Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imoralidade vai mesmo acabar?

No segundo semestre de 1997, como era praxe desde 20 anos antes, a minuta de um novo contrato entre a Fundação de Telecomunicações do Pará (Fundelpa) e a TV Liberal foi mandado para a apreciação do governador. Mas o papel que voltou do gabinete de Almir Gabriel, em setembro, continha surpreendentes modificações. O contrato passara a ser convênio. Ao invés de pagar para retransmitir sua programação através das estações da Funtelpa no interior do Estado, a TV Liberal passava a ser paga. Não um valor qualquer, mas 200 mil reais por mês.

Francisco Cezar Nunes da Silva, o presidente da Funtelpa, não quis assinar o convênio. Do gabinete do governador veio a ordem: ou assina, ou sai. E Cezar assinou. Em nove anos, por causa desse insólito papel, pelo menos 30 milhões de reais migraram dos cofres públicos para o caixa da afiliada da Rede Globo de Televisão. Em número atualizado, esse valor pode ultrapassar 50 milhões de reais. É quase 50% a mais do que o jornal O Liberal, cabeça das Organizações Romulo Maiorana, faturou em 2005. Num caso de indenização, pode subir ainda mais. Pelo valor histórico, o ‘convênio’ podia ser classificado como uma das ‘obras’ mais caras dos tucanos em 12 anos de controle contínuo do governo do estado.

A nova presidente da Funtelpa, Regina Lima, tomou um susto ao assumir o cargo e verificar a fatura que lhe cabia pagar à TV Liberal no dia 15 de janeiro: os R$ 200 mil originais se transformaram em R$ 476 mil, graças aos termos aditivos assinados ao longo dos nove anos de vigência do ‘convênio’. O último deles é de responsabilidade de Ney Messias, presidente anterior da Funtelpa (e ex-funcionário da TV Liberal, como Francisco Cezar, que se afastou da emissora há muito tempo, ao contrário de Ney). O 14º aditivo foi assinado no dia 31 de dezembro do ano passado, mas só foi publicado no Diário Oficial do dia 2, prorrogando a vigência da estranha relação até 31 de dezembro de 2007.

Simplesmente repetir os dois governos tucanos, de Almir Gabriel e Simão Jatene, responsáveis pela desconcertante criatura, era impossível. A Funtelpa não podia continuar a pagar para prestar serviços à TV Liberal, que, além de receber, ainda faturava comercialmente, graças à amplitude dada ao seu sinal. O convênio, um mero artifício, não podia continuar a disfarçar o contrato, sua forma legal. O valor a ser pago seria insuportável para a Funtelpa, se a nova direção da fundação quisesse realizar seus planos.

A prorrogação, no prazo de oito meses antes do final do mandato do governo Jatene, fora feita sem a previsão dos recursos orçamentários para atender a despesa, contrariando assim a Lei de Responsabilidade Fiscal. A TV Liberal jamais cumpriu uma cláusula do mesmo ‘convênio’, que a obrigava a descontar 1% da receita de propaganda com a interiorização da sua programação para os municípios alcançados.

Transição plausível

Tantas ilegalidades e irregularidades cometidas pelos adversários do PSDB constituiriam prato cheio para os petistas se não houvesse um complicador na história: o interesse do poderoso grupo Liberal. Talvez esta seja a explicação para a administração Ana Júlia Carepa não adotar a solução mais simples para o problema: a revogação do termo aditivo assinado pelo então presidente da Funtelpa, que prorrogou por mais um ano a vigência do ‘convênio’. Inexistente o ato, automaticamente inexistente estaria a prorrogação.

O ‘convênio’, assinado para durar cinco anos (prazo máximo contratual), perderia a vigência. Mesmo porque todos os aditamentos que o mantiveram vivo eram ilegais. O direito administrativo prevê que a administração pública é impessoal e que pode rever a qualquer momento os seus atos, se considerar que eles são ilegais, imorais ou lesivos ao interesse público, como é o caso.

Ao invés de simplesmente revogar a prorrogação, a Funtelpa decidiu suspender o pagamento à TV Liberal e mandar instaurar procedimento administrativo para apurar as responsabilidades sobre a execução do ‘convênio’. A suspensão foi comunicada pessoalmente a Fernando Nascimento e Denis Brandão, diretores da TV Liberal, que se reuniram com a presidente da Funtelpa, na presença do chefe da Casa Civil do Governo, Charles Alcântara.

Na ocasião, segundo o press release distribuído pela Coordenadoria de Comunicação Social do governo, Fernando ‘acatou a recomendação e afirmou que a TV Liberal não tem nenhum interesse em retirar o sinal enquanto a fundação pública não apontar o caminho para a relação’. Talvez se julgando magnânimo, assegurou que ‘o serviço vai ser mantido, mesmo sem pagamento’. Kafka teria adorado a cena.

A emissora de televisão da família Maiorana foi privada dos apreciáveis R$ 476 mil, que esperava receber no dia 15 de janeiro. Pode ser que jamais volte a receber essa ou as outras 11 parcelas abrangidas pelo aditamento feito por Ney Messias no último dia do governo Jatene, se o ‘convênio’ for considerado ilegal (desfecho mais do que previsível, depois de pareceres nesse sentido elaborados no âmbito do Ministério Público, do Tribunal de Contas do Estado e da própria Funtelpa). Mas ainda lhe resta o consolo, R$ 50 milhões depois, de continuar a usar a rede de retransmissão da Funtelpa para veicular sua programação, na quase totalidade reproduzindo o que a TV Globo gera, e manter seu faturamento publicitário, além de garantir a cobertura de quase todo Estado.

De fato, há um empecilho no meio dessa embrulhada: a continuidade da programação da Rede Globo, que tem no Jornal Nacional e nas novelas o seu carro-chefe permanente (com os acréscimos de ‘pérolas’ do tipo do Big Brother Brasil, capaz de desmoralizar o mais profético Orwell). A interrupção brusca desses programas provocaria protestos e talvez incidentes municípios afora, independentemente de haver ou não legalidade, legitimidade ou procedência nessa parceria Funtelpa-TV Liberal.

O inconveniente podia ser contornado se a Funtelpa chamasse a TV Liberal, uma vez revogado o termo de prorrogação, para um contrato de emergência, que duraria apenas 90 dias, prazo legal para a organização de uma licitação pública visando dar continuidade ao serviço. Nesse período a TV Liberal teria que pagar para dispor da rede de transmissão da Funtelpa, porém não mais por todo tempo que quisesse. Fora dos piques do horário nobre, a rede da Funtelpa retransmitiria a programação da TV Cultura.

Mesmo quando – e se – o serviço fosse definido por concorrência pública, o horário teria que ser dividido. A Funtelpa também podia condicionar a sua participação ao encerramento das novelas em curso. Se quiser continuar a difundir sua programação, a TV Liberal (como qualquer outra emissora comercial) que monte suas próprias torres de recepção e transmissão (como, aliás, já vem fazendo, ciente de que a armação não poderia persistir por mais tempo). Uma transição plausível, à custa do poder público, já teria cumprido sua função.

Decisão política

Se a TV Liberal não fez o que lhe competia, o problema é da emissora, não da Funtelpa. A televisão dos Maiorana, aliás, tem sido tão relaxada e ineficiente que a TV Globo foi obrigada a intervir na afiliada, instituindo um sistema de gestão compartilhada, que vigora há mais de um ano, depois de várias tentativas infrutíferas de correção a distância. Não dispor de uma rede própria de retransmissão era um dos itens dessa ampla inadimplência, que a TV Globo exigiu que fosse suprida, verdadeiramente surpreendida – e, informalmente, escandalizada – com os termos da parceria no Pará, que só duraram tanto porque os tucanos eram parceiros de um projeto de poder: em troca de verba abundante, os Maiorana ajudaram a criar o Pará risonho e franco da propaganda.

A suspensão formal do ‘convênio’, sem sua revogação, pode equivaler a uma denúncia unilateral por parte do governo, acarretando-lhe as penalidades previstas na cláusula quinta do ajuste, que faz lei entre as partes. Sujeita a Funtelpa a uma cobrança de responsabilidade, administrativamente ou em juízo, por parte da TV Liberal, agora ou no futuro. Os Maiorana podem até sair da história com uma indenização.

Fontes do governo garantem, porém, que isso não ocorrerá. Embora admitam ter havido entendimento entre as partes, dizem que a governadora quer reservar apenas à TV Cultura o sistema de transmissão da Funtelpa, fiel à intenção de criar uma verdadeira televisão pública no Pará. Uma prova dessa intenção estaria no fato de que ela não usou uma vez sequer dos três minutos semanais concedidos ao governo como contrapartida da TV Liberal ao pagamento. Se há esse propósito, porém, a estratégia do governo parece dispensar uma consulta aberta à sociedade, evitando se expor à controvérsia pública.

A primeira oportunidade para testar essa disposição foi a audiência convocada pela Assembléia Legislativa no dia 29 para debater o ‘convênio’. A presidente da Funtelpa, Regina Lima, convidada, não compareceu. Alegou que na mesma hora devia estar presente ao Gabinete Civil da Governadoria, para a divulgação do parecer da Procuradoria Geral do Estado, que considerou ilegal, imoral e lesivo o ‘convênio’.

Por que o governo se ausentou da sessão se essa foi a mesma conclusão a que chegaram os debatedores? Segundo a explicação oficiosa, a decisão foi política: se fosse à audiência, o governo reconheceria a iniciativa do PSOL, que propôs a convocação através de sua única deputada, Araceli Lemos, que não se reelegeu. ‘Estaríamos dando uma bandeira aos nossos adversários’, explicou a fonte.

A coincidência de datas não foi nada acidental: foi uma decisão política. Recusando-se, por esse critério, a partilhar a responsabilidade, o governo vai ter que provar, a partir de agora, que tomou realmente o melhor caminho para pôr fim ao que seus próprios integrantes consideram ‘uma imoralidade’. Uma das maiores na história da administração pública no Pará.

******

Jornalista, editor do Jornal Pessoal