Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A mão que regula é a mesma que esquarteja

Sepultada no nascedouro, a idéia do governo federal de criar uma agência do cinema e do audiovisual que regulasse a televisão foi substituída por outra ainda mais difícil de se concretizar. Do final de 2004 para cá, o governo garante que iniciou esforços para consolidar a legislação fragmentada que rege a comunicação social eletrônica no Brasil [Clique aqui para conhecer a legislação brasileira das comunicações]. Na prática, partiu para um esquartejamento normativo que pode contribuir para retardar esta intenção.

Desde a saída de Juarez Quadros do Ministério das Comunicações (Minicom), em 2002, não se tentava uma regulamentação com a abrangência da rascunhada no anteprojeto de lei da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Por diversas razões, inclusive pela falta de interesse do chamado núcleo duro da administração Lula, o bom debate aberto pelo Ministério da Cultura (MinC) em agosto foi extirpado da agenda do Planalto, que jogou tudo para um futuro incerto e não sabido – expondo um ministro e sua equipe. Nas palavras de um dos mentores da Ancinav, o governo enfrenta um clinch – expressão do boxe usada para ilustrar o momento em que os lutadores se vêem agarrados de tal forma que paralisam a contenda sem trocar socos.

É bem possível que o projeto da Ancinav avance. No Executivo e até no Legislativo. Mas não mais como uma autoridade regulatória com poderes abrangentes sobre a comunicação social eletrônica. Dizer que é necessário garantir uma Ancine melhorada agora e, ao mesmo tempo, prometer a elaboração de uma lei geral de comunicação a longo prazo parece um contra-senso revelador. Pelo menos para os que não acreditam ser possível criar um órgão regulador sem saber o que ele irá regular ou fiscalizar.

A nova pauta posta em prática na Esplanada dos Ministérios soa mais como uma tentativa de garantir o fomento para o cinema a partir das vítimas de sempre e livrar os detentores de concessões públicas de rádio e TV da obrigatoriedade de abrir espaço em suas grades para a produção audiovisual independente.

Na última semana de fevereiro, o ministro das Comunicações, Eunício de Oliveira, desmentindo estar com um pé fora da pasta, anunciou a formação de uma comissão para tratar do tema. Existem R$ 6.615.070,00 orçados para estudos e formulações de regulamentos para as comunicações em 2005 [no projeto de lei orçamentária encaminhado ao Congresso Nacional estão listados R$ 1,27 milhão para a reformulação da política para o Setor de Telecomunicações (25% executado), R$ 1,27 milhão para a reformulação da política de Comunicação Eletrônica (19% executado), R$ 2,858 milhões para a reformulação da política de Desenvolvimento Tecnológico e Industrial das Telecomunicações (25% executado), R$ 1,062 milhão para a formulação da política de Radiodifusão Digital (23% executado) e R$ 152 mil para a reformulação da política para o Setor Postal Brasileiro (90% executado)]. No caso da reformulação da política de comunicação eletrônica há R$ 1,27 milhão disponíveis para a elaboração de um projeto de lei cuja execução física se encontraria em 19%.

De brecha em brecha

Outro contra-senso parte de nova iniciativa do governo. Esta parece desmentir o fato de que a atualização dos códigos que regem a comunicação social esteja na mesa de trabalho do primeiro escalão de Lula. No mês passado, a Presidência da República editou o regulamento dos serviços de repetição e de retransmissão de TV [Decreto nº 5.371, de 17 de fevereiro de 2005, publicado no Diário Oficial da União de 18 de fevereiro de 2005]. De forma quase silenciosa, por meio de decreto, criou a figura da retransmissora de televisão institucional (RTVI), operada por prefeituras municipais, para distribuir os sinais das emissoras estatais do Legislativo e do Executivo federais.

Na história da televisão brasileira, as retransmissoras foram os veículos encontrados pelo setor privado para burlar a legislação e criar redes nacionais que hoje cobrem quase 100% do território nacional. O Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (até hoje em vigor) veda a uma mesma pessoa o controle de mais de cinco emissoras de TV no país. A brecha das RTVs, somada a alianças político-econômicas regionais, fez o número de retransmissoras em operação no Brasil chegar a 5.704 em 2003 [dados do balanço do 1º semestre de 2003 da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informavam que naquele momento existiam outras 4.066 retransmissoras de TV em ativação e 2.689 canais vagos, totalizando 12.459 canais utilizados ou reservados para o serviço de RTV] – enquanto o número de emissoras de TV está longe das 500.

A exceção criou a regra para que essas retransmissoras passassem a inserir publicidade local junto com o sinal da geradora. Por um subterfúgio legal, portanto, foram configurados os oligopólios privados que hoje respondem por um dos maiores índices de concentração de propriedade das comunicações mundiais.

Muitas dessas centenas de retransmissoras educativas e comerciais já se encontram na mão de prefeituras. A maioria retransmitindo o sinal das emissoras privadas sediadas no eixo Rio-São Paulo. Com a figura da RTVI, o poder central vai estabelecer um tipo de polarização com os donos da mídia, gerando uma concentração estatal, também em rede nacional, da distribuição de conteúdo televisivo. Uma demanda que é legítima, afinal o Estado pode e deve ter seus veículos como uma forma de prestar contas ao cidadão e promover os debates nacionais. Foi isso que inspirou a criação dos canais legislativos na Lei do Cabo.

Mas do jeito que foi concebido e implementado, o decreto das retransmissoras será mais um obstáculo no já conturbado caminho da regionalização da programação, do estímulo à produção independente local e ao controle público da mídia.

Em 85% do seu tempo, as RTVIs irão retransmitir o conteúdo gerado pelas emissoras da União (Radiobrás, TV Senado e TV Câmara). Por mais que exista um mérito na abertura de 15% da programação destas retransmissoras para a inserção de conteúdos locais, geridos por uma estrutura tripartite (Executivo, Legislativo e sociedade), a situação de fato criada pelas RTVIs fortalece a pulverização regulamentar do setor. Em troca de mais uma aberração normativa, desta vez por demanda do Estado, chutou-se para escanteio o interesse público.

Lei mínima

Esta parece ser a mais clara demonstração de que poucos neste governo acreditam que seja prudente ir além do esboço de uma lei geral de comunicação nos próximos dois anos. Pelo menos enquanto o ânimo do Estado, assim como o do setor privado, continuar sendo comandado por decisões particularistas, quase pessoais. Um visando o lucro a qualquer preço; o outro, a próxima eleição. Os dois reforçando situações de fato em detrimento das prioridades estabelecidas pelo Capítulo V da Ordem Social da Constituição Federal de 1988.

A pergunta que ainda não se fez publicamente é: o que é possível encaminhar – e aprovar – neste momento? Pelo exposto aqui, não é um código amplo. Até o finado Sérgio Motta, quando ministro das Comunicações no primeiro governo FHC, cogitou atualizar os códigos quarentões que regem a comunicação social eletrônica do país, mas preferiu trazer para o debate o que chamava de ‘lei mínima’.

Desconvencido da eficácia da lei geral, sua agenda para as comunicações foi implantada de forma esquartejada. No seu caso, bebê e água do banho foram jogados na sarjeta para dar lugar à privatização da telefonia fixa e móvel, a política de satélites e a implementação da TV por assinatura e da comunicação de dados. Serjão e FHC nunca tiveram disposição para mexer com os donos da mídia. As prioridades da agenda do governo nesta área acabaram dirigidas pela inexorável ‘mão do mercado’.

Repetindo o maneirismo histórico, os governos tucanos olharam para o varejo. Acabaram atendendo demandas pontuais da sociedade, como a regulamentação da TV a cabo (mantendo a TV por assinatura por satélite fora do alcance da lei), a institucionalização das rádios comunitárias (a partir de uma lei mal costurada), a definição da classificação indicativa nos programas de TV, a criação da agência do cinema e a abertura do debate sobre a TV Digital.

No campo regulatório e jurídico, porém, foram mantidas as situações de fato, fazendo com que nem as leis mínimas fossem cumpridas. A grande mexida nas normas foi para permitir a entrada de pessoas jurídicas nas empresas jornalísticas e emissoras de rádio e TV, além da abertura destas sociedades para o capital estrangeiro.

Depois de peitar por quatro meses o lobby das comunicações, que trata Brasília como o quintal de casa, Lula e Gilberto Gil perceberam o mesmo que Motta. Tanto que recuaram ao primeiro sinal de fumaça proveniente das chaminés do Jardim Botânico. Mas enquanto o ministro da Cultura parece crer que conduz uma guerra santa – ou uma luta de boxe –, o presidente dá sinais de cansaço e parece estar disposto a implementar a agenda do mais forte.

O Legislativo, com uma atuante bancada de donos da mídia, faz coro à percepção de Lula. As duas casas, assim como o presidente, preferem conquistar suas RTVIs a brigar contra os interesses dos empresários. O clinch, na verdade, parece vir de dentro do Estado. O que pode nos encaminhar para lei nenhuma.

Debate aberto

Para a sociedade, descortina-se o momento ideal para ensaios e rearranjos em busca de uma lei possível. Não tão abrangente que dê margens para um impasse, nem tão tímida que deixe tudo como está. Uma conjuntura global, onde continuam indefinidos processos como o da convergência tecnológica, a sustentação econômica dos sistemas de comunicação e a melhor forma de estabelecer o controle público da mídia, leva a crer que o debate precisa ser iniciado sem data para ser concluído. Ao governo cabe saber seus limites. Ao setor privado, saber cumprir as leis. E à sociedade, descobrir suas prioridades comuns.

Países que recentemente atualizaram suas legislações, como o Reino Unido com o seu Communications Act de 2003 e os demais integrantes da União Européia, fizeram isso a partir de um horizonte já traçado ou, pelo menos, encaminhado. Por colocar a carroça na frente dos bois, não se sabe se o governo Hugo Chávez terá fôlego político para tirar do papel a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e TV na Venezuela.

Uma lei possível, no caso do Brasil, deveria ser iniciada por um debate nacional que contemplasse pontos consensuais para ajudar a desatar o cipoal de regulamentos e normas criadas de 1962 até 2002. Alguns deles é possível esboçar:

** definições acerca do impacto social e do modelo de serviços para a digitalização das comunicações;

** uniformização da regulamentação do segmento de TV por assinatura dentro dos princípios e da função social da Lei do Cabo (8.977/95), principalmente no que se refere ao conceito de rede pública e única, à obrigatoriedade do transporte de canais abertos e gratuitos e ao fim da exclusividade na distribuição de programação;

** atualização da Lei de Imprensa (5.250/67) a partir do projeto de lei que está pronto para ser votado e que define direitos e deveres objetivos para o exercício da liberdade de expressão e de imprensa;

** constituição de mecanismos eficazes de fomento à produção audiovisual e de garantia de acesso igualitário aos canais de distribuição de conteúdo;

** alternativas para a sustentação dos veículos de comunicação dentro de um cenário de convergência e pulverização da receita publicitária;

** reforma da lei da radiodifusão comunitária (9.612/98) com o fim da repressão às emissoras que operem como regem as normas;

** definição de uma política de redes transparente que equilibre a relação entre emissoras nacionais e afiliadas regionais dos segmentos de rádio e televisão;

** estudo de limites à concentração da propriedade dos meios e obstáculos à formação de monopólios e oligopólios nos diferentes mercados e entre eles.

Sem pactuar uma agenda comum, será difícil a sociedade convencer o Estado que não é necessária uma lei geral arbitrária para se redesenhar os sistemas e os mercados de comunicação do país. Mais do que formular o ideal, é preciso pensar como colocar em prática os avanços. E, principalmente, ter em mente que legislações não dão conta da vida e de seus conflitos.

Entre uma lei geral e lei nenhuma, tudo indica que lei melhor é a lei possível.

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Jornalista e integrante do EPCOM – Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação