As medidas que o governo vem tomando para ampliar o acesso à internet no país – incluindo o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL) – têm preocupado organizações que representam os principais interessados na expansão e melhoria do serviço:os cidadãos. Apesar de reconhecer avanços no trabalho capitaneado pelo Governo Federal, há um entendimento de que o papel do Estado vem se enfraquecendo e que a responsabilidade pela efetivação das metas previstas está sendo deixada nas mãos do setor privado.
O receio de organizações de defesa do consumidor, como o Idec e a Proteste, e de grupos como o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, vem da análise da realidade brasileira, em que os serviços de telefonia são todos ofertados pelo setor privado desde 1997 e ainda temos problemas como a pouca penetração do telefone fixo (42% dos domicílios), da internet (27,4% dos lares com internet em 2009) e serviços de má qualidade, com alto índice de reclamações. Mesmo o avanço do celular (202,9 milhões de linhas) não serve de modelo, já que 82% dos usuários usam o pré-pago e gastam em média apenas R$ 5 com o serviço. Ou seja, mais recebem do que efetuam ligações.
Para essas organizações – e também outros grupos -, portanto, é fundamental que o governo proponha e execute políticas públicas que aumentem o poder regulador e fiscalizador do Estado na área. Uma dessas políticas foi reiterada pelo Intervozes e pelo Idec, em seminário realizado pelo órgão de defesa do consumidor, nesta terça-feira (29), em Brasília: a publicação de um decreto pelo Governo Federal que transforme a banda larga em um serviço a ser prestado em regime público.
Segundo a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), serviços em regime público são aqueles cuja existência, universalização e continuidade a própria União compromete-se a assegurar. Eles também se submetem a princípios da modicidade tarifária. A mesma lei diz que os serviços considerados essenciais não podem ser deixados apenas para entes privados. Atualmente, apenas o telefone fixo é classificado como público, embora seja operado por empresas privadas.
Embora o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, tenha afirmado que o tema está em discussão no governo, na prática, nenhum membro do governo na área defende essa alternativa. Para as organizações civis, isso significa que o Executivo tem abandonado a ideia e consequemente a possibilidade dessa medida criar condições para universalização do serviço. O que o PNBL propõe é a massificação da banda larga (triplicar os domicílios com internet até 2014).
No seminário, os representantes do governo voltaram a dizer que a criação de um decreto com a mudança de regime do serviço não é garantia de universalização. Para o presidente de Telebrás, Rogério Santanna, o mais importante é criar competição no setor, já que 95% da banda larga é ofertada por cinco empresas no país. Além disso, Santanna acredita que uma ação de tal porte atrasaria a implantação do PNBL.
Mas o argumento que parece central nessa discussão – e que pouco havia sido usado pelo governo até então – veio do secretário-executivo do Ministério das Comunicações (Minicom), Cezar Alvarez. Segundo ele, poucas ou nenhuma empresa se interessaria em prestar o serviço em regime público.
O que aconteceria se o regime do serviço fosse alterado era que novas licitações para as empresas teriam de ser abertas. Só que elas teriam que cumprir um série de obrigações que as atuais operadoras não precisam. ‘Que empresa vai querer? Vai dar licitação vazia. É ilusão, nos termos da atual LGT, aparecer provedor nessas condicionantes’, argumentou Alvarez, defendendo que outros instrumentos podem ser utilizados para garantir os interesses do cidadão.
Outras críticas
A advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Veridiana Alimonti, reconheceu os avanços propostos no PNBL, mas também destacou o que, para ela, seriam insuficiências. Uma delas seria a velocidade da internet que o governo quer oferecer a preços mais baixos, de 512Kbps a 1Mega. ‘Pela UIT (União Internacional de Telecomunicações) nem estamos falando de banda larga’, comentou.
Outra crítica do Idec é relativa à indefinição da atuação da Telebrás na última milha (o trecho que vai até a casa do usuário). Tudo leva a crer que o empresa pública não vai prestar o serviço ao consumidor final. O decreto 7.175/10 prevê, no Artigo 4º, inciso IV, esta possibilidade ‘apenas e tão somente em localidades onde inexista oferta adequada’ dos serviços, o que é considerado pelo Instituto uma restrição da atuação da Telebrás.
Por fim, Veridiana também avalia que a sociedade civil precisa de mais espaço na construção de políticas públicas para a área. Ela reivindica que o Fórum Brasil Conectado, onde entidades civis discutem o PNBL, não seja apenas mais um espaço de debate. Ele ainda não se reuniu este ano.
Recursos
Além do PNBL, que possui ações em seis eixos (regulação, normas de infraestrutura, incentivos fiscais, política produtiva e tecnológica, Telebrás e conteúdos e aplicações), há outras definições em curso que afetam diretamente a política de expansão de banda larga no país. Uma delas está para ser tomada na votação do Projeto de Lei 1.481/07, que modifica o uso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). Ele está para entrar na pauta da Câmara a qualquer momento.
A proposta do projeto, que conta com apoio do governo, é possibilitar o uso dos recursos do Fust (cerca de R$ 1 bilhão por ano) pelas teles. Principalmente para que levem a banda larga para as escolas rurais (ver ‘Governo pretende modificar Fust sob consenso do Congresso‘). E se antes o governo acenava para que parte do Fundo fosse usado também pela Telebrás, agora isso já não está mais garantido. ‘Este é mais um dos cenários. Tem ‘n’ sujeitos elegíveis’, disse Cezar Alvarez.
Para João Brant, integrante do Intervozes, embora pareça positivo, esse projeto cria uma distorção no modelo, ao destinar verbas públicas para as empresas privadas fazerem seus investimentos e lucrar com isso. ‘É uma transferência de patrimônio’, criticou Brant. Na visão dele, se a banda larga fosse prestada em regime público não haveria necessidade do projeto, já que a lei original do Fust destina seus recursos apenas a serviços deste tipo.
Universalização
No bojo das negociações do Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU III), a Telebrás também perdeu a oportunidade de ela mesma levar redes para as áreas rurais do país, por meio da utilização da faixa de 450Mhz, ideal para este tipo de serviço. Como parte do acordo, o governo pretende entregar a faixa para as teles, indo de encontro ao que pretendia a própria Telebrás, que chegou a formalizar o pedido ao Minicom. Mais um ponto para as teles.
Ainda no PGMU III, que tem de ser fechado até o dia 2 de maio, o governo perdeu outra disputa com as teles. O entendimento inicial do Minicom era que nele também poderiam constar metas de ampliação da rede de internet (backhaul) pelas teles. Não foi o que aconteceu. As empresas chegaram a entrar na Justiça contra o governo e, no fim das contas, ganharam a batalha.
A advogada e consultora da Proteste, Flávia Lefèvre, concorda que as redes de internet não devem entrar no PGMU III porque elas realmente não podem ser vinculadas aos contratos de telefonia fixa. ‘Não são essenciais nem necessárias para a prestação do serviço objeto dos contratos de concessão, gerando por isso custos injustificáveis a serem repassados para tarifa (art. 81, da Lei Geral de Telecomunicações – LGT) tornando a telefonia fixa inacessível para os cidadãos de baixa renda, violando os princípios da modicidade tarifária e universalização dos serviços públicos’, explica Flávia, em texto publicado em seu blog.
Ao mesmo tempo, ela acredita que o governo se equivocou ao anunciar que, em troca da desobrigação das metas de backhaul no Plano, vai esperar que as teles façam propostas para prestação da banda larga em melhores condições de velocidade e preço. A advogada classificou como ingênua a posição do governo.
‘Se o Governo pretende de fato levar adiante com algum sucesso o PNBL, vai ter de fazer a lição sozinho: fortalecer a Telebrás, criando uma subsidiária específica para operar as redes de troncos públicas, apropriadas indevidamente pelas concessionárias que as exploram em descompasso com o interesse público e regulamentar os serviços de comunicação de dados para então licitá-los, respeitando os princípios da moralidade, eficiência e da impessoalidade, a fim de estabelecer condições equilibradas para todos os agentes de mercado que se interessarem (não faltarão interessados, tenho certeza) pela sua exploração comercial, de acordo com o art. 37 da Constituição Federal’, arremata a advogada, em seu mesmo texto.