A liberação ou proibição da venda de armas e munições é a questão formal a ser decidida pelo eleitorado no próximo dia 23. Síntese do debate sobre o desarmamento e a primeira tentativa de envolver diretamente o cidadão no combate à violência que toma conta do país.
Governantes e legisladores vêm falhando há algumas décadas para encontrar uma resposta à súbita agressividade de uma sociedade até então reconhecida como pacífica (ou ‘cordial’ como a viu o poeta Ribeiro Couto). Esta consulta popular, entre outros méritos, escancara sem disfarces a dimensão da delinqüência e do crime. A descordialização da nossa existência.
Não adianta tergiversar, teorizar e disfarçar – estamos diante de um magno desafio que nos remete diretamente ao lema inscrito na bandeira nacional. O menosprezo pela ordem e o desrespeito à lei impedem o progresso, estão na raiz das nossas mazelas e ‘erros’ (na acepção do presidente Lula), do ‘mensalão’ no Congresso à violência das ruas, do inocente caixa 2 ao seqüestro-relâmpago.
Ao contrário das consultas anteriores, mais abstratas e remotas (sobre o tipo de regime político), esta atende a questões concretas e imediatas. Envolve o cotidiano do cidadão-eleitor, seja ele rico ou pobre. Confronta-o com problemas que o Executivo e o Congresso não tiveram a competência e coragem cívica de encarar.
Qualquer que seja o resultado do escrutínio, é preciso ter em mente que a questão da venda de armas e munições não é a única no capítulo da criminalidade nem a mais importante – a maioridade penal talvez tenha precedência sobre ela.
Exemplo autoritário
Tanto o ‘não’ como o ‘sim’ não esgotarão a questão das armas e exigirão de governantes e congressistas uma série de medidas complementares e imediatas. Exigirão, sobretudo, que os diversos poderes da República sejam confrontados com a gravidade de uma situação que, pela primeira vez em nossa história, fez com que se delegasse ao povo a decisão soberana de decidir o que mais lhe convém. Sem intermediários.
A importância deste referendo não está apenas no teor dos seus resultados; está nele em si, na sua capacidade de impor-se como forma regular de participação e manifestação da vontade popular. É tola e fruto da desinformação a alegação de que plebiscitos e referendos enfraquecem o sistema representativo. Ao contrário, só o reforçam. A União Européia adota as consultas populares em questões transcendentais, a Suíça usa-as regularmente. Na Califórnia, no próximo dia 8 de novembro os eleitores serão consultados sobre quatro proposições no tocante ao orçamento estadual de alta complexidade e relevância.
Referendos, como quaisquer outras formas de manifestação, só não valem em regimes autoritários – exemplo clássico foi o de abril de 1938 em que os alemães e austríacos dominados pelo nazi-fascismo aprovaram a anexação da Áustria por 99,75% dos votos.
Apatia e ceticismo
Com a degradação do sistema político e a pulverização dos programas partidários, a instituição de consultas regulares ao eleitorado poderá renovar a credibilidade e a confiabilidade do sistema democrático. Além de nomes e de siglas (hoje quase desprovidas de qualquer significado) e além das subjetividades embutidas pelo marketing nas campanhas para o Executivo e Legislativo, o eleitorado terá a oportunidade de discutir idéias e alternativas objetivas.
A institucionalização dos referendos poderá tirar o eleitor da apatia e do ceticismo em que se encontra com relação à classe política. Será um bom investimento para a revitalização da vida pública, injeção de ânimo num ambiente político desmobilizado e descrente.
O ‘sim’ e o ‘não’ são formas diferentes de dizer a mesma coisa: a sociedade cansou de esperar, quer participar e, de forma responsável, cuidar da sua segurança.