Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A inviolabilidade do sigilo da fonte

1. O sigilo de fonte e os demais segredos profissionais. Os limites ao poder punitivo do Estado.

A prisão da jornalista estadunidense Judith Miller, do New York Times, e a revelação das fontes de notícia por Mathew Cooper, da revista Time, fizeram renascer discussões a respeito das liberdades da imprensa em regimes democráticos. Ambos os episódios, cuja narrativa aqui dispensamos, por serem notórios no meio a que este texto se dirige, causaram rebuliço e o estranhamento imediato na comunidade jornalística em geral, e não sem razão: qualquer profissional da comunicação de massa conhece a importância do resguardo de suas fontes, para manter a credibilidade da profissão.

Essa sensação de injusto que tais episódios provocaram despertaram a curiosidade a respeito de como a nossa legislação ou nossa Justiça cuidaria de caso semelhante. Em outras palavras: e se fosse no Brasil, prisão como aquela seria possível? Quais as normas brasileiras aplicáveis ao caso, e em que medida essas normas possibilitariam obrigar-se um jornalista a entregar a fonte de sua notícia?

O que talvez falte à comunidade jornalística, e que aqui se procura expor, é que a questão não é nada nova em nossa realidade nacional. Os fundamentos dos chamados sigilos profissionais e sua inviolabilidade são objeto de discussão freqüente, diante do poder de investigação do Estado. O poder persecutório do Estado, ou seja, o seu direito e dever de perseguir ofensores da legislação penal esbarra em direitos consagrados a determinadas profissões costumeiramente. E o arbítrio estatal, com a violação desses direitos, é mais freqüente do que se imagina. Se os jornalistas são, nos Estados Unidos, obrigados a revelar a fonte de sua notícia, não menos grave é que, no Brasil, também a título de operar-se a investigação criminal, médicos sejam obrigados a enviar ao juiz os prontuários de seus pacientes [a esse respeito, vide parecer ‘Sigilo Médico e Direito à Privacidade: do delito de desobediência face ao desatendimento de ordem judicial de revelação de dados de pacientes’, in: Direito à Privacidade, Idéias e Letras, 2005] – protegidos por sigilo –, ou escritórios de advocacia sejam invadidos para que em seus arquivos eletrônicos se capturem informações ditas relevantes a uma investigação.

A questão que se coloca, diante desses mandados judiciais que implicam violação de sigilo pode ser assim resumida: o interesse público do Estado na investigação criminal é ou não maior do que o interesse social da preservação do sigilo da profissão, como instituição?

Para dar uma resposta mais adequada ao caso, formule-se assim a questão: tal qual ocorreu nos Estados Unidos, a legislação brasileira permitiria que um juiz decretasse a prisão de um jornalista por recusar-se a revelar a fonte de sua notícia.

2. Os limites ao poder de punição

O que fundamenta a prisão da jornalista da Time é o fato de ela recusar-se colaborar em investigação a respeito da divulgação do nome de um agente da CIA. No Brasil, seria como o delito de desobediência a uma ordem judicial, a revelação de sua fonte, fundamentada no interesse público de apuração de um delito e punição de eventuais infratores.

É evidente que toda a sociedade tem interesse na punição de infratores, o que a leva a colaborar com os procedimentos que visem a esse fim. A punição penal de um corrupto, de um assaltante de bancos, de um estuprador, são todos atos que surgem presumidamente da vontade do povo, refratada na lei, desde que essa punição seja reservada ao estado.

Mas esse poder punitivo do estado deve ter limites assegurados. Não apenas pelo imperativo de que não pode existir poder ilimitado, mas porque se deve evitar que o poder público se possa transformar no maior transgressor das leis. Realmente, não se está sozinho quando se afirma que as maiores ameaças a direitos fundamentais não surgem do cidadão, do indivíduo, mas do ente coletivo. Nas palavras do professor Zaffaroni, atualmente Ministro da Corte Suprema Argentina, ‘lo que nadie puede dejar de observar es que las agencias y corporaciones del sistema penal han cometido los peores crímenes a la humanidad y en mucho mayor número a los cometidos por los individuos que delinquieron sin el paraguas protector de los estados’ [Zaffaroni, Eugenio Raul e outros, Manual de Derecho Penal, parte general, Buenos Aires, Ediar, 2005, p. 05].

Sem cair na irresponsabilidade generalizada, principalmente em matéria de imprensa, certo é que estudar a evolução do Direito de punir significa conhecer a imposição cada vez maior de restrições ao castigo. Desde a obra Dos delitos e das penas, do Marquês de Beccaria (1746), que alguns entendem como marco do Direito penal como ciência, o estudo dessa matéria comporta a idéia de limitar os castigos e os modos de se chegar a ele, ou seja, a investigação. Por isso, não se pode deixar de configurar como grande retrocesso o ato de, mesmo com o escopo de se alcançar a punição de delinqüentes, transgredirem-se direitos fundamentais, neles inclusos os mais variados sigilos profissionais.

3. Liberdade de Imprensa como direito. A diferença entre direito e mero interesse.

O direito à liberdade de expressão está nas garantias fundamentais da Constituição, no inc. IV do seu art. 5º, complementado pelo art. 220. Desses princípios decorre (não cronológica, porém hierarquicamente), o sigilo de fonte, do artigo 71 da lei de imprensa (5.250/67). Nele está expresso singularmente que ‘nenhum jornalista ou radialista, ou, em geral, as pessoas referidas no art. 25, poderão ser compelidos ou coagidos a indicar o nome de seu informante ou a fonte de suas informações, não podendo seu silêncio, a respeito, sofrer qualquer sanção, direta ou indireta, nem qualquer espécie de penalidade’.

Sigilo de fonte não significa possibilidade de anonimato e muito menos falta de responsabilidade pelo quanto se divulga. Mas esses institutos não são objeto deste texto. Basta-nos reconhecer que não existe liberdade de imprensa sem sigilo de fonte, e este é um direito. Uma liberdade pública de que depende o exercício do bom jornalismo, em especial o de natureza investigativa, tão valorizado por estes dias.

A constatação de que existe um direito garantido ao sigilo de fonte não coloca, de imediato, termo à questão da possibilidade de um juiz determinar, diante da legislação brasileira, que um jornalista venha a revelar sua fonte. Isso porque os direitos não são ilimitados e não raras vezes confrontam-se. O papel do Poder Judiciário – do juiz, então – é determinar a restrição dos direitos para, grosso modo, garantir equilíbrio entre eles. Por exemplo, a liberdade de imprensa é um direito constitucional, mas a intimidade também o é. Assim, não seria, a princípio, atentatório à liberdade de imprensa que um juiz determinasse a não-publicação de uma notícia que, ainda que verdadeira, implicasse injusto prejuízo a um direito da personalidade. [Foi o que ocorreu no caso Carolina de Mônaco, na Corte Européia de Direitos Humanos (caso von Hannover vs. Germany). Em decisão publicada em junho de 2005, a Corte de Estrasburgo, condenando as decisões do Estado alemão, fez prevalecer direito de indenização à princesa por fotografias tiradas e publicadas, nos anos 1990, pela imprensa germânica (Bunte, Fereizeit Revue e Neue Post). A Corte observou o artigo 8º da Convenção Européia de Direitos Humanos, que cuida do direito à vida privada, bem como as circunstâncias específicas do caso, a exemplo da falta de interesse público das fotografias e o fato de haverem sido tiradas sem seu consentimento.]

Mas há que se fazer ressalva mesmo ao direito do juiz de interpretar a lei, quando em conflito com garantias. Porque, quando se procura quebrar o sigilo da fonte em prol do sucesso de uma investigação criminal, não se trava uma disputa – que mereça equilíbrio – entre direitos fundamentais. Porque o poder punitivo não o é. Trata-se da disputa entre um direito – o sigilo da fonte – e um mero interesse: a persecução punitiva. Não há como negar que a disputa a desigual, pois a supremacia do direito é indiscutível.

Foi assim que, de modo muito análogo, um julgamento argentino decidiu que um médico que examinava uma paciente infringiu segredo profissional ao denunciar às autoridades que ela cometera aborto, informação que o médico somente obtivera em consulta sujeita a sigilo. O trecho do julgado realça que a intimidade é um direito consagrado, enquanto a persecução um mero interesse político, valendo copiar:

Pero por otro lado, también hay que tener presente que estos argumentos resultan válidos cuando se está en presencia de conflictos entre genuinos derechos y no cuando el conflicto se verifican entre un derecho amparado por una garantía constitucional (como la libertad o el derecho a la intimidad) y un simple interés social consagrado en una directiva de acción política (como sería el caso del interés en la investigación y persecución de los delitos). Nadie tiene un genuino derecho que pueda pretender hacer valer para que se investigue y se persiga a alguien por la comisión de un delito (…) El Estado ejerce la acción penal en resguardo de un interés social, no de un derecho de alguien en particular [In: ‘Violación de secretos y obligación de denunciar: Un dilema ficticio – Un comentario crítico al fallo Zambrana Daza’, Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal nº 8, Buenos Aires, Editorial Ad Hoc, p. 253].

O sigilo de fonte prevalece sobre o interesse, também público, de persecução penal a quem quer que seja. Não apenas por ser ele um direito consagrado, mas também por nele estar difusa toda a confiabilidade da imprensa. Afinal, como poderiam os órgãos de imprensa convencer às suas fontes da preservação de seu sigilo – e só aí obter informações preciosas para a configuração da notícia – se existisse o risco, mínimo que seja, de que essas informações tenham que ser reveladas, ainda que por ordem judicial?

E a razão para que a lei alce o sigilo profissional – do jornalista, do médico ou do advogado – a categoria hierarquicamente superior à do interesse punitivo não é tola ou abusivamente liberal. Ao contrário do que muitos argumentam, o caráter absoluto do sigilo profissional frente a meros interesses não prejudica a ação do Estado de perseguir os causadores do injusto penal. Não nos parece plausível, afinal, que o estado persecutor possa ter como elemento decisivo de formação de provas contra um acusado as informações que se encontram resguardadas pelo escudo do sigilo legal. Em outras palavras, parece-nos claro que, quando o estado diz que necessita de violar o sigilo de fonte para obter informações a uma investigação, reconhece não só sua arbitrariedade, mas sua própria incompetência. Afinal, não foi capaz de obter, por meio de seus caríssimos meios de inteligência, aquilo que um repórter descobrira sem grandes despesas ou desmedidos atropelos.

Em um estado democrático de direito, portanto, não se pode achar razoável que a inteligência pública venha a obter suas informações relevantes à persecução penal sem prescindir da violação dos sigilos de profissão.

Parece que a violação do segredo, sob qualquer aparente justificativa, segue à contramão das expectativas do direito na sociedade moderna. A chamada ‘sociedade de risco’, tão analisada quando se pretende seguir políticas de proteção social pela norma – em especial de natureza penal – tem como um de seus pilares a necessidade da garantia das instituições, para diminuir uma sensação geral de insegurança, típica de sua formação e evolução. [Nesse sentido, já tivemos a oportunidade de escrever: ‘O terceiro fator característico da sociedade de risco é decorrente dos dois anteriores, sendo representado pela ‘sensação de insegurança subjetiva’, a qual pode existir independentemente de haver ou não perigos reais. Conforme Kaufmann, a sociedade de risco identifica-se pela crescente sensação de insegurança, enquanto, de modo paradoxal, pode-se asseverar seguramente que os membros dela vivem de modo muito mais seguro que outrora. E esse binômio risco-insegurança, no campo normativo, cria demanda específica pelo zelo da segurança, que ‘busca não apenas a proteção objetiva contra riscos e perigos, mas também a possibilidade de assegurar, além dessa proteção, a confiança ou segurança nela, de modo que precisamente por causa desse convencimento, seja possível sentir-se livre de temores’’. RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa: Responsabilidade Sucessiva e o Direito Penal Moderno, Campinas, Ed. Apta, 2004, p. 81.]

Na sociedade atual, com a licença dos posicionamentos em contrário, a sensação de segurança social deve fluir muito mais da preservação do segredo para a confiabilidade, no caso, da atividade jornalística, do que do interesse em materialidade para a punição em um Direito penal simbólico. No contexto em que a sociedade reclama da patente violação da intimidade, da intervenção da comunicação privada, das filmagens clandestinas, enfim, da confirmação da idéia antes ficcional do Big Brother is watching you, o ‘sentir-se livre de temores’ passa muito mais próximo da atribuição de sensação de confiança na imprensa e da menor intervenção do Estado do que na condução de um ou outro ao cárcere.

4. Uma analogia: o sigilo de fonte e o segredo de confissão. A solução simples do Direito Canônico.

A figura do sigilo passa a ser absoluta quando se considera também o interesse público na preservação da instituição, neste caso específico, da imprensa e de seu modo de obtenção de matéria prima. À luz dessa corrente de pensamento, o sigilo da fonte é próximo ao segredo de confissão sacramental, do sacerdote religioso.

Tal como aconteceu com a jornalista Judith Miller, impõe-se a comparação: se um juiz determinasse, em qualquer lugar do planeta, a um sacerdote católico que revelasse um segredo obtido em confissão, por uma justa causa, o que deveria ele fazer: preservar o segredo ou obedecer à ordem do país em que se encontra?

A consulta ao ordenamento jurídico da Igreja Católica responde como ela lida com a confissão e eventual violação a seu segredo. Não se pretende pôr em discussão questões religiosas; a finalidade, aqui, é observar o conjunto normativo do corpo social e visível da Igreja, que é obrigado a lidar com conflitos muito próximos ao direito comum, aplicados a sua realidade. Mais que instituição religiosa, o sistema normativo da Igreja, como se sabe, é técnico e evoluído. Não raro é pioneiro na criação de figuras jurídicas que irradiam influências ao direito laico, que se podem identificar, por exemplo, nas instituições do casamento, da própria proteção a trabalhadores, da conciliação e da arbitragem, da composição, da prescrição, do processo sumário, da oposição de terceiro, reconvenção, regularidade do processo [vide O Legado do Direito Canônico, in: TUCCI, José Rogério Cruz e AZEVEDO, Luiz Carlos de, Lições de Processo Civil Canônico, SP, RT, 2001, pp. 159-163], – e até das penas de prisão, esta que antes somente tinha caráter cautelar, como lembra Frederico Marques [MARQUES, José Frederico, in: Tratado de Direito Penal¸ Volume III, Editora Millenium, Campinas, 1999, p. 159].

Pois o Código de Direito Canônico [O atual foi promulgado pela constituição apostólica Sacrae disciplinae leges Catholica Ecclesia, do Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983] aborda o tema em dois cânones distintos, que aqui vale copiar, a título ilustrativo:

Cân. 983 – § 1. O sigilo sacramental é inviolável; por isso é absolutamente ilícito ao confessor de alguma forma trair o penitente, por palavras ou de qualquer outro modo e por qualquer que seja a causa [Sacramentale sigillum inviolabile est; quare nefas est confessario verbis vel alio quovis modo et quavis de causa aliquatenus prodere paenitentem].

O caráter absoluto da proibição é expresso, não havendo autoridade que a possa cassar. E, mais adiante, no livro relativo às penas para cada delito canônico, o cân. 1388 é ainda mais elucidativo:

Cân. 1388 – §1º O confessor que viola diretamente o sigilo sacramental incorre em excomunhão latae sententiae reservada à Sé apostólica; quem o faz só indiretamente seja punido conforme a gravidade do delito [Confessarius, qui sacramentale sigillum directe violat, in excommunicationem latae sententiae Sedi Apolstolicae reservatam incurrit; qui vero indirecte tantum, pro delicti gravitate puniatur].

A idéia de que esse dever de sigilo seja absoluto chega a trazer-lhe como reprimenda a pena latae sententiae, ou seja, sem direito à ampla defesa e aos recursos. E isso ocorre, por óbvio, para que não se permita a instauração de um processo para discutir se em um ou outro caso poderia ser lícita a violação de tal segredo. Em qualquer hipótese não o será, pois ali o sigilo é valor supremo, quaisquer que sejam as circunstâncias envolvidas. Permitir que se o discuta colocará em risco a evidente irreversibilidade dos efeitos deletérios da violação de segredo, cuja analogia cabe perfeitamente à hipótese médica, aqui analisada.

Um sacerdote que, diante de uma autoridade laica, seja compelido a revelar conteúdo de confissão sacramental que ministrou, e o faça, está excomungado latae sententiae. Parece que não terá sequer oportunidade de invocar qualquer escusa, pois não há circunstância a ser alegada em sua defesa. Seu dever é negar-se a tal revelação, ainda que sobrevenham reprimendas pelas autoridades seculares. Nesse sentido, a forma de preservação do direito canônico do justo funcionamento do sacramento da confissão é simples: a pena latae sententiae.

De modo que não se pode fugir de completar a analogia: o jornalista que encontre na autoridade policial ou judiciária alguém que não respeite sua necessidade de sigilo, e assente não relevar o segredo profissional para aperfeiçoar um contexto probatório, como uma persecução criminal, por sua deontologia deverá sim negar-se a corroborar em tal violação, ainda que sob circunstâncias não favoráveis, como fez Judith Miller. E o juiz deve (ou deveria) proteger esse segredo, mesmo que desagrade à instrução processual, tão imediatista. Valores maiores, à evidência, estão em questão.

5. Conclusões

A nós parece que um jornalista que revele suas fontes de notícia, sem autorização daquele que pediu o sigilo, ofende de imediato a privacidade e, mediatamente, mas não menos, a liberdade pública de imprensa. A decisão judicial que determinasse a quebra do sigilo de fonte a título de obter informações para um procedimento persecutório seria ilegal e seu cumprimento pelo jornalista, sem sua discussão até última instância, poderia configurar o delito do art. 154 do Código Penal, a violação de segredo [Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tenha ciência, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Pena: detenção de três meses a um ano]. Esse crime específico revela a intenção do legislador e da sociedade – que, como já exposto, se nos configura cada vez mais aguda – de proteger os valores da intimidade e da própria vida privada e, assim, demonstrar que o próprio legislador indica o desvalor da ação da divulgação do segredo, levantando-o à alçada de injusto penal.

Comentando, aliás, esse crime – a violação do sigilo profissional – parece que não seria por demais tecnicista compreender o que o jurista Nelson Hungria comentou a seu respeito:

‘A vontade do segredo deve ser protegida ainda quando corresponda a motivos subalternos ou vise a fins censuráveis. Assim, o médico deve calar o pedido formulado pela cliente para que a faça abortar, do mesmo modo que o advogado deve silenciar o confessado propósito de fraude processual do seu constituinte, embora, num e noutro caso, devam os confidentes recusar sua aprovação ou entendam de desligar-se da relação profissional. Ainda mesmo que o segredo verse sobre fato criminoso, deve ser guardado. Entre dois interesses colidentes – o de assegurar a confiança geral nos confidentes necessários e o da repressão a um criminoso – a lei do Estado prefere resguardar o primeiro, por ser mais relevante. Por outras palavras: entre dois males – o da revelação das confidências necessárias (difundindo o receio geral em torno destas, com grave dano ao funcionamento da vida social) e a impunidade do autor de um crime – o Estado escolhe o último, que é o menor [HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, RJ, Forense, Comentário ao art. 154, Vol. VI, p. 261].

Nossa legislação é, portanto, repleta de institutos que nos permitem afirmar que, se o caso dos jornalistas Judith Miller e Matthew Cooper ocorresse no Brasil, a ordem judicial de quebra se sigilo de fonte seria absolutamente ilegal. Entretanto, vivemos fenômenos parecidos, em relação ao sigilo do advogado e o de médico, por algumas decisões judiciais que parecem não fazer caso à importância do livre funcionamento das profissões em uma sociedade democrática. E o estado que necessita de violar segredos para obter informações ou é muito arbitrário, ou muito incompetente.

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Advogado especializado em imprensa, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP, pesquisador bolsista pela Universidade de Valladolid, Espanha, professor de Direito Penal Econômico no Unibero e do Centro de Extensão Universitária, membro da União Brasileira de Escritores e autor, dentre outros, do livro Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa e Argumentação Jurídica, co-autor de Direito à Privacidade