Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ética subliminar do escravo

Quem assiste aos programas de TV sobre o referendo tem a sensação de que a reforma política, que pretendia confinar as campanhas políticas em estúdios, está quase valendo para os que estão do lado do ‘não’, enquanto a publicidade do ‘sim’ é toda cheia de música, artistas globais e, pela empolgação artificial, até parece propaganda do PT. O certo é que a maioria do que é dito e visto está centrada numa intenção velada de fazer com que todos os eleitores brasileiros digam ‘sim’ a um projeto encarnado pela maioria absoluta dos que compõem o governo Lula. Ora, isso pode ter subliminarmente muito mais significados implícitos que a mera questão das armas de fogo e munição. Um governo que conquista um ‘sim’ da maioria, num momento de crise, tem muito a ganhar com pré-disposições positivas a seu favor, muitas vezes inconscientes, que dizem ‘sim’ a uma questão sobre armas, e ao mesmo tempo dizem ‘sim’ a algo sancionado pelo presidente. Talvez isso explique o investimento emocional depositado na campanha dos que aprovam a proibição, o que acaba sendo, também, um voto do tipo ‘Lula-sim’.

Mas não é somente esse modelo de mensagem subliminar que marca presença no referendo. A campanha do ‘sim’ está tentando induzir o eleitor a pressupor que os que optarem pelo ‘não’ estarão necessariamente concordando com um ‘armamento indiscriminado da sociedade’, o que é uma inverdade. Ora, quem não concorda com a proibição não está necessariamente apregoando o uso de armas. É possível alguém poder ser contra a proibição da venda legal de armas, mas ao mesmo tempo ser a favor do desarmamento consciente, racional, espontâneo e verdadeiro da população. Aliás, isso pode até significar maior propriedade com os objetivos de que trata o referendo, sem a hipocrisia velada daqueles que afirmam, emocionalmente, que o ‘sim’ vai desarmar toda a nação.

Uma outra questão falaciosa presente do lado do ‘sim’ é a ética do escravo, da qual fala o filósofo Nietzsche. Trata-se de uma propaganda onde exageradas emoções predispõem as pessoas a uma passividade própria de serviçal. É quando a virtude passa a ser tudo o que traz em si elementos que tendem a tornar as pessoas meros instrumentos de um aceite genérico. Tudo isso desde que a idéia propagada venha indexada a sinônimos como ‘paz’, ‘submissão’, ‘aceitação’, numa embalagem da ‘quietude’ e do nada esperar, nada querer, considerando o ‘pouco ganho’ como bom e resultando da vontade de Deus. É o caso da máxima ‘antes pouco do que nada’, que tem muito a ver com a ética do escravo. É isso que faz alguém deixar de agir quando precisa agir, de fazer greve quando é preciso, de dispensar direitos quando a garantia implica luta: tudo resulta em passividade, em nome do ‘eu quero é paz!’.

‘Devagarzinho, e pela direita’

Aliás, falar em docilidade é referendar submissão, fragilidade, servilismo, renúncia do amor a si mesmo e do que pode compor a proteção, em nome da paz. É lícito dizer que a palavra virtude vem do latim ‘viril’, e significa poder, força, capacidade etc. Logo, querer o ‘sim’ pode ser paradoxal em muitos casos, bem como estar parcialmente carregado de elementos de fragilidade, servilismo, docilidade, próprios de classes subjugadas que despotencializam o querer e a potência do realizar. É claro que isso não é genérico no ‘sim’, mas enlata a maioria do sensacionalismo presente na publicidade dos que defendem a proibição. Por isso é possível dizer que há muito mais emoção utópica (de paz universal), sensacionalismo artístico e ética de escravo na campanha do ‘sim’ do que elementos racionais.

É claro que, numa disputa de argumentos sobre armas, o que vale como base para a maioria quantitativa (e não qualitativa) são os dados da realidade. Mas é útil lembrar que dados não são a realidade, mas sim um possível retrato dela, que por conveniência pode ser apresentado sob um determinado ângulo, em que os demais ficam obscurecidos.

Por que não são apresentados os dados daqueles que têm armas legalmente adquiridas e que nada de ruim lhes tem acontecido? É possível até imaginar o resultado… veja que, neste caso, a arma é infinitamente menos prejudicial para quem a tem do que uma motocicleta para aqueles que a têm ou dela fazem uso – cujas mortes e seqüelas em acidentes são consideradas casos de saúde pública, e nunca foram alvos de qualquer iniciativa por parte dos parlamentares. Mas quem sabe a solução hipócrita e enganosa seja a mesma, tanto para motos quanto para armas: no primeiro caso é só ‘andar devagarzinho, e pela direita’, no segundo, é só votar no ‘sim’.