Em 1971 a revista mensal Realidade, uma das melhores da história da imprensa brasileira, como se fora a mitológica fênix, renasceu das cinzas em que foi lançada pelo nefando AI-5, de três anos antes, que pôs fim à liberdade de imprensa no país, dentre outros dos seus efeitos perversos.
Graças a uma volumosa e primorosa edição especial dedicada integralmente à Amazônia, a revista vendeu mais de meio milhão de exemplares. E não vendeu mais porque não pôde lançar uma segunda tiragem. Vendeu bem mais, proporcionalmente, do que vende hoje a revista semanal Veja, da mesma editora, a Abril.
Um dos seus pontos fortes foi difundir a ideia de que a Amazônia é o pulmão do mundo, que mereceu até alegorias como ilustração. Ao respirar, sua floresta, a maior dos trópicos, absorvia carbono e liberava oxigênio. Funcionava como um pulmão planetário, filtrando as impurezas lançadas pelo homem à atmosfera.
Verdadeira a tese, seria crime de lesa humanidade o avanço do homem destruidor sobre a mata nativa amazônica, que abriga um terço da floresta que tem a maior densidade de árvores da Terra. Sem esse pulmão a poluição tornaria impossível a vida do homem sobre a superfície do planeta.
Soma de funções
O surpreendente sucesso – de público e de crítica – da mais gloriosa das edições da carreira de Realidade, iniciada em 1966, demonstrava o interesse da opinião pública pela questão. Não era para menos: o governo federal iniciava então o que prometia ser o maior projeto de colonização da história da humanidade.
O presidente do órgão oficial, o Incra, que promoveria esse êxodo, o pernambucano José de Moura Cavalcanti, se imaginava um novo Moisés: comandaria milhares e milhares de conterrâneos transferidos das terras secas do Nordeste para as selvas úmidas da Amazônia, onde, finalmente, se tornariam donos dos seus lotes.
A propaganda garantia que só a aventura da conquista da Lua,que então os Estados Unidos promoviam, era equivalente. Lá do alto, navegando pelos céus na sua nave espacial, os astronautas só veriam na Terra azul duas obras humanas: a muralha da China e a Transamazônica, que naquele momento rasgava o tapete vegetal para exibir suas frágeis entranhas de latossolo pobre. Uma mancha borrada de amarelo num tecido verde até então virgem.
A propaganda só não esclareceu que enquanto os chineses construíram a incrível muralha para tentar se proteger dos bárbaros, a grande estrada de penetração no reduto florestal amazônico seria o caminho da barbárie, que conteria o vírus da destruição do bem mais nobre da Amazônia: a própria floresta.
Quando os tratores começaram a por abaixo árvores de 40 a 50 metros, com uma facilidade que surpreendida os seus operadores, a alteração da paisagem pelo homem, a partir de 14 mil anos antes, não passava de traço, algo como 0,4% da superfície da região. Hoje, chega a 20%. Uma França coberta de floresta desapareceu desde então.
O mais impressionante não é o declínio da taxa de desmatamento, como foi ruidosamente anunciado como medida preparativa do governo para poder abrir com gala a conferência Rio+20. O impressionante é que o desmatamento ainda prossiga.
A taxa média anual da primeira década do século 21 foi três vezes menor do que nos anos 1980. Em compensação, a base de referência era oito vezes inferior. Proporcionalmente, portanto, o significado da derrubada de árvores nos nossos dias é ainda mais grave do que antes.
Antes não havia o grau de consciência, conhecimento e informação de hoje. Não é por não saber que desmatar floresta, qualquer floresta, para em seu lugar formar nova atividade, qualquer atividade, é um ato de falta de inteligência e de perda (inclusive econômica), que se pratica essa estupidez na Amazônia.
Amazônia exatamente porque resulta de uma rara combinação de água e floresta, em circuito fechado nesse organismo harmônico. Sem essa harmonia intrínseca, a Amazônia vira um cerrado, sem o diferencial que lhe oferece a oportunidade de não ser mais do que a imitação de uma África ou de uma Ásia coloniais. Ou, como diria Caetano Veloso, ser qualquer coisa.
O sucesso da edição de Realidade sobre a Amazônia meses antes do primeiro encontro mundial para debater a relação entre o homem e o meio ambiente, em Estocolmo, na Suécia, seria um recado maravilhoso para um governo provido de bons propósitos. Era terreno fecundo para semear a boa palavra.
A boa palavra não era a tese do pulmão do mundo. A ideia resultou de má compreensão por parte do jornalista que ouviu o cientista falar sobre a função reflexa da floresta amazônica. Ela absorve todo oxigênio que gera através da fotossíntese. Ou não estaria em clímax, renovando-se sempre, substituindo as árvores que envelhecem e morrem.
A densa copa das árvores, que filtra os raios do sol e amortece a queda da água da chuva, protege o solo, renova a si própria e absorve carbono. Tem ampla e complexa soma de funções na sua dinâmica. Imaginava-se que todos desejariam mantê-la ao saber do seu mecanismo de funcionamento. Ninguém imaginava que, pelo contrário, ia ser imolada na pira da estupidez humana.
Barbárie estabelecida
Como a encarnação e representação da vontade nacional, o governo podia ter feito um movimento distinto do que fez diante do antepassado dessa carnavalesca Rio+20, 40 anos atrás. Contraditando o que proclamava a revista, o governo declarou – alto e bom som – ao interlocutor mundial: no Brasil, a poluição será bem-vinda.
Se alguém quisesse exportá-la, já sabia para onde mandá-la. O Brasil achava que só com esse tipo de problema, que começava a assustar os países mais civilizados, podia se desenvolver. A industrialização não veio depois da poluição nesses mesmos países?
Quanto à floresta, devia se transformar em pastagem, campo de cultivo, estrada, hidrelétrica e qualquer outro meio capaz de gerar renda, atrair população, fincar as garantias demográficas e econômicas da soberania nacional – da segurança nacional, acima de tudo, deus ex-machina do governo militar (não do civil, até hoje, indiferente a Sarneys, FHCs, Lulas e Dilmas?).
O futuro a Deus pertence – e ele, como todos estamos cansados de saber – é brasileiro. Ma non troppo – há de mandar dizer o Altíssimo do Vaticano, para ressalva de responsabilidades.
O que fizemos de 1972 até hoje é nossa culpa. Nossa Muralha da China, a Transamazônica, cumpriu muito melhor sua destinação: plantou definitivamente a barbárie na cada vez mais desolada Amazônia. Apesar da bizarria e das mentiras da circense Rio+20. Como todo circo, fonte de fantasias. E de palhaçadas.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]