aos seguintes princípios:

“I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” – Há vários exemplos de programas que estão no ar no rádio e na TV que não se enquadram nesse dispositivo constitucional. Não podem ser considerados informativos, por exemplo, programas que fazem do crime um espetáculo mórbido.

“II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive a sua divulgação” – A promoção da cultura nacional e o estímulo à produção independente ganharam estímulo na TV paga com a lei que entrou em vigor em 2011 determinando a abertura de espaços nas grades de programação das emissoras para cotas de programas produzidos no Brasil. Para a TV aberta não há nenhuma legislação específica sobre o tema.

“III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei” – A regulamentação deste artigo foi apresentada ao Congresso em 1991 e até hoje não foi votada. A falta da lei impede a ampliação do mercado de trabalho de profissionais de rádio e TV em inúmeras regiões do país, reforçando a concentração dos meios de comunicação no eixo Rio-São Paulo. Impede ainda a circulação pelo Brasil da produção cultural, artística e informativa que se faz em todo o território nacional.

“IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” – São questões subjetivas que necessitam de fóruns amplos de discussão capazes de calibrar o que se veicula pela mídia com o nível sociocultural e de valores alcançado pela população num determinado momento histórico. A existência do órgão regulador plural e democrático será um passo nesse sentido.

******

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e autor, entre outros, de A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho