Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A grande mídia e a 2ª Confecom

Concluída a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que aconteceu em Brasília, de 14 a 17 de dezembro, com a participação de mais de 1.600 delegados, democraticamente escolhidos em conferências estaduais realizadas nas 27 unidades da federação, representando movimentos sociais, parte dos empresários de comunicação e telecomunicações e o governo – independentemente da avaliação de suas deliberações – é hora de tentar compreender as razões que levaram os principais grupos empresariais brasileiros de mídia a boicotarem o evento.


O anúncio público da retirada das seis entidades empresariais da Comissão Organizadora da 1ª Confecom se deu após reunião realizada entre elas e os ministros das Comunicações, Hélio Costa, da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins e da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Dulci, no dia 13 de agosto. Os membros da Comissão haviam sido designados em 25 de maio e a primeira reunião se realizado havia pouco mais de dois meses. Estava-se, portanto, apenas no início de um longo processo.


Uma nota divulgada logo após a retirada e assinada conjuntamente pela Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão; Abranet – Associação Brasileira de Internet; ABTA – Associação Brasileira de TV por Assinatura; Adjori Brasil – Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil; ANER – Associação Nacional dos Editores de Revistas e ANJ – Associação Nacional de Jornais afirmava, dentre outros pontos, o seguinte:




‘Por definição, as entidades empresariais têm como premissa a defesa dos preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade.


‘Observa-se, no entanto, que a perseverante adesão a estes princípios foi entendida por outros interlocutores da Comissão Organizadora como um obstáculo a confecção do regimento interno e do documento-base de convocação das conferências estaduais, que precedem a nacional.


‘Deste modo, como as entidades signatárias não têm interesse algum em impedir sua livre realização, decidiram se desligar da Comissão Organizadora Nacional, a partir desta data.’


É importante registrar que permaneceram na Comissão Organizadora duas entidades empresariais: a ABRA – Associação Brasileira de Radiodifusores, uma dissidência da Abert fundada pelas redes Bandeirantes e Rede TV!, em maio de 2005; e a Telebrasil – Associação Brasileira de Telecomunicações, criada em 1974, que tem como missão ‘congregar os setores oficial e privado das telecomunicações brasileiras visando a defesa de seus interesses e o seu desenvolvimento’.


Controle social e censura


A realização da Confecom – a última conferência nacional a ser convocada de todos os setores contemplados pelo ‘Título VIII – Da Ordem Social’ na Constituição de 1988 – sempre encontrou enormes resistências dos grandes grupos de mídia. Não seria novidade, portanto, que na medida em que avançassem as difíceis e complexas negociações, e antes mesmo do desligamento das seis entidades empresariais, surgissem também os ‘bordões de combate’ à sua concretização, reiterados na narrativa jornalística (ver, neste Observatório, ‘Controle Social da Mídia – Por que não discutir o assunto?‘).


O que foi inicialmente identificado na nota dos empresários como uma divergência interna em torno dos ‘preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade’ na Comissão Organizadora, foi aos poucos se transformando em insinuação permanente de que até mesmo a simples realização da conferência se constituía em grave ameaça à liberdade de expressão. Seu foco, dizia a grande mídia nas raríssimas ocasiões em que o tema foi pautado, era o ameaçador controle social da mídia, isto é, o retorno aos tempos do autoritarismo através da censura oficial praticada pelo Estado.


No dia de abertura da 1ª Confecom, 14 de dezembro, o Jornal Nacional da Rede Globo, que até então se silenciara sobre sua realização, deu uma nota que exemplifica a postura da grande mídia: questiona a representatividade do evento e insinua que seu foco seria o controle social da mídia, equacionado sem mais com a censura que cerceia a liberdade de expressão e o direito à informação. Vale conferir:




‘Fátima Bernardes: Começou hoje, em Brasília, a primeira Conferência Nacional de Comunicação, que pretende debater propostas sobre a produção e distribuição de informações jornalísticas e culturais no país. Entre as propostas estão o controle social da mídia por meio de conselhos de comunicação e uma nova lei de imprensa. O fórum foi convocado pelo Governo Federal e conta com 1.684 delegados, 40% vindos da sociedade civil, 40% do empresariado e 20% do poder público.


‘William Bonner: Mas a representatividade da conferência ficou comprometida sem a participação dos principais veículos de comunicação do Brasil. Há quatro meses, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a Associação Brasileira de Internet, a Associação Brasileira de TV por Assinatura, a Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil, a Associação Nacional dos Editores de Revistas e a Associação Nacional de Jornais divulgaram uma nota conjunta em que expõem os motivos de terem decidido não participar da conferência. Todos consideraram as propostas de estabelecer um controle social da mídia uma forma de censurar os órgãos de imprensa, cerceando a liberdade de expressão, o direito à informação e a livre iniciativa, todos previstos na Constituição. Os organizadores negam que a intenção seja cercear direitos. A conferência foi aberta com a participação do presidente Lula.’


No dia do encerramento da 1ª Confecom (17/12) o Jornal Nacional praticamente repetiu a nota anterior incluindo agora um curioso comentário sobre as propostas aprovadas – como ‘recriar’ uma lei de imprensa extinta pelo Supremo Tribunal Federal? – e a ‘reiteração’ da posição das seis entidades. Confira abaixo:




‘Fátima Bernardes: Terminou hoje, em Brasília, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que aprovou 672 propostas sobre a produção e a distribuição de informações jornalísticas e culturais no país. O fórum foi convocado pelo governo federal e, durante quatro dias, reuniu 1.684 delegados, 40% vindos da sociedade civil, 40% do empresariado e 20% do poder público. Entre as propostas aprovadas está a criação de um observatório nacional de mídia e direitos humanos para monitorar o conteúdo das publicações e produções brasileiras. Os delegados também aprovaram a criação de dois conselhos para fiscalizar as atividades jornalísticas e a recriação de uma lei de imprensa, que recentemente foi extinta pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que a considerou inconstitucional. Todas as sugestões servirão para elaborar propostas de lei.


‘William Bonner: A representatividade da conferência ficou comprometida sem a participação dos principais veículos de comunicação do Brasil. Há quatro meses, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a Associação Brasileira de Internet, a Associação Brasileira de TV por Assinatura, a Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil, a Associação Nacional dos Editores de Revistas e a Associação Nacional de Jornais divulgaram uma nota conjunta em que expõem os motivos de terem decidido não participar dessa conferência. Todos consideraram que as propostas que estavam esboçadas na ocasião e que acabaram mesmo sendo aprovadas estabelecem uma forma de censurar os órgãos de imprensa, cerceando a liberdade de expressão, o direito à informação e à livre iniciativa, que são todos previstos na Constituição. Essa posição foi reiterada hoje depois da aprovação das propostas.’


A reclamação do presidente e a resposta dos empresários


Na abertura da 1ª Confecom, o presidente Lula fez uma queixa pública em relação à ausência das entidades empresarias e manifestou desconhecer as razões que teriam levado a tal comportamento. Disse ele:




‘Lamento que alguns atores da área da comunicação tenham preferido se ausentar desta Conferência, temendo sabe-se lá o quê. Perderam uma ótima oportunidade para conversar, defender suas idéias, lançar pontes e derrubar muros. Eu, que sou um homem de conversa e de diálogo, volto a dizer: lamento. Mas cada um é dono de suas decisões e sabe onde lhe aperta o calo. Bola pra frente, e vamos tocar nossa Conferência.’


Dois dias depois, matéria publicada no jornal O Estado de S.Paulo ouviu representantes de duas das seis associações que se retiraram da Confecom sobre a reclamação do presidente e sobre quais teriam sido as razões da retirada. Eles insistem em que o problema foi a ameaça do controle social da mídia.


Roberto Muylaert, presidente da ANER, afirmou:




‘Não temos nada contra os movimentos sociais, mas os representantes das empresas ficaram em minoria, em grande desvantagem.


‘Um controle [social da mídia] pressupõe uma mudança da Constituição, que atualmente assegura a livre iniciativa.’


Já Miguel Ângelo Gobbi, presidente da Adjori-Brasil disse:




‘Queríamos ter voz ativa, mas éramos voto vencido’ (…) [participamos] ‘de quase 45 horas de reuniões sem conseguir avançar.


‘Controle social da mídia é algo que arrepia todo mundo.’


Lições para o futuro


No nosso país, não há tradição de debate democrático entre os atores dominantes (governo e grupos privados de mídia) e a sociedade civil na definição das políticas públicas do setor de comunicações. Em outras ocasiões, tenho chamado de ‘não-atores’ os movimentos sociais que lutam historicamente pela democratização da comunicação.


O processo constituinte de 1987-88 talvez tenha sido o exemplo mais acabado de como os atores dominantes conseguem articular e fazer prevalecer seus interesses ignorando as reivindicações da sociedade civil – ou fazendo concessões aparentes que se transformam em letra morta, simplesmente porque não regulamentadas pelo Legislativo.


A incapacidade crônica de se avançar em relação, por exemplo, à regulação das rádios e televisões comunitárias e a lamentável situação do Conselho de Comunicação Social falam por si só (ver ‘CCS: Três anos de ilegalidade‘).


Por tudo isso, a 1ª Confecom é a realização de uma reivindicação histórica dos movimentos sociais e constitui um avanço democrático com o qual os grupos privados de mídia, atores historicamente dominantes no setor, não souberam lidar. Apesar de interessar a todos os atores um marco regulatório atualizado para as comunicações, os empresários privados parecem acreditar que as políticas públicas continuarão sendo indefinidamente estabelecidas com a exclusão da cidadania. Não só porque, de outra forma, seus interesses correriam riscos, mas também porque não estão acostumados a negociar com a sociedade civil, a levar em conta o interesse público que se manifesta de forma organizada e, sobretudo, democrática.


Não é difícil compreender, portanto, por que, mesmo afirmando que sua retirada da Comissão Organizadora ‘não (impediria) que os associados decidam, individualmente, qual será sua forma de participação – uma demonstração cabal de nosso ânimo agregador e construtivo em relação a este evento’, a grande mídia tenha sistematicamente insinuado – apesar de saber, por óbvio, que as conferências são fóruns propositivos e não deliberativos – que a ameaça da 1ª Confecom era a restauração da censura através de um controle social da mídia definido a priori como autoritário.


Está com razão o presidente Lula ao conclamar na abertura da 1ª. Confecom:




‘O país precisa travar um debate franco e aberto sobre a comunicação social. Não será enfiando a cabeça na areia, como avestruz, que enfrentaremos o problema. Não será tampouco fechando os olhos para o futuro ou pretendendo congelar o passado que lidaremos corretamente com a nova situação.


‘Isso vale para todos nós: governo, empresas de comunicação e de telecomunicações, trabalhadores, movimentos sociais, leitores, ouvintes, telespectadores e internautas.


‘É chegada a hora de uma nova pactuação na área da comunicação social que resgate os acertos do passado, mas também corrija seus erros, e seja capaz de responder às enormes interrogações e às extraordinárias oportunidades que temos diante de nós.’


Espera-se que as seis entidades empresariais que se retiraram da Comissão Organizadora da 1ª Confecom, sempre tão zelosas na defesa da liberdade de expressão e da democracia, revejam suas posições e participem ativamente da organização e dos debates da 2ª Confecom.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)