O povo gaúcho está surpreso e apreensivo desde que foi noticiada a compra da TV Guaíba, das rádios Guaíba AM e FM e do jornal Correio do Povo pela Record. De todos esses veículos, talvez os que mais gerem um sentimento de perda sejam a Guaíba AM e o Correio do Povo. A rádio, famosa pala cobertura esportiva ao longo de décadas e importante atuação na Cadeia da Legalidade, é uma instituição gaúcha, assim como o jornal. Contudo, mais difícil do que compreender a venda é aceitar, sem uma certa preocupação, o nome do comprador. Não existe, por parte da maioria dos gaúchos, antipatia ao grupo Record; já em relação à Igreja Universal do Reino de Deus, não se pode dizer o mesmo.
A expansão da Record tem sido gradual e eficaz. Esse novo momento da emissora cinqüentenária teve início quando Sílvio Santos conseguiu vender os 50% que possuía da televisão. A Família Machado de Carvalho, detentora da outra metade, também vendeu sua parte. Naquele momento, ainda não se sabia que o comprador tinha sido Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus.
Campanha contra a Globo
A Record foi fundada em 1953 por Paulo Machado de Carvalho e João Batista do Amaral, tendo como principais concorrentes, na época, a TV Tupi e a TV Paulista. Nos anos 60, os musicais da Record a colocaram em lugar de destaque na história. Nos anos 70, já em crise, João Batista do Amaral vendeu sua parte para o grupo Gerdau. Na família Machado de Carvalho, os herdeiros não se acertavam. Antonio Augusto Amaral de Carvalho, o Tuta, grande mentor dos programas de sucesso da Record, saiu da emissora e comprou dos irmãos a Rádio Panamericana SA, em 1973. Os 50% da Gerdau foram vendidos a Laudelino Seixas, um fazendeiro paulista, que repassou a empresa para o grupo Sílvio Santos em 1976. Sílvio e Paulo Machado não se acertavam muito bem, o que atrapalhou a administração da Record por muito tempo.
Embora comprada pela Universal anos antes, foi a partir de 1995 que a emissora conseguiu sair do ostracismo. Matérias publicadas em jornais e revistas da época apontam que, desde que havia sido comprada pela Igreja do bispo Macedo, nunca, como naquele ano, a Record havia se mostrado tão agressiva. Um dos fatores que motivaram sua ação foi o desagravo da Universal com a Globo. Macedo vinha sendo sistematicamente atacado pela Globo através dos telejornais. A situação piorou quando a emissora carioca colocou no ar a minissérie Decadência, de Dias Gomes, que tinha como trama central a história de um pastor que criou uma seita para tirar dinheiro de pessoas humildes e ingênuas. Edir Macedo acreditava ser um ataque pessoal. Através da igreja e da Record, desencadeou uma campanha contra Roberto Marinho que, em conversa com amigos, teria dito que nos próximos dez anos a Record seria a rede com maior potencial para ameaçar à Globo.
‘Voltada para a família’
Em resposta à Decadência, a Record pensava em realizar uma minissérie, intitulada Chantagem, contando a história de um ‘jornalista medíocre que herda um jornal falido e enriquece com corrupção ao se aliar com militares’. Tratava-se de uma afronta à história de Roberto Marinho.
Em relação à situação da emissora paulista, seu faturamento em 1994 foi de 35 milhões de dólares, enquanto a Globo faturou 1,05 bilhão. A audiência média era de 5 pontos e o programa mais prestigiado era Raul Gil. Tendo financiamento da Universal, a Record começou a comprar outras emissoras, expandindo, assim, sua rede. Para se adaptar aos novos tempos, comprou as instalações e todo equipamento da TV Jovem Pan. Em um encarte promocional de 1995, a Record anunciava:
‘Rede Record, 42 anos. O melhor vai começar agora. Há 42 anos uma nova rede de televisão entrava no ar. Era a primeira emissora da Rede Record. Uma das televisões mais modernas que existiam naquela época. Passados todos esses anos, a Record ainda continua inovando. É por isso que se mudou para novas instalações, com os equipamentos mais modernos do país. Em vários estados, novas emissoras foram adquiridas para fazer parte da Rede. Além de uma nova programação totalmente reformulada, voltada para toda a família.’
Irregularidades e sonegação
Dez anos depois, talvez fazendo jus à profecia de Roberto Marinho, a Record estampou em jornais e revistas o anúncio de que estava a caminho da liderança:
‘A Record foi a emissora com maior crescimento de audiência em 2005, na faixa horária das 18h às 24h, com 44%, enquanto a emissora líder caiu 5% (…). O faturamento da Record cresceu 39,3%, três vezes mais que o da emissora líder. Em 2005, a Record foi a grande vencedora dos prêmios Esso e Embratel de jornalismo (…). A Record investiu em grandes lançamentos e contratou profissionais de destaque, como atores, diretores, escritores e jornalistas (…). A Record está presente em mais de 130 países. Em Portugal, a novela Escrava Isaura é líder de audiência (…). Em 2005, a Record fundou o Instituto Ressoar – Responsabilidade Social no Ar – mostrando que a emissora está preocupada com o bem-estar do povo brasileiro (…). O crescimento da Record está no ar. Mude, assista e comprove.’
Com a expansão da Record começaram vir à tona denúncias de irregularidades na compra da emissora pela Igreja Universal. Em 1989, a empresa não tinha dinheiro para pagar o 13º salário dos funcionários e possuía apenas 3 emissoras. Com a venda efetuada por Sílvio Santos e Paulo Machado de Carvalho, a sorte da emissora iria mudar, porém a Universal não tinha todo o dinheiro necessário para o pagamento. Foi então que, segundo reportagem da revista IstoÉ daquele ano, a igreja procurou Fernando Collor, a quem tinha apoiado nas eleições. Collor pediu que Paulo César Farias tratasse do assunto. Com a ajuda de PC, surgiu um financiamento que passou a ser investigado pela Receita Federal e Banco Central. Em 1996, os investigadores apontaram irregularidades e sonegação. Alheia aos problemas judiciais, a Record já contava com 47 emissoras.
Esperar para ver, ouvir e ler
A partir de 1998, com Eduardo Lafon gerenciando a programação, dando espaço para Ratinho e Ana Maria Braga, pontos no ibope foram conquistados. Daí para frente houve só crescimento. A razão dessa evolução não está centrada apenas no capital injetado, mas na competência administrativa, técnica e artística. Já a influência ideológica explícita da Universal ficou reservada às madrugadas. A influência explícita, por sua vez, não difere das demais emissoras.
No mundo da aparência, onde a verdade é substituída pela verossimilhança, as ideologias têm terreno fértil para florescerem. A sociedade, que se forma pela dinâmica das tensas relações, carrega dentro de si instituições que se responsabilizam por dar continuidade e legitimar essas relações. Caberá ao povo gaúcho, diante de um novo jornal, de uma nova rádio e de uma nova TV, exigir a mesma qualidade e responsabilidade que deveria solicitar aos demais veículos. Talvez por serem empresas tão caras ao Rio Grande, as exigências sejam até maiores. Por enquanto é esperar para ver, ouvir e ler.
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Jornalista, doutor em Comunicação