Passados 45 anos de sua promulgação, o Código Brasileiro de Telecomunicações ainda desperta polêmica. Nas últimas semanas, que marcaram o aniversário do CBT, a importância atual do marco foi debatida, neste Observatório, por pelo menos dois artigos – um de Venício A. de Lima (‘45 anos do CBT: Sem festas, nada a celebrar‘) e outro de autoria de um dos autores deste texto (‘De volta para o futuro, 45 anos depois‘). É curioso que, em manifestação recente, Walter Vieira Ceneviva (‘Marco regulatório contra o arbítrio‘) opte por tentar recontar o passado com uma ótica do presente, na crítica que faz ao trabalho ‘Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações‘, de nossa autoria.
O artigo que Ceneviva critica foi elaborado originalmente como texto acadêmico, publicado na revista eletrônica Eptic, tal como mencionado por este Observatório, e tem as características naturais a este tipo de trabalho: um espaço pré-definido; um objetivo específico e delimitação em função do tema analisado. Nesse caso, o foco era o processo legislativo que levou à promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações, restringida a análise, portanto, àquele período histórico. Beira a obviedade afirmar que esse é o cenário temporal a ser levado em consideração na análise de um episódio ocorrido em 1962.
Em seu artigo, Ceneviva trata de três momentos históricos distintos, abordando-os com o mesmo olhar que hoje dirige à radiodifusão. O primeiro momento citado por Ceneviva é a ditadura capitaneada por Getúlio Vargas. O autor cita o exemplo de uma emissora de rádio, cuja concessão não foi renovada pelo governante em 1945. Conforme parecer do então consultor-geral da República, Themistocles Cavalcanti, o presidente da República tinha competência para assim proceder, dados os documentos legais existentes (decretos e contrato de concessão). Com base nesse parecer, Ceneviva manifesta todo o seu espanto e conclui:
‘Ninguém ganha com o arbítrio do presidente da República, salvo o próprio presidente. Limitar o poder do presidente da República e, portanto, derrubar os vetos de João Goulart, era uma missão de enorme importância, não apenas para os empresários de radiodifusão. Limitar o arbítrio dizia (e diz!) respeito ao interesse do Brasil, aí incluídos os empresários, a classe política e a sociedade brasileira’.
Ou seja: tomando o exemplo da não renovação de uma concessão por um ditador, o autor presume que era preciso brecar qualquer possível ação de um presidente da República escolhido democraticamente (eleito vice-presidente de Juscelino Kubitschek e reeleito para o mesmo posto no governo de Jânio Quadros, a quem substituiu na Presidência). Mais que isso: insinua que os vetos de João Goulart ampliavam as possibilidades de ‘arbítrio’, prática a ser coibida também no presente. Assim, o ‘Mal’ das histórias infantis torna-se o presidente da República e o ‘Bem’, os empresários, a classe política e a sociedade brasileira, de acordo com o relato de Ceneviva – curiosamente fazendo uso da oposição de atores que criticara em seu próprio artigo.
Mote da união
Não menos curiosa é a generalização dos vetos de João Goulart, feita pelo autor. Conforme claramente mencionado em nosso artigo que originou o debate, os citados vetos podem ser agrupados da seguinte forma:
Vetos de João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT)
Número de Vetos | % do Total | |
Fortalecimento do Presidente da República | 13 | 25 |
Competências de ministérios e outros órgãos | 16 | 30,77 |
Conflito com outros marcos legais | 8 | 15,38 |
Imprecisão do texto do CBT | 11 | 21,15 |
Outras | 4 | 7,70 |
Total | 52 | 100% |
FONTE: Elaboração dos autores
Assim, três quartos dos vetos não se referiam ao fortalecimento do presidente da República – o suposto ‘arbítrio’ criticado por Ceneviva. Eis o exemplo de um deles: a tentativa de impedir a renovação automática das concessões, mesmo que o Poder Público não se manifestasse sobre o pleito em até 120 dias. Em tempos de mudança da administração pública para Brasília e transferência de competências, de pessoal (em número insuficiente) e de material (disperso e confuso) da Comissão Técnica de Rádio (CTR) para o Contel, a probabilidade de atraso naquele procedimento era gigantesca.
Em sua transposição do cenário político de 1962 para o presente, Ceneviva chama atenção para a falta de coesão interna entre os grupos que denomina de ‘Bem’ e ‘Mal’. Não há dúvidas de que, hoje, o fortalecimento de grupos políticos e a complexidade do cenário empresarial resultam na participação de um maior número de atores, com distintas demandas, no debate público. É errado afirmar, porém, que essa era a realidade de 1962. No processo de aprovação do CBT, parlamentares manifestaram-se em votação nominal. Se a rejeição explícita de 52 vetos de um presidente da República a um (à época) projeto de lei não demonstra a convergência de interesses, nada mais a demonstra.
Tampouco o grupo dos empresários, naquele momento, demonstrava os interesses divergentes aos quais se refere Ceneviva. Como o próprio site da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) afirma em seu histórico, João Calmon, futuro presidente da entidade, conseguiu reunir, às vésperas da apreciação dos vetos, 213 representantes de empresas do setor, em Brasília, em encontro classificado como ‘histórico’. Note-se que, à época, ainda não existiam as grandes redes; as empresas do setor, em geral, eram menores; e multiplicavam-se as dificuldades de transporte até a nova capital federal.
Por si só, a reunião refletia inequívoca demonstração de força e defesa de interesses convergentes. Esses interesses eram o mote para a união, inclusive, dos empresários de radiodifusão com os atuantes no setor de telefonia, de acordo com o relato de Quandt de Oliveira (um dos únicos sobre o episódio), ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Contel e da Telebrás, em seu livro Renascem as Telecomunicações (Editel, 1992, p. 62-63):
‘A união de esforços dos homens de telecomunicações com os de radiodifusão foi bastante proveitosa e seus argumentos junto aos congressistas atingiram o objetivo desejado. Chamou-lhes a atenção e despertou-lhes o interesse para o problema global das telecomunicações, não ficando o projeto apenas restrito à radiodifusão, como anteriormente ocorrera (…). Os vetos provocaram forte reação, tanto de parte do pessoal interessado em telecomunicações, como, principalmente, em radiodifusão. Houve uma mobilização total de todos os radiodifusores, grandes e pequenos, que se deslocaram em massa para Brasília, a fim de defender o texto tão longamente discutido antes de ser aprovado’.
Parâmetros objetivos
Em suma: houve, sim, uma defesa coletiva de interesses – por óbvio – convergentes. Se havia, em 1962, divergências entre os empresários, essas eram pequenas, mínimas. Por outro lado, a oposição a esses interesses convergentes vinha de poucos atores, principalmente do presidente da República. A sociedade civil organizada, à época, pouco se manifestara sobre o tema, inexistindo de sua parte uma mobilização em torno da discussão das telecomunicações no Brasil. Note-se que essa constatação, de nenhum modo, implica uma visão maniqueísta dos diversos atores envolvidos; mas, apenas, reflete um enfrentamento comum à dinâmica social e a coesão existente, em 1962, entre os empresários de telecomunicações.
Se é impossível transpor a realidade do cenário político de 1962 para o presente, permanecem vivos e atuais outros problemas (que o artigo original não pretendeu debater). Um deles é certamente a possibilidade de não renovação de concessões pelo simples ‘arbítrio’ do presidente da República, tão criticado por Ceneviva. Por um lado, há um consenso: em nenhum debate atual tem sido defendida a apreciação das concessões única e exclusivamente pelo chefe do Poder Executivo (e por seu ‘arbítrio’). Muito pelo contrário, debate-se como o Estado – abrangendo os três poderes – deve se portar na renovação das concessões de emissoras de radiodifusão e como a sociedade – incluindo tanto os empresários, quanto as entidades que militam no setor – devem participar desse processo.
Por outro lado, há um debate ainda não travado: toda e qualquer concessão pública, nos mais diversos setores econômicos, baseia-se em parâmetros claros e objetivos, sendo o respeito a eles determinante para a renovação. Quais devem ser esses parâmetros no caso da radiodifusão? Como deve ser avaliado o atendimento (ou não) dos princípios constitucionais relacionados à programação, como suas finalidades educativa, artística, cultural e informativa e a regionalização da produção? Ou pretende-se defender a mera apreciação formal ou a possibilidade de renovação automática de uma concessão pública – que João Goulart, há 45 anos, tentou evitar?
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Respectivamente, jornalista e doutorando em Administração na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EBAPE/FGV), autor de Políticas Públicas para Radiodifusão e Imprensa (Ed. FGV, 2007), organizador e autor de Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil Contemporâneo (Ed. FGV, 2006); e professor titular da EBAPE/FGV, coordenador do Programa de Pesquisa em Administração Brasileira, autor de A Reinvenção do Sertão (Ed. FGV, 2001) e organizador e autor de Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil Contemporâneo (Ed. FGV, 2006)