Uma das tarefas mais difíceis na gestão pública é a da comunicação. Não é nada trivial pensar que governos precisam comunicar resultados e processos de gestão pública para a sociedade, de forma tanto a prestar contas de suas ações, quanto poder cultivar algum tipo de laço com a sociedade. Em outro patamar, a tarefa da comunicação também implica em fazer que governos absorvam os interesses da sociedade, de maneira a constituir uma proximidade com a vida social e fazer com que políticas públicas possam fazer aderir a vontade geral com as decisões de governo. Misture a isso tudo uma imprensa livre, que governos não controlam, e tarefa da comunicação governamental se torna cada vez mais difícil.
Democracias pressupõem que cidadãos são iguais e que eles podem comunicar livremente os seus interesses, perspectivas e opiniões ao governo, constituindo uma razão para que governantes eleitos estabeleçam decisão em direções diversas. Qualquer governo democrático deve formular uma estratégia de comunicação que o permita fazer aderir estes interesses, perspectivas e opiniões às suas decisões e ações na vida pública. A comunicação tem a tarefa, por conseguinte, de criar o comum, de maneira que ela é central para a vida democrática.
Mas é importante frisar que toda a construção da comunicação na vida moderna parte de uma premissa de racionalidade. Falamos aqui em interesses, perspectivas e opiniões. Estas três ordens de questões implicam que a comunicação é racional e que a expressão livre deles deve ser realizada para comunicar aos governos o componente de vontade por parte dos cidadãos e que, no final, seja produzido consentimento. O consentimento produzido cria entendimento, estabilidade e um estofo para que governos possam realizar suas ações na vida pública. Além disso, a comunicação política assim constituída assegura a publicidade de decisões e ações governamentais na sociedade. Em teoria, assim que deveria funcionar. Mas a realidade é mais dura do que isso.
Comunicação é central para a vida democrática
Tem sido uma tendência das democracias rever esse processo de racionalização. Os sentimentos, as emoções e os desejos têm constituído o motivo de construção da ação política, dispensando qualquer possibilidade de comunicação racional. Este componente do desejo e das emoções têm se constituído em uma razão para o agir político, o qual se apresenta na esfera pública de modo ativo e conflituoso. O desejo é o horizonte mais imediato e atravessa ação política dos atores. As emoções e os sentimentos compõem o cimento deste novo tipo de racionalidade, fazendo com que a ação política se constitua no grito e na expressão mais rígida e conflituosa na esfera pública.
Trazendo esta questão para o Brasil, podemos fazer toda uma construção a respeito da ação política e suas consequências para a democracia. Primeiro, nosso componente de formação. Se Sérgio Buarque de Hollanda estava correto, o brasileiro é um homem cordial. Cordialidade não quer dizer uma posição de respeito e simpatia do brasileiro. A cordialidade à qual Sérgio Buarque de Hollanda se referia é para o componente dos sentimentos e dos desejos. O brasileiro age mais com o coração do que com a cabeça, sendo esta cordialidade um traço de nossa formação histórica, desprovida da racionalidade requerida pela vida moderna. Agindo pelos sentimentos e pelos desejos, governos se apresentam como uma estrutura patriarcal, sendo eles o grande pai que a tudo deve coordenar e reprimir. A democracia, em nosso aspecto de formação, seria um grande mal entendido, de acordo com o pensador.
Segundo, o modo como os governos brasileiros constroem sua imagem pública e atuam na esfera pública. Eleições suscitam mais estas emoções, apresentando-se à sociedade no seio dessa estrutura patriarcal. Desde Vargas, o pai dos pobres, passando por FHC, pai do Plano Real, a Dilma, a mãe bondosa. Isto vale também para as oposições. As eleições brasileiras são fiéis em construir emoções e sentimentos. Os governantes brasileiros se apresentam como aqueles que realizarão os desejos mais singelos da sociedade brasileira, em toda a sua complexidade, constituindo essa razão patriarcal que nos amarra. Como pais ou mães zelosos, a comunicação política nas eleições cria esta afeição patriarcal.
Terceiro, a frustração. Em um horizonte marcado pelo desejo e pelas emoções, as expectativas com os patriarcas crescem de forma exponencial. Horizontes frouxos de futuro são traçados e a bonança é sempre prometida. Na razão das expectativas, qualquer mudança de rota cria dificuldades para o patriarcalismo e imediatamente a frustração surge. Num contexto de cidadãos frustrados, as emoções suscitam a raiva e a intolerância. Como filhos castigados, a raiva e o grito são os instrumentos da ação política e explica o contexto de tanta instabilidade e conflito. Então caímos numa armadilha. Governos, de forma geral, têm sua comunicação vetada. Qualquer coisa que diga suscitará mais raiva e intolerância.
Para o Brasil não é fácil constituir uma estratégia de comunicação política. Balizar as ações políticas e a comunicação na base dos desejos e sentimentos sempre resulta, mais cedo ou mais tarde, em instabilidade. Criar uma comunicação mais racional corre o risco de sequer ser ouvida por uma sociedade afetuosa e cordial. Enquanto isso, num contexto de instabilidade e crise, o grito se torna a única arma disponível. Mas com o enorme risco de vetar qualquer consenso e criar paralisia. O que não pode é um ministro de Estado demitir outro e depois ter que desmentir, em público, a sua trapalhada. Pensar a estratégia de comunicação não se faz apenas com robôs. É preciso racionalidade para que o grito não se eleve mais e que possamos retorna para a democracia em paz.
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Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público (Crip) e colunista convidado do Valor