O temporal que devastou inúmeras localidades na região serrana do Rio de Janeiro na madrugada do dia 12 de janeiro deixou cerca de 900 mortos, centenas de desaparecidos e mais de 29 mil desabrigados. O alto índice pluviométrico registrado nas primeiras horas da tempestade causou enchentes, deslizamentos de terra e elevação do leito dos rios. Um mês após a tragédia, o Observatório da Imprensa visitou as cidades mais atingidas pelas chuvas para mostrar como foi o trabalho da mídia regional nesta cobertura e debater os principais desafios do jornalismo fora dos |
A edição especial exibida na terça-feira (1/3) pela TV Brasil veiculou
entrevistas com profissionais de imprensa, autoridades e moradores de Nova
Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e Areal.
No editorial que abre o programa, Alberto Dines comentou que a grande
imprensa, principalmente as redes de televisão, trouxe a tragédia para dentro
das casas do Brasil inteiro. ‘Esta é a sua função, para isso dispõem de
fabulosos recursos financeiros, técnicos e humanos. Pouco se falou sobre o papel
desempenhado pela mídia local da região serrana, os pequenos jornais
comunitários, as emissoras de rádio, as repetidoras de TV, os serviços de
alto-falantes, os sites, os blogs. Pouco se falou sobre o cidadão-repórter e o
repórter-cidadão que, com precários celulares, webcams e tocados pela intensa
ligação com a sua terra e a sua gente, cumpriram o doloroso dever de relatar o
que acontecia sem abater-se’, avaliou. Dines comentou que o poder político
deseja uma imprensa regional ‘inofensiva, atrelada e submissa aos seus
interesses’ e que os anunciantes locais não têm coragem para ‘bancar’ um
jornalismo independente.
Em Nova Friburgo, as chuvas atingiram em cheio o centro da cidade, causando
mortes e afetando drasticamente setores essenciais da economia. Com as ruas
tomadas pela lama, o primeiro desafio da equipe da afiliada do SBT no interior
do estado foi chegar à redação, na Praça Getúlio Vargas. Mesmo com as
dificuldades de locomoção, as primeiras imagens gravadas em solo foram
transmitidas por esta equipe. Nelson Cunha, editor-chefe do canal, contou que,
em função da falta de energia elétrica e do colapso no sistema de telefonia, o
mais difícil nas primeiras horas era ter a noção exata da situação. A estrutura
da repetidora do SBT é proporcional à realidade pacata de Nova Friburgo. Por
isso, os funcionários precisaram se redobrar para cobrir a catástrofe. ‘A gente
passou, de um dia para o outro, a ter que, praticamente, preencher toda a grade
do jornal da emissora’, disse Cunha. Conciliar o lado profissional com a triste
realidade da tragédia que assolou a cidade foi um dos grandes desafios desta
cobertura, na avaliação do editor.
Com os pés na lama
Próxima a um rio, a sede do canal a cabo Luau TV, no bairro de Olaria, ficou
alagada. Voltada habitualmente para o entretenimento, a emissora passou a
transmitir para a população local as principais notícias sobre os transtornos
causados pelas chuvas. ‘A informação é de que realmente o que havia acontecido
com a cidade era algo muito sério, muito grande, já se percebia nas primeiras
horas da manhã um número grande de helicópteros sobrevoando, o que não era
normal. Por volta de 13 horas a energia foi restabelecida e o nosso telefone
começou a funcionar. Imediatamente o Daniel [técnico do canal] pegou todos os
equipamentos que nós tínhamos e levou pra parte de cima e lá nós improvisamos um
espaço para passar as primeiras informações daquilo que estava acontecendo’,
contou Walter Thuller, diretor da Luau TV. A apresentadora Bruna Verly relembrou
que foi a pé até a emissora, com lama até o joelho. Luzêni Penna acredita que,
como jornalista, está tendo uma responsabilidade social muito maior do que
imaginava.
A repórter Karime Leão, do SBT, voltou com a equipe do Observatório ao
local onde houve o maior desabamento no centro da cidade. Prédios e casas foram
destruídos por toneladas de terra. Nove pessoas morreram, três delas integrantes
do Corpo de Bombeiros. ‘A impressão era de um cenário de guerra, parecia que a
gente estava em um filme de ficção científica’, relembrou. Uma mãe que, aos
prantos, pedia a funcionários do Instituto Médico Legal (IML) de Nova Friburgo
para limpar a lama do corpo do filho foi uma das cenas que mais marcaram a
jornalista. ‘Ela falava: ‘mas ele só tem seis anos, ele está sozinho lá dentro’.
Acaba com qualquer um, né? Não tem como você não se emocionar. Não tem como eu
ainda não estar em estado de choque’, disse Karime. Por ter um contato próximo
com autoridades e moradores, as equipes locais cobriram os fatos com maior
‘conhecimento de causa’, na avaliação da jornalista.
Outro veículo de informação que sofreu as conseqüências das chuvas em Nova
Friburgo foi A Voz da Serra. Os 170 mil habitantes da cidade ficaram seis
dias sem o jornal mais antigo e importante da região. Nos mais de 70 anos de
história do diário, esta foi a primeira vez que deixou de circular. A redação e
a gráfica não foram atingidas pela enxurrada, mas as dificuldades na
distribuição impediram que os exemplares chegassem às bancas e aos assinantes. A
maioria dos 30 funcionários foi afetada pela forte chuva e não conseguiu
trabalhar nos primeiros dias. O diretor do jornal, Laércio Ventura, explicou que
os fotógrafos da publicação percorreram a cidade ‘de forma muito empírica’, pois
estavam sem telefone para a comunicação com os editores, para registrar as
imagens da tragédia para as edições posteriores.
A real dimensão da tragédia
Em Teresópolis, o temporal devastou dezenas de bairros, mas deixou o centro
da cidade intacto. Sem luz e telefone e com ruas e estradas bloqueadas pela
queda de barreiras, o trabalho da imprensa nas primeiras horas foi caótico e a
mídia local demorou a perceber a dimensão da tragédia. André Oliveira, da Rádio
Teresópolis, contou: ‘Já saí com a minha câmera de fotografia a tira-colo, parei
em alguns pontos onde tinha uma laminha, uma sujeirinha, achando que eu estava
abafando, tirando foto daquilo tudo, falando ‘vou levar para o jornal porque a
chuva deu a maior sujeira’. Quando eu cheguei à emissora, nós estávamos sem luz
também, sem energia elétrica tanto no estúdio quanto nos transmissores e o
colega que estava aqui falou ‘olha, deu muito problema, muita gente morta, a
cidade está acabando’. E foi aí que começou a cair a ficha do que estava
acontecendo’. Ao longo do dia, a equipe contou com a parceria dos ouvintes para
transmitir informações sobre o estado em que se encontravam os bairros mais
afastados do centro.
O Grupo Diário, que edita o jornal Diário de Teresópolis, sofreu com
as informações desencontradas nos primeiros momentos. ‘A gente não tinha idéia
que a coisa ia tomar aquela proporção, mas a gente sabia que alguma coisa ia
acontecer ou que estava acontecendo. Já nas primeiras horas da madrugada a gente
recebeu telefonemas de pessoas nessas localidades que estavam numa situação
muito difícil, como no distrito da Posse. Tinha gente dizendo que estava vendo
coisas absurdas como ondas de 15 metros, não estava entendendo o que estava
acontecendo, pedindo informações, perguntando se eu sabia de alguma coisa. Aí eu
fui unindo uma coisa com a outra. Nas primeiras horas a gente já estava mais ou
menos pautado e, evidentemente, quando chegamos aos locais, vimos que a coisa
era mesmo assustadora e que aquilo iria tomar proporções inimagináveis’,
relembrou Anderson Duarte, diretor de jornalismo do grupo.
Para muitos habitantes de localidades que ficaram isoladas, o rádio à pilha
foi a solução para saber as notícias. ‘Você não precisa de energia elétrica para
ouvir rádio. Se você tiver um radinho à pilha você vai ouvir por um determinado
número de horas, enquanto a pilha durar. Isso serviu de informação no momento da
tragédia para muita gente que estava isolada. As torres de telefonia não estavam
funcionando. Não havia energia elétrica, não havia nada, mas o radinho estava
ligado’, disse André Oliveira. ‘A estrutura de uma rádio pequena nos deixa longe
dos helicópteros, nos deixa longe dos acessos aos bairros mais distantes. Aí é
que entrou a parceria dos ouvintes porque muito do que nós noticiamos foi
trazido por eles’, explicou o jornalista.
Uma cobertura inesquecível
Claucio Misael, repórter da Rádio Teresópolis, estava em férias na semana em
que a catástrofe ocorreu, mas acabou sendo contagiado pela necessidade de
registrar os fatos e ajudar a população. Ao longo da BR 116, interditada pela
queda de barreiras em diversos pontos, acompanhou resgates, relatos de dor e o
desespero de pessoas que caminhavam quilômetros na chuva em busca de notícias de
parentes. Uma das entrevistas que emocionaram o jornalista foi a de uma mãe que
perdera a filha de 15 anos levada pela força das águas do rio que passava ao
lado de sua casa. ‘Para um repórter, com certeza é muito difícil, apesar de eu
já ter visto muita coisa ruim. Por conta do meu trabalho de rua, a gente está
in loco, acompanhando alguns casos, mas algo igual ao que eu acompanhei,
nunca’, afirmou Claucio.
O resgate de D. Ilair, em São José do Vale do Rio Preto, comoveu o Brasil. O
rio que corta a cidade invadiu as ruas rapidamente e deixou a dona de casa
isolada em um terraço com seus cachorros. Poucos instantes antes da construção
ser levada pela enxurrada, vizinhos jogaram uma corda e conseguiram salvar a
vida de D.Ilair. As dramáticas imagens registradas por uma equipe da InterTV,
afiliada da TVGlobo, foram exibidas por telejornais de todo o país. ‘Eu não
acreditava que ia correr o mundo. Para mim, era uma imagem como outra qualquer.
Uma imagem normal, do meu dia-a-dia’, disse o repórter-cinematográfico Rogério
de Paula. O jornalista Bruno Micelli contou que, enquanto as imagens eram
captadas, a equipe ajudava a orientar D.Ilair.
No município de Petrópolis, o centro histórico e comercial não foi afetado
pelo temporal, mas o Vale do Cuiabá, no distrito de Itaipava, foi parcialmente
destruído. ‘Eu consegui contato com uma fonte na região do Brejal que confirmou
que havia duas vítimas fatais e a partir daí eu entrei em contato com a redação
do jornal e a gente foi para lá. Só que chegando na estrada do Gentio a gente
ficou sabendo que na verdade a tragédia maior estaria no Vale do Cuiabá. A gente
ouvia as pessoas falando ‘o Vale do Cuiabá acabou’, mas a gente queria saber o
que aconteceu lá. Aí nós fomos, passamos por uma localidade conhecida como
Buraco do Sapo, que fica perto da estrada Petrópolis-Teresópolis, e lá vimos que
pelo menos umas seis a oito pessoas estavam sendo retiradas e que o quadro era
de destruição total. Indo para o Vale do Cuiabá, a gente levou umas duas horas
para chegar por causa da dificuldade de acesso, o quadro de destruição só
aumentava’, relembrou Jaqueline Costa, repórter da Tribuna de Petrópolis.
Erros na grande imprensa
Uma semana depois das fortes chuvas que atingiram a região serrana, a
Tribuna de Petrópolis publicou um editorial na primeira página criticando
a grande imprensa. Para o jornal, a cobertura da mídia nacional foi leviana e
pode prejudicar o turismo e o comércio, vitais para a recuperação da cidade. ‘Eu
fui a várias reuniões da Firjan [ Federação das Indústrias do Estado do Rio de
Janeiro] e da prefeitura e havia um clamor muito grande em relação à imprensa do
Rio, a imprensa dita nacional, de outros estados. Há televisões que focaram
muito que Petrópolis tinha acabado. O pessoal achava que em Petrópolis tinha
água dentro do Museu Imperial, quando nada disso aconteceu. As pessoas trocam
bastante o nome dos lugares. O Vale do Cuiabá, por exemplo. Ninguém sabe direito
onde fica’, criticou Francisco de Orleans e Bragança, diretor do jornal. Para o
diretor, as informações sobre a tragédia, muitas vezes, ficavam truncadas.
Com pouco tempo para checar as notícias em meio à catástrofe, a imprensa
acabou divulgando informações erradas. Entre os equívocos, o caso do cachorro
Caramelo ganhou repercussão. ‘Naquela série de túmulos que foram cavados para as
vítimas da tragédia, tinha um cachorrinho do lado de um desses túmulos, e por
acaso o único que estava coberto, ou seja, o único que tinha alguém enterrado.
Foi publicado em quase todos os sites de notícias do Brasil, sites de notícias
internacionais, que aquele cachorro estaria ali há 3 dias velando a sua antiga
dona que foi vítima no Caleme. Existiu realmente um cachorro que estava velando,
ou estava próximo de onde a sua família de origem havia sido vitimada. Esse
cachorro ficou perambulando pelo bairro do Caleme durante alguns dias. Na
verdade o cachorrinho que estava do lado do túmulo lá no cemitério é o
cachorrinho do coveiro’, explicou Anderson Duarte, do Grupo Diário.
Uma solução simples e criativa salvou a vida de muitos habitantes da cidade
de Areal, a 100 quilômetros do Rio de Janeiro. O prefeito foi informado das
fortes chuvas que atingiram a região na madrugada anterior e percebeu que em
pouco tempo as águas dos rios Preto e Piabanha invadiriam as casas. Em menos de
meia hora, o carro de som usado para os comunicados do dia a dia da prefeitura
começou a percorrer a cidade e alertar os moradores sobre o perigo da inundação.
Não havia chovido em Areal, mas ainda assim a população ribeirinha levou a sério
o aviso e procurou um local seguro. Dos cerca de 12 mil habitantes, nenhum
morreu. No encerramento do programa Dines comentou: ‘A tragédia da região
serrana do Rio nos mostrou que o sistema midiático é essencialmente pluralista,
holista. A sociedade precisa tanto da agilidade e emoção dos pequenos veículos,
capazes de antecipar e prevenir, como precisa das grandes empresas, capazes de
repercutir e movimentar a esfera federal. Esta tragédia, se quisermos, pode nos
levar a uma revalorização da brava pequena imprensa’.