Após a decisão favorável a Lula, houve desgaste inédito no apoio que o STF desfrutava junto aos círculos responsáveis pela popularidade da Lava Jato. O fenômeno pôde ser constatado, através das manifestações de colunistas e fontes especializadas da mídia corporativa, nos espaços regulares dos veículos e nos perfis de redes virtuais.
A grande imprensa apaixonou-se pelo STF no julgamento do chamado “mensalão”, a Ação Penal 470. Joaquim Barbosa, então presidindo a corte, lançou o modelo ético do jornalismo que logo abraçaria a Cruzada Anticorrupção [1]: indignado, messiânico, adepto de um pragmatismo seletivo com virulento pendor punitivista.
Esse perfil disseminou-se na apoteose da Lava Jato, marcando a própria identidade enunciativa de seus apoiadores. O “isentismo”[2], germe inicial da truculência fascista, espelhava a cobertura noticiosa dos escândalos, em particular sua demonização global da esfera política como disfarce para o óbvio viés partidário dos cruzados.
Desde o impeachment de Dilma Rousseff até a conspiração que impediu Lula de vencer Bolsonaro, o STF serviu de fiador institucional do discurso midiático antipetista. Em troca, perfis laudatórios, entrevistas amenas e comentários elogiosos davam notoriedade positiva aos responsáveis pela normalização dos arbítrios da Lava Jato.
Enquanto os recursos de Lula eram rejeitados [3], os veículos neutralizaram as denúncias de seus defensores, tratando os absurdos como “polêmicos”, dando falsas equivalências ao delírio e à sensatez. Embora por vezes lamentassem os abusos de Sérgio Moro, nunca reclamaram da continuada omissão do STF a respeito.
Outrora avalistas da criminalização de Lula, os ministros já não servem para atestar sua inocência. Louvados como rígidos e imparciais quando ignoravam os direitos do ex-presidente, viraram tendenciosos ao resgatá-los. Podiam menosprezar o risco Bolsonaro, mas devem ser responsáveis na prevenção de danos à Lava Jato.
Dois vícios assemelham as críticas tardias da imprensa e os ataques fascistas contra o STF. Primeiro, o negacionismo [4]. A claque da Lava Jato segue transferindo a suspeição de Moro para Lula, incriminando-o exatamente com a base probatória anulada. Tenta desqualificar o tribunal fingindo que suas decisões são simples “narrativas” adversárias.
Mais grave é agir como se o julgamento não revelasse algo do processo histórico que vivemos, a começar pelos papéis do próprio STF e da imprensa na origem da tragédia humanitária atual. É agir como se fosse possível apagar as ilegalidades de Moro com sua incompetência. Como se a manobra, ainda que viável, alterasse os fatos. [5]
Em segundo lugar, a mentira. Artigos publicados nos jornais Folha de S.Paulo [6] e Estado de S. Paulo, [7] por exemplo, acusaram a ministra Cármen Lúcia de cometer crime de responsabilidade mudando seu voto. A falácia foi desmascarada [8] apenas depois de circular na internet, com aval de notórios profissionais do Direito.
Os novos debates do noticiário jurídico atropelaram a percepção desses episódios, mas não deixaram de revelar a diferença dos tratamentos dados aos ministros com posições antagônicas sobre a Lava Jato. Ademais, nenhum voto alinhado a Bolsonaro provocou tanta agressividade quanto aqueles que restituíram os direitos políticos de Lula.
Talvez fossem arroubos passageiros. Mas soa estranho questionarem a legitimidade do STF para impor freios ao bolsonarismo das cortes inferiores quando ele recebe mandato informal para refrear o próprio Bolsonaro. Pelo menos era esse o hábito na época em que a corte supostamente asseverava a resistência das instituições democráticas no país.
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Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Mestre em Divulgação Científica e Cultural, doutor em Meios e Processos Audiovisuais. Website: www.guilhermescalzilli.blogspot.com
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Referências
[1] http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2016/12/e-necessario-resistir-cruzada.html
[2] http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2017/03/o-isentao-e-neutralidade-ideologica.html
[3] http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2018/07/a-teratologia-escancarada.html
[4] http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2020/11/pandemia-negacionista.html
[5] http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2019/08/a-verdade-sobre-verdade.html
[6] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/catarina-rochamonte/2021/03/o-circo-de-gilmar-mendes.shtml
[7] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anarquia-juridica,70003666957
[8] https://www.aosfatos.org/noticias/e-falso-que-ministros-do-stf-nao-podem-alterar-votos/